Novamente a Corte Suprema brasileira (Recurso Extraordinário - RE 453.000) ignorou a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Fermín Ramírez contra Guatemala, sentença de 20.06.2005), julgando constitucional todas as implicações legais decorrentes da reincidência, como, por exemplo, o agravamento da pena do segundo crime, onde o autor não é punido pelo que “fez” (culpabilidade pelo fato praticado), sim, pelo que “é” (reincidente e, por presunção, mais perigoso).
Na Corte Suprema argentina foi o ministro E. Raúl Zaffaroni (processo 6.457/09, Caso Taboada Ortiz) quem cuidou do mesmo assunto, julgando inconstitucional todos os dispositivos legais que preveem agravamento de pena em relação ao reincidente. Dentre outras, cabe destacar as seguintes considerações no seu voto:
“Fica claro que a pena aplicada não guarda relação com a culpabilidade pelo fato, sim, reprova-se o autor pela sua qualidade de reincidente, premissa que denota a aplicação de pautas vinculadas ao direito penal de autor e da periculosidade. Cabe destacar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que a invocação da periculosidade ‘constitui claramente uma expressão do exercício do ius puniendi estatal sobre a base de características pessoais do agente e não do fato cometido, isto é, substitui o direito penal do fato, típico do sistema penal da sociedade democrática, pelo direito penal de autor, que abre as portas para o autoritarismo, precisamente em uma matéria na qual se acham em jogo bens jurídicos de grande hierarquia (...) Em consequência, a introdução no texto legal da periculosidade do agente como critério para a qualificação típica dos fatos e para a aplicação de certas sanções, é incompatível com o princípio da legalidade criminal e, por conseguinte, contrário à Convenção Americana de Direitos Humanos (CIDH, Serie C. n° 126, caso Fermín Ramírez contra Guatemala, sentença de 20 de junho de 2005)”.
O sistema democrático de direito não permite que se imponha qualquer tipo de agravamento da pena com base no que a pessoa “é”, senão unicamente pelo que ela fez. O fundamento da pena em nenhum caso poderá se valer da personalidade ou periculosidade do agente. Vale a conduta lesiva praticada. Toda medida penal deve ter proporcionalidade com a gravidade dos fatos praticados, não com a personalidade do agente. A aplicação de uma pena com base em antecedentes criminais viola princípio da culpabilidade e vai muito além da reprovação da conduta praticada, o que significa direito penal de autor, inaceitável no estado de direito. Todo dispositivo legal que agrava a pena pela reincidência é inconstitucional e inconvencional (porque conflita com o artigo 9º da CADH). Viola o princípio da culpabilidade assim como do “ne bis in idem”.
De outro lado, se esse agravamento fosse constitucional e convencionalmente válido, deveria constar da denúncia e ser devidamente comprovada a periculosidade do agente em cada caso concreto (com exames, provas psicológicas e psiquiátricas etc.). Em síntese: o problema do agravamento da pena em razão da reincidência viola não só o direito penal do fato como também o sistema processual (porque a pena é agravada com base numa presunção, que dispensa a prova concreta da periculosidade do agente).
O sistema penal brasileiro ainda está totalmente impregnado da velha periculosidade do positivismo criminológico do final do século XVIII (Lombroso, Ferri e Garófalo). Nem sequer a reforma penal de 1984 conseguiu mudar essa cenário da periculosidade. Mas tudo isso conflita com a jurisprudência da Corte Interamericana. Fica esse novo caminho aberto para quem quer continuar discutindo o tema (em defesa do direito penal do sistema democrático de direito, que é o direito penal do fato).
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