Em artigo que publiquei na Folha de S. Paulo (13.10.12), secundado recentemente por Valério Mazzuoli, afirmei que, do ponto de vista do Estado de Direito vigente, os réus do mensalão poderiam, sim, apresentar reclamações junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que pode levar o caso para a Corte respectiva (em San Jose da Costa Rica), sobretudo tendo em vista o precedente Barreto Leiva, onde este último tribunal garante o duplo grau de jurisdição, ou seja, no campo criminal, todo réu tem direito a dois julgamentos, mesmo que o primeiro tenha emanado da Corte Máxima do País (como é o caso do mensalão).
A reação do ministro JB (veja o portal G1), a essa tese, foi a mais contundente e populista imaginável (do jeito que o povão não letrado juridicamente entende):
“Barbosa diz que falar em recurso no exterior 'é enganar o público'. Para relator, corte internacional não reverte resultado do julgamento. Advogados falaram em questionar decisão do Supremo Tribunal Federal. O relator do processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, afirmou que os advogados dos réus tentam "enganar o público leigo" quando dizem que questionarão o resultado do julgamento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). "É enganar o público leigo e ganhar dinheiro às custas de quem não tem informação. Que leiam a Constituição brasileira, que leiam as leis que regem os tribunais", afirmou o relator do mensalão após sessão desta terça, na qual José Dirceu foi condenado por corrupção ativa (oferecer vantagem indevida). Na semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello já havia afirmado não ver chances de reverter as condenações e chamou a possibilidade do recurso de "direito de espernear". Sediado na cidade de San José, capital da Costa Rica, a corte interamericana é voltada para processos em que tenham ocorrido violações de direitos humanos. Para o ministro Joaquim Barbosa, dizer que a decisão do Supremo pode ser revertida é um "cinismo". “Pergunte se em algum lugar do Brasil nos últimos 30 anos, 40, 50, 60 anos, tenha sido procedido de maneira diferente. Porque é muito cinismo dizer isso, uma pessoa que já foi juiz ou procurador, vir a público enganar as pessoas com argumentos desse tipo”, afirmou Barbosa.”
Em seu voto no processo do mensalão o Min. Celso de Mello, contrariando frontalmente a verborragia do ministro JB, afirmou (veja Conjur):
“O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Mostra-se claro inexistir qualquer nexo de prejudicialidade externa entre esta causa penal e qualquer procedimento instaurado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. É que não se pode determinar a suspensão prejudicial deste processo penal em razão de alegadamente existir provocação formal dirigida, nos termos do art. 44 do Pacto de São José da Costa Rica, à Comissão (não à Corte) Interamericana de Direito Humanos. Assinale-se, a título de mero registro, que, no contexto do Sistema Interamericano de Defesa e Proteção dos Direitos Humanos, a pessoa física ainda não dispõe de legitimidade ativa para fazer instaurar, desde logo, ela própria, processo perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, eis que essa qualidade para agir junto a referido organismo judiciário restringe-se, unicamente, aos Estados-partes e à Comissão Interamericana (Pacto de São José, Artigo 61, nº 1), uma vez atendidos os requisitos de procedibilidade fixados no Artigo 46 e nos Artigos 48 a 51 da Convenção Americana (Artigo 61, nº 2). De qualquer maneira, no entanto, não há como inferir, das cláusulas que compõem o Pacto de São José da Costa Rica, a existência de relação de prejudicialidade externa que imponha a suspensão deste processo penal pelo só fato de haver postulação deduzida perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) - E seria absurda, não é, Ministro?
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Nada impedirá, contudo, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, D.C., esgotada a jurisdição doméstica (ou interna) atendidas as demais condições estipuladas no Artigo 46 e nos Artigos 48 a 51 do Pacto de São José, submeta o caso à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em ordem a permitir que esta exerça o controle de convencionalidade. Não há, porém, possibilidade de se determinar, neste momento, a suspensão prejudicial da presente causa penal.
O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) -
Sobrestamento do processo.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR)
- Ministro Celso, apenas uma nota brevíssima de Direito Comparado: essa possibilidade existe no sistema de Direito comunitário europeu. Há um instituto chamado reenvio prejudicial, ou renvoi préjudiciel: quando um juiz local tem uma dúvida, ou alguém, uma das partes suscita um incidente acerca do Direito comunitário, sobresta-se o processo e faz-se uma consulta à Corte europeia, sediada em Luxemburgo. Mas, claro que o sistema interamericano não agasalhou essa hipótese.
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Há, presentemente, no contexto do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, celebrado em 1966 (e a que o Brasil somente aderiu em 1992), um mecanismo viabilizador do acesso direto e imediato da própria pessoa física interessada à jurisdição tutelar do Comitê de Direitos Humanos, incumbido de atuar como órgão de implementação dos direitos e garantias fundamentais em escala global, pois aquele Pacto Internacional, por haver sido promulgado no âmbito das Nações Unidas, reveste-se de projeção universal. Essa significativa ampliação da legitimidade ativa em favor de qualquer pessoa interessada decorreu do Protocolo Adicional Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Não é, porém, o que se registra no âmbito do Pacto de São José da Costa Rica, segundo o qual a pessoa interessada (ainda) não dispõe de “locus standi” para, ela própria, fazer instaurar, de imediato, a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Mas essa é uma hipótese de aplicação do próprio Direito europeu.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (REVISOR) - Sim, não tem nada a ver com nossa sistemática.
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Tem razão o eminente Revisor.
SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) - Não há como. E mais, Ministro Celso: Justiça que se preza não se submete, ela própria, a órgãos externos de natureza política. E a Comissão o é.
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: A questão central, neste tema, Senhor Relator, considerada a limitação da soberania dos Estados (com evidente afastamento das concepções de JEAN BODIN), notadamente em matéria de Direitos Humanos, e a voluntária adesão do Brasil a esses importantíssimos estatutos internacionais de proteção regional e global aos direitos básicos da pessoa humana, consiste em manter fidelidade aos compromissos que o Estado brasileiro assumiu na ordem internacional, eis que continua a prevalecer, ainda, o clássico dogma – reafirmado pelo Artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, hoje incorporada ao ordenamento interno de nosso País (Decreto nº 7.030/2009) –, segundo o qual “pacta sunt servanda”, vale dizer, “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, sendo-lhe inoponíveis, consoante diretriz fundada no Artigo 27 dessa mesma Convenção de Viena, as disposições do direito interno do Estado nacional, que não poderá justificar, com base em tais regras domésticas, o inadimplemento de suas obrigações convencionais, sob pena de cometer grave ilícito internacional. Não custa relembrar que o Brasil, apoiando-se em soberana deliberação, submeteu-se à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que significa, considerado o formal reconhecimento, por parte de nosso País, da competência da Corte (Decreto nº 4.463/2002), que o Estado brasileiro comprometeu-se, por efeito de sua própria vontade político-jurídica, “a cumprir a decisão da Corte em todo caso” de que é parte (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 68). “Pacta sunt servanda”...
O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Da Corte, mas não da Comissão.
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O Brasil, no final do segundo mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Decreto nº 4.463, de 08/11/2002), reconheceu como obrigatórias a jurisdição e a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção” (Pacto de São José da Costa Rica, Artigo 62), o que legitima o exercício, por esse importante organismo judiciário de âmbito regional, do controle de convencionalidade, vale dizer, da adequação e observância, por parte dos Estados nacionais que voluntariamente se submeteram, como o Brasil, à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana, dos princípios, direitos e garantias fundamentais assegurados e proclamados, no contexto do sistema interamericano, pela Convenção Americana de Direitos Humanos.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - De resto, vamos fazer uma observação. Raramente teve-se um processo com tal cuidado de observância do devido processo legal; quer dizer, o recurso à Corte Interamericana – vamos reconhecer – é um recurso de retórica processual.
O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) - Pois é. Eu tive o cuidado de trazer tudo, quase tudo a este Plenário, exatamente para evitar esse tipo de mumbo jambo, não é?
O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (PRESIDENTE) – Em rigor, essas matérias estão preclusas desde o início.
O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (RELATOR) – Estão totalmente preclusas.”
Juristas (como o JB) formados sob o império do tradicional modelo do Estado de Direito liberal (onde se impõe o legalismo), que é herança do século XIX, sobretudo depois da Revolução francesa, têm muita dificuldade de entender o funcionamento do pós-moderno Estado de Direito democrático internacional e universal (veja nossos livros Direito Supraconstitucional, Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos etc.).
JB chegou a afirmar que só “leigos” admitem recurso para o Sistema Interamericano. Só “leigos” e “cínicos”. O Min. Celso de Mello, que de leigo não tem nada, categoricamente confrontou o entendimento (juridicamente) estapafúrdio de JB que, animado pela popularidade das suas declarações, vem “habilmente” iludindo o povo (juridicamente) desletrado com seus arroubos verborrágicos do tipo “vá chafurdar no lixo”, “estão enganando os leigos”, “são cínicos os que admitem recursos para po Sistema Interamericano”, “é só ler a Constituição e as leis” etc. A considerar o incensurável e brilhante voto do Ministro Celso de Mello, realmente está faltando leitura da Constituição e das leis brasileiras, assim como dos tratados internacionais firmados pelo Brasil.
Deputado Federal por São Paulo (2019-2023) - é professor e jurista, Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Exerce o cargo de Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Atuou nas funções de Delegado, Promotor de Justiça, Juiz de Direito e Advogado. Atualmente, dedica-se a ministrar palestras e aulas e a escrever livros e artigos sobre temas relevantes e atuais do cotidiano.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Luiz Flávio. Min. Celso de Mello diz que JB (o herói nacional) está errado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 maio 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1513/min-celso-de-mello-diz-que-jb-o-heroi-nacional-esta-errado. Acesso em: 29 nov 2024.
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