O Brasil ganhou destaque mundial nos últimos dias com os seus protestos massivos e, nos últimos vinte anos, com suas políticas de redução da miséria, porém, não podemos perder de vista que o problema da desigualdade é muito mais profundo do que se pensa. É claro que não existe liberdade sem o pão, mas não é um prato de comida diária dado pelas “bolsas governamentais” (que já representam uma conquista, mas insuficiente) que confere dignidade ao ser humano. Não se pode ver uma árvore sem enxergar a floresta.
A barbárie do modelo discriminador etnicista e sócio-econômico do Estado brasileiro carece de uma gestão técnica (progressista), mas deixa de ser barbárie. A ferida é mais dramática. Muitos trabalhadores e estudantes, sobretudo de etnias (grupos sociais) discriminadas, são claramente maltratados, segregados e humilhados. São camadas “médias” ou “inferiores” da sociedade que chegaram na exaustão (diante do modelo econômico e político vigentes). Nós não somos um país que respeita a igualdade civil ou social, daí a precariedade da liberdade e da dignidade, agradada pelo eclipse da fraternidade.
O desafio gigante que se põe diante dos nossos olhos consiste precisamente em como desatar (local e mundialmente) o nó da segregação, da neoescravidão e da discriminação secular. Programas governamentais de redução da miséria são relevantes, mas nunca poderiam deixar de ser transitórios, porque não retratam nada mais que uma gestão técnica de uma barbárie. Tão relevante quanto entregar o “peixe” pronto é ensinar a pescar, ou seja, conferir a todos (indistintamente) iguais oportunidades de crescimento na vida, o que significa uma qualificadíssima educação, obrigatória até os 18 anos, em período integral.
Para muito além das políticas assistencialistas, tal como postulava no século XVIII o Iluminismo e seus filósofos ou precursores (Kant, especialmente), é a emancipação definitiva (social e econômica) do ser humano que pode reconstruir a nossa história macabra de exploração e violência, ou seja, na escravidão e na guerra civil fraticida.
A atualidade e premência dos movimentos sociais que eclodiram no mês de junho de 2013 são de incontestável reconhecimento, posto que não existe coesão social entre os vários grupos étnicos e/ou discriminados do nosso país. Tampouco está em curso qualquer tipo de programa que tenha por objetivo a pacificação da sociedade brasileira (como um todo), que continua segregacionista, hierarquizada, economicamente neoescravagista, politicamente patrimonialista e clientelista, socialmente em permanente e terrorífico conflito (que retrata verdadeiro estado de guerra civil).
O Bolsa Família retirou da miséria milhões de brasileiros (segundo a FVG), as classes médias cresceram, a economia foi estabilizada (depois do plano real, de 1994), a inflação foi controlada (somente agora volta a nos assustar), Lula fechou seu governo com a menor taxa de desemprego (5,7%) e deixou o Brasil crescendo 7,5% ao ano. Os governos de FHC e Lula promoveram a inclusão social de muitas pessoas, mas a discriminação (e separação de classes) continua acirrada e candente. É nessa ferida que ninguém está colocando o dedo pra valer. Não existe diálogo entre as várias populações segregadas. Continuamos, apesar de todos os progressos (indiscutíveis), com a mesma política social e econômica suicida da época da fundamentação do Estado (1822).
Violência infinita e a lógica da guerra civil
O confronto entre os vários grupos éticos (superiores e inferiores) vai se agravando (cada vez mais) em todo momento. Incontáveis cartazes denunciaram isso em junho de 2013. Para contenção da insurreição o Estado continua com sua lógica de guerra civil, usando sua máquina martífera (policial) para isso. Essa é praticamente a única política de segurança pública no país (excepcionando-se o Pronasci – que está difícil de emplacar como deveria - e, em alguns aspectos, as UPPs).
Na origem dos protestos massivos residem, também, a micro e a macrocriminalidade, que estão corroendo nossas relações sociais, minando as forças integradoras e unificadoras da sociedade. Aquela imagem história, de pessoas correndo com seus fuzis, quando a polícia (como máquina de guerra) invadiu o Complexo Alemão (em novembro de 2010), é o retrato da ineficiência da política pública brasileira na área de segurança, visto que dispersa os criminosos, desloca-os dos seus “habitats”, mas nada faz de concreto para a sua prevenção. Promover a migração do crime e dos criminosos (de um local para outro) não significa restabelecer a paz.
Os germes da violência urbana, da criminalidade e da discriminação étnicas, do terrorismo e da corrupção policial, do desemprego, da miséria, da desigualdade social e econômica etc. estão presentes em todos os lugares. O vírus do crime violento (que é bem distinto do crime fraudulento, típico mas não exclusivo das camadas superiores) pode se instalar (e vem se instalando) facilmente em qualquer um dos territórios balcanizados (segregados) do país.
O Brasil precisa urgentemente negociar uma trégua na sua guerra civil de origem étnica (e fraticida). A solução violenta dos conflitos só gera mais violência. Apesar de todos os avanços na economia, não se pode esquecer que o Brasil continua sendo o 18º país mais violento do mundo.
Precisa estar logado para fazer comentários.