Foi sancionada e publicada a Lei n. 11.689/2008, revogando, no seu art. 4.º, o Capítulo IV do Título II do Livro III do Código de Processo Penal (CPP), extinguindo o protesto por novo Júri.
Essa lei, que entrará em vigor no dia 11 de agosto de 2008[1], originou-se do Projeto de Lei n. 4.203/2001 e passou a estabelecer novas regras para o procedimento a ser adotado no julgamento dos crimes dolosos contra a vida e os que lhe forem conexos (art. 78, I, do CPP).
O então Ministro da Justiça, Dr. José Carlos Dias, ao assumir o Ministério, editou o Aviso n. 1.151/99, convidando o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) a apresentar uma proposta de reforma do nosso CPP. Esse mesmo Ministro, agora, por meio da Portaria n. 61/2000, constituiu uma Comissão para o trabalho de reforma, tendo como membros os juristas Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho (Secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (que, mais tarde, saiu, sendo substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti.
Com a inesperada e lamentável saída do Min. Dias, o novo titular da Pasta, Dr. José Gregori, pela Portaria n. 371/2000, confirmou a Comissão anteriormente formada, com a substituição já referida. Ao final dos trabalhos, a Comissão de juristas entregou ao Ministério da Justiça, no dia 6 de dezembro de 2000, sete anteprojetos que, por sua vez, originaram os seguintes projetos de lei:
1.º) Projeto de Lei n. 4.209/2001: investigação criminal;
2.º) Projeto de Lei n. 4.207/2001: suspensão do processo/procedimentos;
3.º) Projeto de Lei n. 4.205/2001: provas;
4.º) Projeto de Lei n. 4.204/2001: interrogatório/defesa legítima;
5.º) Projeto de Lei n. 4.208/2001: prisão/medidas cautelares e liberdade;
6.º) Projeto de Lei n. 4.203/2001: Júri;
7.º) Projeto de Lei n. 4.206/2001: recursos e ações de impugnação.
Alguns desses projetos continuam em tramitação no Congresso Nacional; outros já foram sancionados, entre os quais os que tratam sobre provas, interrogatório e Júri.
Como se sabe, o nosso CPP é do ano de 1941 e, ao longo desse período, poucas alterações sofreu, em que pese serem evidentes as mudanças sociais ocorridas no País e tendo em vista a nova ordem constitucional vigente.
O seu surgimento, em pleno Estado Novo [2], traduziu, de certa forma, a ideologia de então, mesmo porque “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso)[3].
À época, tínhamos em cada Estado da Federação um CPP, pois, desde a Constituição Republicana, a unidade do sistema processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária.
Segundo Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. [...] Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime [...]”[4].
Como notara o mestre Frederico Marques, “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.”[5]
Até que, em 3 de outubro de 1941, promulgou-se o Decreto-lei (Dec.-lei) n. 3.689, que entraria em vigor a partir de 1.º de janeiro do ano seguinte; para resolver principalmente questões de natureza de direito intertemporal, promulgou-se, também, o Dec.-lei n. 3.931/41, a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal.
Esse Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era, “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia Frederico Marques. Segundo o mestre paulista, “continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito [...] O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. [...] A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”[6]
Assim, se o velho CPP teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.”
É bem verdade que, ao longo dos seus 60 anos de existência, algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras, como o fim da prisão preventiva obrigatória com a edição das Leis n. 5.349/67, n. 8.884/94, n. 6.416/77 e n. 5.349/67; a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei n. 9.271/96); a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei n. 9.520/97); modificações no que concerne à prova pericial (Lei n. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei n. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei n. 3.396/58) etc.
Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis n. 9.099/95 e n. 10.259/2001), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei n. 10.054/2000); a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei n. 9.807/99); a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei n. 9.800/99); a lei de interceptações telefônicas (Lei n. 9.296/96); a Lei n. 8.038/90, que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade (para não dizer de absoluta inconstitucionalidade).
Pois bem. Esse é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988.
E, assim, o atual código continua com os vícios de 60 anos atrás, maculando, em muitos dos seus dispositivos, o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos, bastando citar a disciplina das nulidades.[7]
Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas dessa reforma a modernização do velho código e a sua adaptação ao sistema acusatório (objetivo, aliás, ainda não inteiramente alcançado), com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, a ampla defesa, o contraditório etc.
Sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu:
“Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”[8]
Ademais, a reforma está mais ou menos consentânea com os princípios estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero-América. Nesse Código-Modelo, há alguns princípios básicos, a saber:
1) “O julgamento e decisão das causas penais será feito por Juízes imparciais e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei.” (art. 2.º).
2) “O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de segurança.” (art. 3.º).
3) “A dúvida favorece o imputado.” (idem).
4) “É inviolável a defesa no procedimento.” (art. 5.º).
Tais idéias serviram também de base para outras reformas feitas (ou por serem realizadas) em outros países, como Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Chile, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Honduras, Equador, Itália e Portugal.[9]
Aliás, “el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales, que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así, de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario, de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida con la conquista y la colonización del continente –, para sancionar, en más o en menos, leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.”[10]
Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos outros são frutos, na verdade, de modificações no sistema político desses países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu sistema político. Um país democrático[11]direitos e as garantias individuais básicos, privilegiando o sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”[12].
evidentemente deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um CPP que adote o sistema acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço do Poder, olvida osAssim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas [...]”.
“Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; as fórmulas inquisitivas, que, na cultura universal, já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente.”[13]
É evidente que o ideal seria uma reforma total, completa, que propiciasse uma harmonia absoluta no sistema processual penal, mas, como sabemos, se assim o fosse, as dificuldades que já existem hoje seriam ainda maiores. Preferiu-se, de outro modo, uma reforma que, se não chega a ser total (o que seria de difícil aprovação, à vista das evidentes dificuldades de natureza legislativa que todos nós conhecemos), também não chega a ser simplesmente pontual, até porque, como esclarece Ada, não incide “apenas sobre alguns dispositivos, mas toma por base institutos processuais inteiros, de forma a remodelá-los completamente, em harmonia com os outros.” Não é, portanto, uma reforma isolada, mas “tópica”.[14]
Esse movimento reformista não se limita à América Latina. Na Europa, também estão em franco desenvolvimento reformas no sistema processual penal. A título de exemplo, podemos referir a Alemanha, onde “también el Derecho procesal penal há sido modificado en varias ocasiones entre 1997-2000”[15], a Itália[16] e a Polônia, país que “desde hace 12 años se realizan reformas en la legislación, relacionadas con el cambio de régimen político, económico y social, que tuvo lugar en 1989 y también con la necesidad de adaptar las soluciones jurídicas polacas a las soluciones aceptadas en la Unión Europea. [...] Las reformas de la legislación penal e procesal penal constituyen una parte esencial del ‘movimiento legislativo reformador’”, segundo nos informa a Dr.ª Barbara Kunicka-Michalska, do Instituto de Ciências Jurídicas da Academia de Ciências da Polônia, em Varsóvia.[17]
Pois bem. Como se disse, foram revogados os arts. 607 e 608 do CPP que tratavam do protesto por novo Júri, recurso exclusivo da defesa que exigia ser o condenado submetido a um novo julgamento sempre que a sentença condenatória fosse de reclusão por tempo igual ou superior a 20 anos, sendo inadmissível uma segunda interposição.
Sem adentrar o mérito da revogação e da extinção desse recurso (que não obteve da referida Comissão a unanimidade), traremos à baila a discussão acerca de uma possível ultra-atividade dos artigos revogados e, por conseguinte, de uma irretroatividade da lei nova.
Pergunta-se: quem for submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri por crime praticado (data da ação ou omissão: art. 4.º do CP) antes da entrada em vigor da nova lei terá direito ao protesto por novo Júri, ainda que a condenação seja-lhe posterior e quando já não mais se preveja o recurso? Nesse caso, haveria impossibilidade jurídica a tornar inviável o manejo do recurso ou teríamos de admiti-lo excepcionalmente?
Como se sabe, há dois princípios basilares que regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal: o primeiro afirma que a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2.º, par. ún., do CP e art. 5.º, XL, da CF). Se é certo que a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isso ocorre por uma questão de segurança jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que, se a lei penal for de qualquer modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos pretéritos, retroagindo.
Esse princípio insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e, como garantia fundamental, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[18], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada de caráter jurídico-positivo”.[19]
O segundo princípio é o da aplicação imediata da lei processual penal, preconizado pelo art. 2.º do CPP e que proclama a regra da aplicação imediata (tempus regit actum).
Dessa forma, à vista desses dois princípios jurídicos, haveremos de analisar o disposto no referido art. 4.º da Lei n. 11.689/2008 que extinguiu o protesto por novo Júri.
Como adiantamos, a questão reside em saber se, em relação aos autores de crimes dolosos contra a vida (ou conexos), haverá ainda a possibilidade de interposição daquele meio recursal, quando o crime tiver sido praticado antes da entrada em vigor da referida lei e o julgamento for posterior.
Para que se manifeste um entendimento correto, urge procurarmos definir a natureza jurídica da norma ora revogada: seria ela de natureza puramente processual ou, tão-somente, penal; ou híbrida (penal e processual)? Admitindo-se a natureza puramente processual, obviamente não há que se falar em irretroatividade ou ultra-atividade; porém, se aceitarmos que são normas processuais penais materiais (ou híbridas), a ultra-atividade dos artigos revogados e a irretroatividade da nova lei impõem-se, pois, indiscutivelmente, sendo disposição mais gravosa deve excepcionar o princípio da aplicação imediata da lei processual penal.
Atentemos que qualquer norma que trate de um meio recursal diz respeito a uma garantia constitucionalmente assegurada que é o duplo grau de jurisdição. O devido processo legal deve garantir a possibilidade de revisão dos julgados. A falibilidade humana e o natural inconformismo de quem perde estão a exigir o reexame de uma matéria decidida em primeira instância, a ser feito por Juízes coletivos e Magistrados mais experientes.[20]
A Constituição Federal prevê o duplo grau de jurisdição, não somente no já referido art. 5.º, LV, como também no seu art. 93, III (“acesso aos Tribunais de segundo grau”). Em França, segundo Étienne Vergès, “l´article préliminaire du Code de procédure pénale dispose in fine que ‘toute personne condamnée a le droit de faire examiner sa condamnation par une autre juridiction’.”[21]
Há mais de vinte anos, o jurista baiano Calmon de Passos mostrava a sua preocupação com “a tendência, bem visível entre nós, em virtude da grave crise que atinge o Judiciário, de se restringir a admissibilidade de recursos, de modo assistemático e simplório, em detrimento do que entendemos como garantia do devido processo legal, incluída entre as que são asseguradas pela nossa Constituição.”
Nesse mesmo trabalho, nota o eminente Mestre que “o estudo do duplo grau como garantia constitucional desmereceu, da parte dos estudiosos, em nosso meio, considerações maiores. Ou ele é simplesmente negado como tal ou, embora considerado como ínsito ao sistema, fica sem fundamentação mais acurada, em que pese ao alto saber dos que o afirmam, certamente por força da larga admissibilidade dos recursos em nosso sistema processual, tradicionalmente, sem esquecer sua multiplicidade.”[22]
Não esqueçamos que a “adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador.”[23]
O duplo grau de jurisdição tem caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê, em seu art. 8.º, 2, “h”, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para Juiz ou Tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2.º do art. 5.º da CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que, no seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.”
Conclui-se, assim, que os arts. 607 e 608 do CPP, a par de serem normas processuais, inseriam-se também no âmbito do Direito Material por constituírem garantia ao duplo grau de jurisdição. Nessas condições, ditas normas não são puramente processuais (ou formais, técnicas), mas processuais penais materiais.
O jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[24]
Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas”. Para ele, constituem exemplos de normas processuais penais materiais, dentre outras, as que estabelecem “graus de recurso”, sendo a lei aplicável aquela vigente “no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento em que o resultado se produza.”[25] (grifo nosso).
Informa, ainda, o mestre português, que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[26]
Feitas tais considerações, lembra-se de que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto”, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni.[27]
A propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano:
“Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[28]
Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci:
“Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[29]
Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho:
“Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[30]
Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite lógico e natural de tudo quanto foi dito, pois todas as medidas citadas exigem que haja processo em curso ou na iminência de ser iniciado. Se já houve o trânsito em julgado, não pode se cogitar de retroatividade para o seu desfazimento, pois, nesse caso, já há um processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2.º, par. ún., do CP[31].
Enfrentando essa questão, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que, tratando-se “de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2.º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5.º, XL, da Constituição Federal.” (STF, ADIn n. 1.719-9, rel. Joaquim Barbosa, j. em 18.6.2007, DJU de 28.8.2007, p. 1).
Diante do exposto, entendemos que os dispositivos revogados e que tratavam da possibilidade do protesto por novo Júri terão incidência em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal anteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto no art. 2.º da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal e no art. 2.º do CP.
[1] A lei foi publicada no Diário Oficial da União de 10 de junho de 2008, entrando em vigor 60 dias depois de oficialmente publicada, na forma do art. 3.º da mesma lei. Segundo o art. 8.º da Lei Complementar n. 95, “A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula ‘entra em vigor na data de sua publicação’ para as leis de pequena repercussão.” Pelo seu § 1.º, “a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral.” (grifo nosso).
[2] Período que abrange parte do Governo de Getúlio Vargas (1937 – 1945) que encomendou ao jurista Francisco Campos uma nova Constituição, extra-parlamentar, revogando a então Constituição legitimamente outorgada ao País por uma Assembléia Nacional Constituinte (1934).
[3] FIORE, Pascuale. De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes. Tradução de Enrique Aguilera de Paz. Madri: Reus, 1927. p. 579.
[4] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, n. 175, junho/2007, p. 11.
[5] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1998. v. 1. p. 104.
[7] Comentando a respeito do Título que trata das nulidades no processo penal, Frederico Marques adverte que “não primou pela clareza o legislador pátrio, ao disciplinar o problema das nulidades processuais penais, pois os respectivos artigos estão prenhes de incongruências, repetições e regras obscuras, que tornam difícil a sistematização coerente de tão importante instituto. [...] Ainda aqui, dá-nos mostra o CPP dos grandes defeitos de técnica e falta de sistematização que pululam em todos os seus diversos preceitos e normas, tornando bem patente a sua tremenda mediocridade como diploma legislativo” (Op. cit. v. 2, p. 366-367).
[8] VITU, André. Procédure Pánale. Paris: Presses Universitaires de France, 1957. p. 13-14.
[9] GRINOVER, Ada Pallegrini. A reforma do Processo Penal. Disponível em: www.direitocriminal.com.br. Acesso em: 15 jan. 2001.
[10] MAIER, Julio B. J.; STRUENSEE, Eberhard. Las Reformas Procesales Penales en América Latina. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000. p. 17.
[11] Norberto Bobbio assinala, muito a propósito, que “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais”. In: A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 1.
[12] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 3. ed. Madrid: Editorial Trotta, 1998. p. 604.
[13] Exposição de Motivos do Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero-América, com a colaboração dos Professores Ada Pellegrini Grinover e José Carlos Barbosa Moreira. In: Revista de Processo, n. 61, p. 111.
[14] GRINOVER, Ada Pallegrini. A reforma do Processo Penal. Disponível em: www.direitocriminal.com.br. Acesso em: 15 jan. 2001.
[15] WALTER. Tonio. (Professor da Universidade de Friburgo) Sistemas Penales Comparados. Revista Penal, Salamanca, La Ley, p. 133.
[16] Segundo Daniele Negri, da Universidade de Ferrara, “quizá nunca como en estos últimos cinco años había sufrido el procedimiento penal italiano transformaciones tan amplias, numerosas y frecuentes. [...] La finalidad de dotar de eficiencia a la Justicia se ha presentado como la auténtica meta de las innovaciones normativas que se han llevado a cabo en los últimos años (1997-2001).” Sistemas Penales Comparados. Revista Penal, Salamanca, La Ley, p. 157
[17] Sistemas Penales Comparados. In: Revista Penal. Salamanca: La Ley, p. 164.
[18] Los Derechos Fundamentales. Madrid: Tecnos, 1993. p. 67.
[19] FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 62.
[20] Condenado a 6 anos de prisão por crimes contra a ordem tributária, um acusado teve habeas corpus (HC n. 88.420) concedido pela 1.ª T. do STF. Com a decisão, o réu poderá apelar da sentença mesmo não estando preso. Nesse HC, a defesa pedia ao STF que determinasse ao Juízo da 2.ª Vara Criminal Federal de Curitiba novo exame de admissibilidade do recurso de apelação, garantindo, assim, o direito ao duplo grau de jurisdição. Para o relator, Min. Ricardo Lewandowski, a ação trata do confronto de dois preceitos legais. Por um lado, o duplo grau de jurisdição (conforme art. 8.º, II, “h”, do Pacto de São José da Costa Rica – incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por força do art. 5.º, § 2.º, da CF). De outro lado, a exigência de recolher-se o réu condenado à prisão para que sua apelação seja processada (de acordo com art. 594 do CPP). O que a defesa pretende é interpor em favor do réu, condenado em 1.º grau, recurso de apelação, independentemente de seu recolhimento ao cárcere. Lewandowski afirmou considerar que o direito ao duplo grau de jurisdição tem “estatura constitucional, ainda que a Carta Magna a ele não faça menção direta”. Isso porque, prossegue o Ministro, o due process of law, constante do art. 5.º, LXVI, contempla a possibilidade de revisão por Tribunal Superior de sentença proferida por juízo monocrático. Para ele, o duplo grau deve prevalecer sobre o art. 594 do CPP. “Tal direito integra o sistema pátrio de direitos e garantias fundamentais, conforme decidido pelo Supremo na ADIn n. 1675”, confirmou. O relator ponderou que a incorporação desse direito foi posterior à edição do CPP (Dec.-lei n. 689/41). Isso porque a ratificação pelo Brasil da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (o Pacto de São José) foi em 1992. “Assim, qualquer disposição em contrário da lei processual encontra-se, senão revogada, ao menos substancialmente mitigada”. Quanto ao HC em julgamento, Lewandowski disse que “o reconhecimento ao duplo grau não infirma a legalidade da custódia cautelar decretada em desfavor do paciente, podendo ela subsistir independentemente de admitir-se o recurso”. A 1.ª T., assim, concedeu a ordem de HC, por unanimidade, seguindo o voto do relator, para que seja recebida a apelação do condenado, interposta perante a 2.ª Vara Criminal de Curitiba nos autos da ação penal, sem prejuízo do cumprimento da ação preventiva contra ele decretada, caso persistam os motivos que a determinaram. (STF, 17.4.2007).
[21] Procédure Pénale. Paris: LexisNexis Litec, 2005. p. 49.
[22] Estudos jurídicos em homenagem à Faculdade de Direito da Bahia, São Paulo: Saraiva, 1981. p. 88.
[23] MORAES, Maurício Zanoide de. Interesse e Legitimação para Recorrer no Processo Penal Brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 29, 2000.
[24] Sucessão de Leis Penais. Coimbra: Coimbra. p. 219-220.
[27] Tratado de Derecho Penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 1987. v. 1, p. 463-464.
[28] Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 314.
[29] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal. São Paulo: José Bushatsky, 1975. p. 124.
[30] O Processo Penal em Face da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 137.
[31] Nesse sentido, a lição de Ada e outros. Op. cit. p. 49.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. O fim do protesto por novo júri e a questão do direito intertemporal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 fev 2009, 08:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/200/o-fim-do-protesto-por-novo-juri-e-a-questao-do-direito-intertemporal. Acesso em: 23 nov 2024.
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