Em dezembro de 1784 o filósofo alemão Kant publicava um artigo intitulado “Resposta à pergunta: que é o Iluminismo (a Ilustração)? (Was ist Aufklarung?). A Revolução francesa aconteceria cinco anos mais tarde (1789). A Ilustração (O Iluminismo), como se vê, é um movimento antes de tudo cultural (filosófico). Só depois se converteu no programa político da modernidade. Que é o Iluminismo? Kant respondia: “É a saída do homem de sua menoridade [intelectual] da qual ele mesmo é responsável”.
Que se entende por menoridade? “A incapacidade do homem de servir-se de seu entendimento (de seu pensamento) sem ser dirigido por outras pessoas (por tutores ou conselheiros)”.
Dessa incapacidade o homem é responsável porque falta para ele decisão e coragem. Sapere aude: ousar pensar. Pense, tenha coragem de pensar e de usar o seu próprio entendimento. Emancipe-se! Essa é a grande mensagem do Iluminismo.
No final do século XVIII Kant estimulava o homem (europeu) a “ousar pensar”. O projeto do Iluminismo funda-se, portanto, na emancipação do ser humano, ou seja, no reconhecimento da sua capacidade de pensar e de decidir por si mesmo.
Na origem desse movimento está Descartes, que afirmara: “Penso, logo existo” (“Cogito, ergo sum”). Penso por mim não pelos deuses, nem pelos meus representantes muito menos pelos meus dominantes (pelos meus senhores, pelos meus donos, pelos meus patrões, pelos meus empregadores).
O iluminismo idealizou o ser humano livre, dotado de autodeterminação e responsável pelos seus atos. Autonomia do indivíduo frente a todos os poderes (poder real, poder divino). Homem emancipado, homem político, homem cidadão. Os burgueses foram logo os primeiros a desfrutar dessa condição. Rapidamente, na Europa, o Iluminismo foi fincando suas raízes.
E no Brasil? O Estado brasileiro nasceu em 1822 bastante iluminista em relação à etnia dominante (europeia) e na contramão da história frente às etnias dominadas (africanas, índias, mestiças). A primeira discriminação no Brasil tem raízes étnicas. Enquanto o mundo civilizado era regido pelas luzes, pelas ideias de emancipação (de todos, sem discriminação de grupos), por aqui disseminavam-se trevas (frente a grande parcela da população, a população segregada).
Nega-se, para a maioria dos seus habitantes (para os discriminados étnicos), a trilogia kantiana (a modernidade), fundada (a) na autonomia do indivíduo (no eu), (b) na sua capacidade de pensar e (c) na sua capacidade de decidir por si (seus atos, seu destino).
Nada disso aconteceu em relação aos seguimentos tidos como inferiores. E é aqui que reside o ovo de serpente (as origens) de grande parte da violência e do estado de guerra civil brasileiras. O nó de uma grande parte da violência (que vivemos hoje) foi atado em 1822 e até agora não foi desatado.
Kant atribuía ao próprio homem a “culpa” pela sua não emancipação (pela sua menoridade). A “culpa”, no entanto, pressupõe alguém com capacidade de autodeterminação (livre). Não era essa, na época, a situação da maioria da população brasileira (segregada, separada, discriminada), a quem se negava a autonomia de pensamento, a capacidade de autodeterminação.
Desde a fundação do nosso país, “cada um já sabe o seu lugar (ou melhor: cada qual busca sempre estar no lugar social adequado), o que significa que o princípio da hierarquia é sempre aplicado, pois o maior temor social no Brasil é o de estar fora de lugar, estar deslocado” (DaMatta, Carnavais, malandros e heróis).
No ocidente moderno (destacando-se, nesse ponto, os Estados Unidos, onde vigora a igualdade civil), dizia Dumont (citado por DaMatta, Carnavais, malandros e heróis), “não somente os cidadãos são livres e iguais perante a lei, mas ocorre uma transição, pelo menos na mentalidade popular, do princípio moral da igualdade à crença na identidade básica de todos os homens, pois eles não podem mais ser tomados como instâncias de uma cultura, uma sociedade ou um grupo social, mas como indivíduos existindo em si e por si”. A maior parte da população brasileira (a discriminada), desde o momento da construção do Estado, não era livre nem tampouco era tratada de forma igual na lei.
Nascemos sob a égide da discriminação étnica, ou seja, na contramão da história (em relação às camadas julgadas inferiores), visto que em 1822 o mundo civilizado já estava impregnado dos ideais iluministas, que significa (antes de tudo) o abandono definitivo da menoridade do ser humano (desde que esse ser humano ouse pensar, como dizia Kant), que passa a existir (e pensar) por si e para si. Essa sua emancipação decorreu da sua valentia, da sua ousadia, da sua determinação.
O ser humano, já no final do século XVIII, foi concebido para pensar por si mesmo, livrando-se de todos os seus tutores ou conselheiros, ou seja, dos poderes instituídos (divinos, reais etc.). É aí que, historicamente, começa a liberdade do ser humano, que poderia progressivamente universalizar a “época ilustrada”. Desgraçadamente, ainda não cumprimos no Brasil sequer um terço das promessas civilizadas iluministas. A barbárie, sobretudo da desigualdade, ainda nos acompanha diuturnamente.
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