Não se pode reduzir a relevância do medo em toda a nossa evolução cultural, em vários setores. As religiões nasceram a partir do medo e da ignorância das pessoas diante dos fenômenos da natureza (Lucrécio disse: timor fecit Deus) (veja Carlos París, Ética radical, p. 131). No ano 1000 incontáveis multidões da Idade Média acreditavam no fim do mundo. O medo e os poderes sobrenaturais (fantasia) manipulam a vida das pessoas. Na Idade Média milhares de mulheres foram dizimadas pela Igreja Católica que, para exercer seu domínio, inventou a barbárie de que elas seriam bruxas com poderes sobrenaturais. A ciência tem sido um antídoto contra as irracionalidades decorrentes do medo e da ignorância, mas isso não vem impedindo que as seitas, as magias e as fantasias continuem com força extraordinária em pleno século XXI. É muito grande a capacidade de imaginação da mente humana.
O medo, seja fundado na imaginação humana (medo subjetivo, estimulado pelos meios de comunicação), seja fundado no terror do castigo estatal ou do extermínio, constitui uma das bases da dominação (religiosa, política etc.). É por meio do medo que muitos pais “educam” seus filhos pequenos (“não faça isso, senão o monstro te pega”). O poder político para exercer seu domínio por meio do medo conta com inúmeras formas de repressão, de controle e de estratégias.
Carlos París (Ética radical, p. 132) enfocou dois ângulos dessa questão: “o medo é capaz de se apresentar como castigo ou como proteção”. A partir do castigo cruel e do terror pode-se infligir medo à população (de se recordar os castigos crueis até o século XVIII, retratados no Vigiar e punir de M. Foucault).
Mas a forma mais sutil de domínio do Estado reside em outra estratégia: primeiro inventa-se o mal (o inimigo, a situação cruel) e depois fica fácil oferecer proteção a esse ente ameaçado. Isso era o que se passava na era feudal: tamanha era a insegurança reinante que o escravo, anulado e assustado pela violência ambiental, se sentia protegido pelo seu senhor. Para que o senhor exercesse seu domínio (sobre o escravo e seu trabalho), não podia deixar que o clima generalizado de terror acabasse ou reduzisse. O preço da sobrevivência era a total submissão do vassalo (do servo) ao senhor feudal.
A tortura, o castigo (sobretudo o prisional) e o extermínio, em países periféricos atrasados (como o Brasil), são formas usuais (em pleno século XXI) de difusão do medo. A outra estratégia consiste em fazer a população não se esquecer de um temível inimigo (terrorista, sequestrador, assaltante etc.). Para isso o estado conta com a conivência da mídia. É dessa forma que o Estado se apresenta como o “guardião” (protetor) da sociedade, cada vez mais temerosa, mais amedrontada, mais dependente da farmacologia e da assistência psicológica.
O desenvolvimento da tecnologia armamentista chegou a tal grau de sofisticação que, agora, o medo já não é somente do inimigo eleito (o comunismo, o dissidente, o assaltante, o terrorista etc.), senão, sobretudo, do próprio “fogo” amigo. Velhas exigências guerreiras, como o porte físico, se tornaram completamente obsoletas. O que ele vale diante de uma guerra nuclear ou diante de um “drone”? Fundamental, assim, na sociedade pós-moderna, é manter a consciência coletiva ameaçada, temerosa. O debilitamento da massa é o segredo da sua submissão assim como da oferta contínua de proteção. A exploração do medo e da insegurança faz parte da estratégia de domínio, especialmente do poder político, com o apoio midiático.
As ruas e os parques se transformaram em lugares vedados para a convivência em razão da insegurança pública (C. París). A indústria da segurança e da proteção explodiu, com lucros bilionários. Mas é a ameaça do inimigo temeroso que ronda as nossas cabeças e nossos comportamentos. Daí a necessidade de sua fabricação contínua, para unir a população em torno de uma ameaça comum. O medo, aqui, é fator de integração da sociedade (assim como premissa para o exercício do poder nacional e planetário).
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