Promovemos na sede do AD (em 27.05.13) um debate (que já está disponível no atualidadesdodireito.com.br) sobre “Direito autoral: a reserva do conhecimento dos fatos”, tendo como foco a polêmica criada por Roberto Carlos e sua equipe jurídica, em torno do livro “Jovem Guarda: Moda, música e juventude”. Ele pode até se sentir ofendido com alguns livros já escritos ou que serão escritos a seu respeito, mas neste caso o seu ato foi totalmente desarrazoado, equiparando-se às grandes queimas históricas de livros.
A Wikipédia nos informa que a história testemunhou a queima da Biblioteca de Alexandria pelas forças Cristãs, da Biblioteca de Bagdad pelos Mongóis, a queima de livros e o enterrar de estudiosos na Dinastia de Qin na China, a destruição dos códices Maias pelos conquistadores e padres Cristãos espanhóis, a queima de livros Muçulmanos e Judeus por Católicos durante a Inquisição, a queima da Torah pelos Cristãos na Alemanha e a destruição da Biblioteca Nacional de Sarajevo. Em 1193, após derrotar Jai Chand, diz-se que o exército de Ghauri, maioritariamente Muçulmano, queimou a Biblioteca de Nalanda, conhecida como Dharma Gunj, Montanha da Verdade. Hitler mandou queimar milhares de livros logo que chegou ao poder etc.
A polêmica é a seguinte: no início do mês de abril, os advogados do cantor Roberto Carlos enviaram uma notificação extrajudicial exigindo a interrupção da venda e o recolhimento dos exemplares à disposição do livro "Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude", originada de uma dissertação de mestrado de Maíra Zimmermann (Estação Letras e Cores e Fapesp), historiadora e professora de moda e cultura (FAAP).
A notificação insurge-se tanto contra a capa – um croqui nada caricato () do trio Roberto/Erasmo/Wanderléa – alegando o uso indevido de imagem, quanto contra seu conteúdo, pois teria trazido detalhes sobre a trajetória de vida e da intimidade do cantor. Ao final, o documento exige que "seja cessada a comercialização do referido livro, bem como ordenado o recolhimento dos exemplares à disposição, no prazo de 10 dias, sob pena das medidas judiciais cabíveis.". Essa posição prontamente se revelou contraditória, pois em entrevista concedida por telefone ao jornal ‘Estadão’, o advogado Marco Campos (acertadamente) afirmou que não iria pedir a retirada dos exemplares ().
O livro de Maíra não contém uma biografia do cantor, nem revela detalhes de sua vida íntima; não conta detalhes de sua intimidade nem da sua vida pessoal. Ao contrário, trata-se de uma obra acadêmica sobre a construção da cultura no Brasil dos anos 60, erigida sob os influxos do movimento denominado “Jovem Guarda”, envolvendo aspectos como moda, costumes, comportamentos, diálogos, família e influência dos artistas no desenho da nova adolescência. Portanto, atrelado à liberdade de expressão, à memória e à história do país. Trata-se de uma obra cultural, que conta um trecho da história do Brasil.
A conduta de Roberto Carlos – repetida em episódios pretéritos () - ganha destaque no momento atual, em que se discutem eventuais mudanças na lei civil, a qual passaria a permitir que uma biografia possa ser lançada sem a autorização prévia do biografado. Prestes a ser encaminhada para votação no Senado, depois de ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o projeto acaba de voltar à Câmara a pedido do deputado federal da bancada evangélica Marcos Rogério (PDT-RO) ().
Minhas conclusões extraídas do debate acima referido, depois de ouvir os jornalistas Júlio Maria (Estadão) e Edmundo Leite (Estadão), assim como a autora do livro e a professora doutora Suzana Torres, mais a advogada Luciana Shimabukuro (cf. aqui no atualidadesdodireito.com.br), são as seguintes:
1) Que o atual art. 20 do CC (que determina a autorização dos interessados para a publicação de obra biográfica) não se aplica no caso do livro de Maíra, que não é biográfico.
2) Esse art. 20 já poderia (desde logo) ser interpretado conforme a Constituição, o que significaria que o comando é da liberdade de expressão, com responsabilidade. Que cada um poderia (ou pode) escrever o que queira, desde que assuma em seguida a responsabilidade (civil e penal) pelo que foi escrito.
3) Que o juiz jamais poderia impedir a publicação de qualquer livro (porque isso viola a constituição federal, mais precisamente a liberdade de expressão, de crítica etc.). Vivemos num estado de liberdade e não em uma ditadura.
4) Que o tempo das censuras acabou, no ordenamento jurídico-constitucional. Mas isso não significa o fim do direito à privacidade, intimidade, fama, boa reputação etc.
5) Que qualquer tipo de censura significa “Estado de Exceção”. O que a CF garante a quem se sente ofendido é o direito de indenização.
6) Que cada pessoa assuma a responsabilidade pelo que faz (e pelo que escreve). Todo abuso será reprimido por meio de indenização.
7) Quem se sente ofendido com o texto publicado deve ir a juízo para postular o que entender de direito em termos de indenização (nunca para censurar o livro).
8) Que o juiz cautelarmente poderia, em tese, mandar bloquear parte da receita do livro assim como dos direitos autores, para garantia de uma eventual e futura indenização. Freios e contrapesos. Havendo fumaça do bom direito, não há como não pensar em garantias de uma futura indenização.
9) Que uma obra cultural, histórica e acadêmica, como o livro questionado, está completamente fora de qualquer tipo de discussão sobre sua legitimidade (e lisura). Ninguém pode impedir qualquer pessoa de escrever a história do Brasil (ou de um momento dela). As futuras gerações somente entenderão o Brasil quando souberam do que se passou com as anteriores. A proibição de uma obra histórica e cultural tem o mesmo significado que queimar novamente a Biblioteca de Alexandria.
10) A jovem guarda foi um momento cultural e histórico ímpar, que merece sempre ser respeitado e retratado em obras ou trabalhos acadêmicos, sem qualquer tipo de censura retrógrada.
11) Que esse movimento constitui um antes e um depois da juventude brasileira, que tem o direito de saber o que efetivamente se passou naquela época.
12) Constitui um desserviço à nação a censura de qualquer tipo de trabalho acadêmico que retrate com fidelidade esse período histórico, sem qualquer propósito de ofender quem quer que seja.
13) Que a Universidade, nascida na Idade Média (Bolonha e Salamanca), veio com o escopo de discutir as ciências, as artes, a política, as ideologias, enfim, o mundo, com total autonomia.
14) O povo que não conta com Universidades autônomas e livre circulação das ideias tem como destino a ignorância eterna.
15) No entrechoque do direito à imagem e o direito à informação, prepondera o segundo nos Estados democráticos de Direito (na Inglaterra, desde o século XVII), assumindo seu autor as devidas responsabilidades pelo que informa.
16) O interesse nacional, histórico e cultural deve sempre ter prioridade em relação a qualquer tipo de interesse privado que tenta impedir a sua difusão.
17) Houve exagero na censura feita por Roberto Carlos em relação ao livro de Maíra Zimmermann. O exagero foi compensado, em parte, em seguida, quando seu advogado disse que a obra não seria tirada de circulação. Bom senso.
18) Quem desfruta do bônus da fama tem o ônus da publicidade da sua história, no contexto da cultura do país.
19) Que o legislador altere rapidamente o art. 20 do CC, evitando expressões vagas e porosas (“dimensão pública”, “interesse coletivo” etc.) no novo texto, que vão permitir juízes retrógrados impedirem a circulação de livros.
20) Roberto Carlos continua sendo nosso rei e tendo nossa admiração, mas não pode se valer da falácia da autoridade para adequar o mundo a seu bel prazer.
Caricatura: 1 Representação pictórica ou descritiva, que exagera jocosamente as peculiaridades ou defeitos de pessoas ou coisas. 2 Imitação cômica ou ridícula. 3 Indivíduo ridículo pelo aspecto ou pelos modos. Disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=caricatura.
Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,maquina-quente-,1024862,0.htm.
Em 1979, ele conseguiu, na Justiça, que “O Rei e Eu”, de Nichollas Mariano, seu ex-mordomo, fosse censurada. Em 2007, a Editora Planeta teve que recolher os exemplares de “Roberto Carlos em Detalhes”, escrito por Paulo César de Araújo.
Segundo o deputado, é “preciso explicar melhor esse conceito de dimensão pública”, termo utilizado pelo PL 393/11. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,maquina-quente-,1024862,0.htm.
Deputado Federal por São Paulo (2019-2023) - é professor e jurista, Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito Penal pela USP. Exerce o cargo de Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Atuou nas funções de Delegado, Promotor de Justiça, Juiz de Direito e Advogado. Atualmente, dedica-se a ministrar palestras e aulas e a escrever livros e artigos sobre temas relevantes e atuais do cotidiano.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Luiz Flávio. Roberto Carlos e a censura de livros: muitas emoções, pouca razão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 maio 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1523/roberto-carlos-e-a-censura-de-livros-muitas-emocoes-pouca-razao. Acesso em: 29 nov 2024.
Por: Leonardo Sarmento
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Carlos Eduardo Rios do Amaral
Precisa estar logado para fazer comentários.