As invenções em geral devem ser celebradas como conquista da Humanidade. Não devemos, de forma alguma, recusar o avanço tecnológico, que se manifesta nos mais diferentes campos de atividade. Entretanto, o progresso e o avanço tecnológico devem estar sempre submetidos a critérios éticos e humanos.
Por esta razão, não vejo com simpatia a supressão do contato de juízes com as partes, inclusive nos interrogatórios, através da substituição de audiências presenciais por audiências virtuais.
Em determinados casos são razoáveis as audiências on-line, como, por exemplo, para evitar gastos dispendiosos com a condução de presos até a presença do magistrado. Em certas situações, a condução de presos que têm notoriedade na imprensa, para comparecer perante juízos distantes do local em que se encontram, tem como única conseqüência provocar uma enorme repercussão, justamente pelo absurdo da esdrúxula situação.
Também é razoável que se prefiram as audiências virtuais naquelas hipóteses em que se torna inteiramente desnecessário o contato humano, face a face.
Quando o contato humano é necessário, a audiência virtual é uma brutalidade.
Na minha vida de juiz, em inúmeros processos, somente a presença de réus ou rés diante de mim, permitiu que eu pudesse aquilatar os fatos com exatidão buscando a boa distribuição da Justiça.
Teria centenas de casos a mencionar, porém um dos mais apropriados para referência neste capítulo parece-me que seja o de Edna. Prestes a dar à luz, Edna estava presa há meses porque fora encontrada com alguns gramas de maconha.
Na presença dela, dei, em voz alta, este despacho:
“A acusada é marginalizada de várias maneiras: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia.
É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão."
Talvez eu não tivesse libertado Edna, se a acusada não estivesse diante de mim. Foi ao vê-la grávida, incomodada com o peso do feto, pois recusou sentar-se dizendo que ficava mais à vontade de pé, que eu pude compreender a dimensão do seu sofrimento. Foi diante de Edna mulher, Edna ser humano, que pude perceber o que significava para ela estar presa.
Por outro lado, no reverso da situação, foi devido ao fato de Edna ver o juiz na sua frente que, ao ser solta, disse que a criança, que ia nascer, teria o nome do juiz, se fosse homem. Mas nasceu uma menina que se chamou Elke, em homenagem a Elke Maravilha.
Foi porque o juiz a libertou olhando nos seus olhos que Edna, que era meretriz, mudou de vida. Disse que poderia passar fome, mas que prostituta nunca mais seria.
Uma outra situação em que a audiência presencial tem extrema importância é na ausculta de testemunhas. Os magistrados experientes sabem quando a testemunha está falando a verdade e quando a testemunha está mentindo. Somente o “olho no olho” é que possibilita aquilatar a validade do depoimento e surpreender o perjúrio. Acho que nenhum juiz, calejado no seu ofício, deixa-se enganar por um falso testemunho. Nas audiências virtuais isso seria totalmente impossível.
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