“Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo.”[1]
O art. 28 do Código de Processo Penal tem a seguinte redação:
“Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento de inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.” (grifo nosso).
Assim, enviada a peça de informação ao Procurador-Geral e este, discordando do pedido de arquivamento formulado pelo representante do Ministério Público, não oferecer ele próprio a denúncia, deverá remeter os autos ao 1º. substituto do Promotor de Justiça (ou Procurador da República) que requereu o arquivamento. Neste caso, pergunta-se: este segundo órgão do parquet está obrigado a denunciar diante da conclusão do chefe do parquet? Ou seja, é possível que ele se recuse ou deva fazê-lo obrigatoriamente, agindo por delegação?
Entendemos que a recusa é legítima e justificamos nosso posicionamento à luz de dois princípios basilares da Instituição: a independência e a autonomia funcionais, ambos consagrados no art. 127, §§ 1º. e 2º. da Constituição Federal, advertindo-se, desde logo, que a “autonomia funcional atinge o Ministério Público enquanto instituição, e a cada um dos seus membros, enquanto agentes políticos.”[2]A propósito, vejamos a lição de Bento de Faria:
“O Ministério Público, como fiel fiscal da lei, não poderia ficar constrangido a abdicar das suas convicções, quando devidamente justificadas. Do contrário seria um instrumento servil da vontade alheia.”[3]
Este nosso entendimento procura conciliar os interesses da Instituição, que induvidosamente é hierarquizada, com os princípios constitucionais garantidos aos seus membros, lembrando-nos da lição de Paulo Cláudio Tovo, segundo a qual “a independência do Ministério Público deve ser preservada como algo precioso à segurança de todos”[4], inclusive, acrescentamos nós, a independência de cada um de seus integrantes.
Não se diga que adotando este ponto de vista poderíamos chegar a um impasse, caso o 2º. e 3º. substitutos (e a incumbência deve recair sempre nos respectivos substitutos, preservando-se o princípio do Promotor Natural) também não aceitassem o entendimento do Procurador-Geral; neste caso, o próprio Procurador-Geral ofereceria a denúncia, iniciando-se a ação penal e tornando-a, inclusive, indisponível, na forma do art. 42 do Código de Processo Penal.
Também não se argumente que, mutatis mutandis, quando o Tribunal de Justiça decide um conflito negativo de competência, o Juiz de Direito não pode se negar a exercer a sua jurisdição, ainda que, a princípio, deu-se por incompetente. Neste caso, recorre-se ao princípio da indeclinabilidade da jurisdição, segundo o qual não pode o Magistrado, de regra, furtar-se ao exercício do seu munus jurisdicional. A jurisdição, já dizia Frederico Marques, é indeclinável, pois “nenhum juiz pode ser retirado do processo e julgamento de uma causa, nem mesmo por seus superiores hierárquicos. E tampouco lhe cabe declinar do exercício da função jurisdicional em determinado feito, como é óbvio, salvo em casos especiais, de afastamento do cargo, para gozo de férias ou para entrar em licença, ou então quando está legalmente impedido, ou tiver de jurar suspeição.”[5]
Assim pensando, procuramos consagrar a independência funcional do respectivo membro do Ministério Público sem haver afronta à figura do chefe da Instituição. Roberto Lyra já afirmava que “nem o Procurador-Geral, investido de ascendência hierárquica, tem o direito de violentar, por qualquer forma, a consciência do Promotor Público, impondo os seus pontos de vista e as suas opiniões, além do terreno técnico ou administrativo.” Para este autor (que dedicou toda a sua vida ao estudo do Direito Criminal e ao Ministério Público, a ponto de ser chamado por Evandro Lins e Silva de o “Príncipe dos Promotores Públicos brasileiros”) “quanto ao elemento intrínseco, subjetivo, dos atos oficiais, na complexidade, na sutileza, na variedade de seus desdobramentos, como a apreciação da prova, para a denúncia, a pronúncia, o pedido de condenação, a apelação, a liberdade provisória ou a prisão preventiva, é na sua consciência livre e esclarecida, elevada a um plano inacessível a quaisquer injunções ou tendências, que o Promotor Público encontra inspiração”, concluindo “que a disciplina do Ministério Público está afeta ao Procurador-Geral. No entanto, esse não intervem na consciência do subordinado.”[6]
Desde há muito, Esmeraldino Bandeira já escrevia que o Promotor de Justiça na “sua palavra é absolutamente livre e independente, e em suas requisições não atende senão à sua consciência.”[7]
Ainda a propósito, certa vez um antigo Promotor de Justiça do Distrito Federal, Dr. Murillo Fontainha, ao recusar determinação do Procurador-Geral de oferecer denúncia em um caso, escreveu:
“No exercício das suas elevadas funções, o Ministério Público ‘só recebe instruções da sua consciência e da lei’ (Sentença do saudoso Magistrado Raul Martins, D. Oficial de 10 de outubro de 1914, p. 10.844) e ‘as ordens que o Chefe do Ministério Público tem o direito de impor aos seus inferiores são ordens que não afetem à consciência dos mesmos. E o Promotor, que fugindo aos impulsos da sua convicção, deixar-se sugestionar pelas imposições extrínsecas, é um que homem ultraja à sua consciência e um Magistrado que prostitui a lei. Vê, pois, V. Exª., que nas funções em que entra a convicção do Promotor, como elemento principal, a ordem do Chefe do Ministério Público não pode ter o caráter de preceito imperativo obrigatório’ (Auto Fontes, Questões Criminais p. 75-6).” (...) “Todas essas explanações evidenciam que nas hipóteses em que o Ministério Público tem que opinar da sua conduta no caso que lhe for concluso, quer de oportunidade ou cabimento de recurso legal a interpor, quer de apreciação sobre elementos para denúncias ou arquivamento de processos, só deve receber instruções da sua íntima convicção, de sua consciência. Nessa esfera, as instruções do Chefe do Ministério Público não podem penetrar, porque é a própria lei em vigor que o diz quando terminantemente dispõe que incumbe aos Promotores Públicos oferecer denúncia quando se convençam da existência de crimes de sua competência.”[8]
Jorge Americano, por sua vez, pontuava: “Dentro da esfera das suas atribuições, cada membro do Ministério Publico tem independência de movimentos para requerer diligência, para denunciar ou pedir arquivamento inicial de processos, para opinar, a favor ou contra o réu, para recorrer ou não, para expor certos argumentos, de preferência a outros.”[9]
Diante do exposto, concluímos que o Procurador-Geral, ao discordar de um pedido de arquivamento feito por membro do Ministério Público, não pode impor a outro Promotor de Justiça o oferecimento da peça acusatória, ainda que se diga que aja por delegação (como uma longa manus), devendo sim respeitar o seu posicionamento, encaminhando o procedimento aos substitutos legais ou, em último caso, ele próprio oferecendo a denúncia, como permite expressamente o art. 28 do Código de Processo Penal.
Encerremos, então, com mais esta lição de Lyra:
“Decairia de sua própria independência moral o Promotor Publico se ficasse sujeito, em matéria opinativa, às injunções, quer dos juizes, quer dos chefes, esses funcionários da confiança do Governo. Ocorreria ainda o perigo de, indiretamente, submeter-se o Promotor Público ao arbítrio oficial no desempenho de uma tarefa de sutilíssima subjetividade.” (p. 176).
[1] Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra, 35ª. ed., 2007, p. 28.
[2] Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 3ª. ed., 1996, p. 94.
[3] Código de Processo Penal, Vol. I, Rio de Janeiro: Record, 2ª. ed., 1960, 120.
[4] Apontamentos e Guia Prático sobre a Denúncia no Processo Penal Brasileiro, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 26.
[5] Instituições de Direito Processual Civil, Vol. I, Campinas: Millenium, 2000, p. 278.
[6] Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª. ed., 1989, p. 158.
[7] Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 160.
[8] Apud Roberto Lyra, obra citada, p. 164.
[9] Idem, p. 166.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. O art. 28 do Código de Processo Penal e a independência funcional dos membros do Ministério Público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2009, 07:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/265/o-art-28-do-codigo-de-processo-penal-e-a-independencia-funcional-dos-membros-do-ministerio-publico. Acesso em: 23 nov 2024.
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