Objeto de acalorados debates contemporâneos o denominado “Direito Penal do Inimigo” chama a atenção principalmente pelo seu caráter desumanizador na medida em que admite uma divisão arbitrária entre pessoas e não – pessoas contida na polarização entre o “Direito Penal do Cidadão” e o “Direito Penal do Inimigo”. Ao cidadão estariam reservadas todas as garantias processuais e penais clássicas, mas para o inimigo essas garantias seriam bastante atenuadas ou mesmo suprimidas. E essa supressão de garantias se daria devido ao fato de que o inimigo seria alguém que constitutivamente, em seu ser e pensar, não se predispõe, ou melhor, se opõe deliberadamente a toda a ordem jurídica vigente. Essa oposição se constituiria em uma espécie de opção do indivíduo em alijar-se da sociedade e inclusive de suas proteções, razão pela qual não teria mais direito às garantias penais e processuais penais que estão dispostas na ordem jurídica à qual ele mesmo rechaçou.
Jakobs faz referência a Rousseau, Hobbes e Fichte para afirmar que “o status de cidadão, não necessariamente, é algo que não se pode perder”, dando especial destaque aos chamados “crimes de alta traição” em que o indivíduo se volta contra o Estado que o abriga (JAKOBS, MELIÁ, 2007, p. 26 – 29). E nessa senda conclui que “um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa” (JAKOBS, MELIÁ, p. 36).
Percebe-se claramente que no cerne do pensamento que norteia o Direito Penal do Inimigo está a concepção de que a condição de “pessoa” não é algo que se deve ao homem pelo simples fato de ser homem, mas sim uma espécie de “concessão” ou “benefício” do Estado. Também se pode notar com muita nitidez o fato de que no Direito Penal do Inimigo está embutido um “Direito Penal de Autor” e não um “Direito Penal do fato”, sob a égide do qual o sujeito é punido não por aquilo que faz, mas por aquilo que é e pensa. É por isso que no bojo do Direito Penal do Inimigo é admitida uma antecipação da repressão penal que pode chegar a abarcar a fase de cogitação (“cogitatio”) do “iter criminis”. Nas palavras de Jakobs:
“Portanto, o Direito Penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade” (JAKOBS, MELIÁ, 2007, p. 37).
Não resta dúvida de que a possibilidade de ereção de um Direito Penal do Inimigo constitui uma terrível “ameaça para os princípios e garantias do Estado de Direito” (MUÑOZ CONDE, BUSATO, 2011, p. 32), uma vez que qualquer Direito Penal que se pretenda democrático ou aceitável no contexto de um Estado de Direito “deve tratar todo homem como pessoa responsável, e não pode ser lícito nenhum ordenamento que estabeleça regras ou procedimentos de negação objetiva da dignidade do ser humano, sob hipótese alguma” (MARTÍN, 2007, p. 176). A alegação de que o “delinquente por convicção”, ou seja, aquele que se nega a compor a comunidade jurídico – social, poderia perder o status de pessoa e suas respectivas garantias, não pode prosperar sob pena de que aquilo que se chama de “Direito” se confunda com a simples imposição da “Força” ou do “Poder Arbitrário”. Quando se fala em “Direito”, se está falando em dialética, em “polêmica entre ideias” e não em mera submissão ou aniquilação violenta do homem pelo homem (MARTÍN, 2007, p.177).
A grande mestra História já ensinou as barbaridades que podem emergir dessas concepções totalitárias e excludentes. A exclusão totalitária é algo mais intenso, violento e visceral do que qualquer autoritarismo ou ditadura na medida em que não se contenta em regular milimetricamente o agir das pessoas, mas também e especialmente, o seu ser interior. Não se trata tão somente de desumanizar o humano mediante um adestramento da conduta, mas por meio de uma invasão total de seu ser, de seu pensamento, de seus sentimentos e ideias. Como aduz Arendt:
“É facilmente perceptível uma das diferenças mais berrantes entre o antigo governo pela burocracia e o moderno governo totalitário: os governos russos e austríacos de antes da Primeira Guerra Mundial contentavam-se com a ociosa irradiação do poder e, satisfeitos em controlar seus destinos exteriores, deixavam intacta toda a vida espiritual interior. A burocracia totalitária, conhecendo melhor o significado do poder absoluto, interfere com igual brutalidade com o indivíduo e com sua vida interior” (1989, p. 277).
O traço de invasão da convicção interna dos sujeitos presente no Direito Penal do Inimigo lhe confere extrema proximidade senão identidade com ideologias totalitárias que, como já dito, já demonstraram todo o mal de que são portadoras.
Nesse contexto, eliminadas as garantias das pessoas convoladas em “inimigos do poder”, é natural o emergir mais ou menos sutil de conceitos como “segurança nacional”, “crime de lesa pátria”, “crime de lesa majestade”, em suma, ofensas diretas a um Estado autolegitimado e intangível. Essas sempre foram molas propulsoras para a barbárie da eliminação dos dissidentes, do emprego da tortura e de outros métodos cruéis e desrespeitosos da dignidade humana na investigação e no processo.
Tratando especificamente da história da tortura, Mellor esclarece que a partir da construção de uma forma de “criminoso político” que se autocoloca à margem do Estado ao qual deveria pertencer, surge a pretensão de transformá-lo não em um destinado à Justiça, mas em um inimigo, o inimigo interno. Ele se torna o traidor que “se excluye por si mismo de su comunidad. ¿Cómo, a partir de ese momento, podria invocar el derecho vigente en ésta? La idea común (…) es que el criminal político ha declarado, en alguna forma, la guerra al Estado. No hay pues por qué discutir con él; se le abate” (1967, p. 221). Ou seja, vige a partir da visão totalitária ínsita ao Direito Penal do Inimigo um regime de guerra interna em que a tortura e a eliminação pura e simples dos dissidentes é algo natural.
Por tudo isso é urgente negar qualquer espécie de tolerância para com um chamado Direito Penal do Inimigo. É preciso ser com ele intolerante e eliminá-lo enquanto hipótese científica aceitável, antes que a intolerância dele destrua nossa humanidade.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 2ª. ed. Trad. André Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
MÁRTIN, Luis Gracia. O horizonte do finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Trad. Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: RT, 2007.
MELLOR, Alec. La Tortura. Trad. José Goñi Urriza e German O. Galfrascoli. Buenos Aires: Malabia, 1967.
MUÑOZ CONDE, Francisco, BUSATO, Paulo César. Crítica ao Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
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