A Lei 12.760/12, cognominada “Nova Lei Seca”, alterou a redação do artigo 306, CTB, dividindo as formas de comprovação de alteração da capacidade psicomotora em dois incisos independentes. No inciso I, a prova é produzida por meio de exame toxicológico de sangue e/ou exame de etilômetro com previsão de concentrações que indicam a ebriedade perigosa. No inciso II, a ser utilizado como complemento do I ou independentemente, em caso de negativa dos exames e testes sobreditos com base no direito à não – autoincriminação, a prova pode ser feita pela constatação de sinais que indiquem a alteração da capacidade psicomotora, seja por meio de exame clínico, testemunho, filmagens, fotos etc. Inclusive esses sinais já são disciplinados pela Resolução Contran 432/13.
Em obra específica sobre o tema já houve a manifestação de que o inciso I prevê como dantes (Lei 11.705/08) figura de crime de perigo abstrato, conforme já firmado pela maioria doutrinária e jurisprudencial. Nesse inciso a prova é feita pelas taxas de alcoolemia e não admite discussão quanto ao perigo ocasionado na direção em concentrações cientificamente apontadas como alteradoras do psiquismo e reflexos de qualquer ser humano. Já no inciso II, ao referir-se a sinais indutores da ebriedade perigosa, o perigo deve ser concretamente demonstrado pela direção descontrolada, pela voz pastosa, hálito etílico, verborragia, descontrole emocional, andar cambaleante etc. Não há como fugir, portanto, da conclusão de que o novo perfil do crime previsto no artigo 306, CTB, de acordo com a Lei 12.760/12 é anômalo, ou seja, em parte de perigo abstrato (inciso I – ao qual se prefere chamar de “perigo notório”, pois que é de sabença trivial o perigo existente, além de evitar a questão de eventual aparência de presunção de culpabilidade, que não é o que ocorre no caso); em parte de perigo concreto (inciso II). [1]
Não obstante, já se tem notícia de rumores sobre eventuais críticas a essa opção legislativa e/ou à interpretação dada neste sentido ao artigo 306, I e II, CTB. Pretende-se alegar que o indivíduo incurso no inciso I, havendo colaborado com a apuração dos fatos espontaneamente, teria tratamento mais rigoroso do que aquele que incide no inciso II, o qual se negou aos exames e testes, opondo resistência à produção da prova. Isso porque o inciso I traria uma previsão de crime de perigo abstrato, mais facilmente comprovável e mais dificilmente refutável após a produção da prova pericial e/ou do teste de etilômetro, enquanto o inciso II traria hipótese de crime de perigo concreto, apontando a necessidade de comprovação casuística do perigo. Nesse passo haveria infração à proporcionalidade, tratando-se com mais rigor aquele que apresenta menos resistência à apuração dos fatos e com menos rigor aquele que se opõe frontalmente à investigação estatal.
A alegação acima até aparenta coerência, mas não resiste à demonstração de que não passa de recurso retórico. Em primeiro lugar parte de uma falsa premissa, generalizando algo que é particular. A falsa premissa é a de que todo aquele que sopra um etilômetro ou permite retirada de sangue está pretendendo colaborar com a Justiça e produzir prova contra si mesmo numa espécie de autoimolação santificada pelo arrependimento. Abandonada nos escaninhos poeirentos e cheios de teias de aranha da história, a figura idealizada do “bom selvagem”, parece que agora vem ressurgir na forma da moderna ereção da figura do “bom motorista bêbado”!
È claro que pode haver sim quem se proponha a produzir prova contra si mesmo, arrependido e reconhecendo o erro perpetrado, assim como existem pessoas que confessam espontaneamente crimes cometidos no dia a dia forense e policial, revelando mesmo o intuito de colaborar com a Justiça e demonstrando sincero arrependimento de seus atos. No entanto, isso não pode ser generalizado. Há quem confesse porque não tem outra saída, porque vislumbra uma atenuante que lhe é de conhecimento ou indicada por seu advogado ou mesmo pelo Delegado, Juiz ou Promotor. Assim também muitos sopram o etilômetro ou retiraram sangue para exame, esperando com isso que a taxa de alcoolemia esteja abaixo da legalmente incriminada.
A retórica do argumento neste aspecto é facilmente detectável dentre as falácias usuais. A primeira que transparece é a chamada “falácia secundum quid” (negligenciar qualificações), sendo um de seus exemplos mais corriqueiros a “falácia do acidente recíproco ou falácia da generalização apressada”. Ela consiste no erro de tentar “argumentar a partir de um caso particular para uma regra geral não especialmente apropriada a este mesmo caso. Um exemplo deste tipo de argumento poderia ser este: ‘Nandu (uma avestruz) é um pássaro que não voa; logo, nenhum pássaro voa”. [2] Trazendo para o nosso caso: “João é um bêbado bonzinho que sopra o etilômetro para ajudar o Estado a provar sua embriaguez ao volante; logo todo bêbado é bonzinho e sopra o etilômetro com essa mesma finalidade”!
Também é interessante perceber que o aceno com a violação da proporcionalidade como que a defender a preservação dos direitos individuais no caso concreto acaba, nas entrelinhas, por negligenciar ou até mesmo proceder a uma valoração negativa quanto ao uso de um direito constitucional do investigado ou réu, qual seja o direito de não produzir prova contra si mesmo. Ao afirmar que aquele que se nega a fazer teste de etilômetro ou a retirar sangue para exame toxicológico deveria ter um tratamento mais rigoroso ou pelo menos não poderia ter um tratamento mais benéfico do que aquele que concorda com os exames e testes, está se operando insidiosamente e talvez até mesmo inconscientemente, uma demonização do indivíduo que simplesmente exerce um direito processual penal e constitucional. Por que aquele que se nega aos testes e exames, no exercício regular de um direito fundamental, deve ser avaliado de forma negativa?
Além disso, a assertiva da violação da proporcionalidade nesses casos confunde uma questão de fato com matéria de direito. A maior ou menor dificuldade estatal na produção da prova (questão de fato), especialmente tendo em vista a atuação defensiva do investigado ou réu, seja na autodefesa ou na defesa técnica não pode, de forma alguma, ser argumento levantado para justificar um tratamento mais ou menos benéfico. Será que aquele que nega a prática criminosa ou usa de seu direito ao silêncio em autodefesa deve ser avaliado negativamente? A lei e a constituição dizem o reverso, não é? Que se saiba o silêncio não pode ser interpretado contra o réu, assim como o uso de seu direito à não autoincriminação e não produção de prova contra si mesmo! Será que o acusado ou indiciado que é assistido por um advogado combativo deve ser avaliado negativamente pelo julgador e até mesmo, como parece ser proposto, pelo legislador? Doutra banda, mereceria tratamento mais brando todo aquele que subservientemente abrisse mão de seus direitos fundamentais constitucionalmente tutelados e se entregasse de bom grado à sanha punitiva estatal?
A verdade é que a argumentação não se sustenta e chega a tender para um autoritarismo que num primeiro momento parece pretender se levantar para combater!
Conclui-se, portanto, que não há falar em violação de proporcionalidade entre os incisos I e II do artigo 306, CTB, sendo o primeiro descritivo de crime de perigo abstrato (ou notório) e o segundo de crime de perigo concreto. Inclusive, nada impede que o julgador, no caso do inciso I, analisando o caso específico sob sua jurisdição e constatando a conduta pós delitual do réu, o qual efetivamente demonstre não subserviência ao Estado, mas consciência de seu desvio e vontade sincera de reforma de sua postura pessoal perante os regramentos legais, possa levar isso em consideração na dosimetria da pena – base, nos termos do artigo 59, CP ou mesmo artigos 65 e 66 do mesmo Codex (atenuantes genéricas nominadas e inominadas respectivamente). Aliás, isso não deixa de ser possível também em relação àquele que se enquadre inicialmente no inciso II do artigo 306, CTB, tudo dependendo do caso concreto sob análise judicial e não de generalizações idealizadas para o bem ou para o mal.
REFERÊNCIAS
AUDI, Robert. Dicionário de Filosofia de Cambridge. Trad. João Paixão Netto e Edwino Aloysius Royer. São Paulo: Paulus, 2006.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova Lei Seca. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.
[1] Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova Lei Seca. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013, p. 59.
[2] AUDI, Robert. Dicionário de Filosofia de Cambridge. Trad. João Paixão Netto e Edwino Aloysius Royer. São Paulo: Paulus, 2006, p. 322.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A falsa premissa do tratamento penalmente desproporcional entre os incursos nos incisos I ou II do artigo 306, CTB (embriaguez ao volante) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 abr 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1478/a-falsa-premissa-do-tratamento-penalmente-desproporcional-entre-os-incursos-nos-incisos-i-ou-ii-do-artigo-306-ctb-embriaguez-ao-volante. Acesso em: 29 nov 2024.
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