RESUMO
Trata-se o presente trabalho de uma reflexão crítico-filosófica sobre um advento complexo que ocorre na sociedade brasileira, vivenciado intimamente por grande parte da população em seu cotidiano, porém, muitas vezes, despercebido: o desconhecimento geral das normas jurídicas. Fenômeno tal que acaba dificultando a implementação das relações de cidadania e afasta, cada vez mais, o sonho ideal de um Estado Democrático de Direito, amparado pela justiça social. Neste âmbito, apontam-se alguns dos fatores decisivos para a manifestação da ignorância jurídica, dentre os quais pode se destacar a relação histórica perversa que se estabelece entre o Estado, o Poder e a Ideologia, restringindo o conhecimento jurídico ao acesso de poucos, notadamente das classes elitizadas, que se utilizam da ideologia por ela imposta para manter o status quo e assim garantir, ao longo dos tempos, o seu poder temporal e social. Propõe-se, ao final, uma rediscussão de valores e ensinamentos transmitidos pelas Faculdades de Direito e a revisão de posturas por parte dos operadores jurídicos, sob o fito de se reavaliar o papel dos mesmos como agentes sociais transformadores e a essência da própria ciência jurídica na orientação cidadã.
Palavras-Chave: normasjurídicas, Justiça, Direito, poder, influência romana, Estado, ideologia, cidadania.
1. INTRODUÇÃO
Um problema marcante vem se estabelecendo no Brasil, ao longo dos tempos, afetando bastante as relações interindividuais, dificultando a efetivação do exercício de cidadania e, consequentemente, o implemento da tão sonhada justiça social e do tão desejado Estado Democrático de Direito: o desconhecimento das normas jurídicas por grande parte da população brasileira.
Muitas pessoas, às vezes, se questionam “o que”, “como” e “quando” fazer em determinadas situações, estando expostas a tomar decisões que irão afetar direta ou indiretamente as suas vidas, mas, por razões de ignorância parcial ou total se precipitam ou necessitam de ajuda de profissionais ou amigos mais gabaritados, para fazê-lo.
Tal fenômeno pode ser explicado por diversos fatores sociais, econômicos, políticos ou culturais, a exemplo da pobreza, ou até mesmo fatores sobrenaturais como a crença na justiça divina. Todavia, sob o intuito de se tentar construir uma argüição lógica e simples na compreensão das origens e manifestação do tema em comento, qual seja, a incompreensão das normas jurídicas, visando a uma reflexão crítica e filosófica da natureza desse fenômeno, propõe-se este trabalho.
Ressalte-se, primordialmente, não haver aqui qualquer proposta de exaurimento do tema em esboço, até mesmo porque qualquer afirmação neste sentido seria demagógica e inútil, dada a sua complexidade estrutural, conforme já foi assinalado anteriormente. Por isso, conduzindo-se por uma vertente analítica, é apresentado, na presente obra, alguns dos motivos concebidos como o ponto crucial para a manifestação desse fenômeno na sociedade nacional, quais sejam, as relações existentes entre o Direito, o Poder e a Ideologia na formação do conhecimento popular sobre as normas jurídicas que regem o comportamento da sociedade.
As razões para essa percepção se encontram no fato de não haver qualquer advento que ocorra, no universo jurídico, sem uma motivação histórica. Além disso, o Direito – enquanto ciência multidisciplinar (influenciada por várias outras ciências) – deve se relacionar com outras vertentes axiomáticas, a exemplo da Ideologia, do Poder e do Estado, sob o fito de ser explicada a essência do seu papel social e se definirem os seus reais objetivos. Neste contexto, são retratadas as interações entre a ciência jurídica, o Estado, o Poder e as teorias que tentam explicar a ideologia, situando-se, nesse panorama, a realidade histórico-evolutiva do Brasil. Perceber-se-á, aqui, que – embora exista opinião em contrário, defendendo um distanciamento entre o Direito e o Estado – há, em verdade, uma aproximação muito grande entre os dois, à proporção que o primeiro utiliza o segundo como legitimador de sua existência, surgindo, dessa relação, o advento do “poder”, pautado pela relação dominador/dominado. Doravante, são concebidas as formas como tal poder pode se manifestar, de acordo com as concepções crítico-discursivas utilizadas por um pensador ou autor ante a análise da realidade que o circunda e paralelamente aponta-se a influência ideológica no caso particular brasileiro, que envolve todo um apanhado histórico da herança de dominação do país desde o início de sua colonização até os dias atuais.
2. AS RELAÇÕES ESTRUTURAIS DO DIREITO COM OS SEGMENTOS QUE MAIS ACENTUAM A INCOMPREENSÃO DA NORMA JURÍDICA
2.1 DIREITO VERSUS PODER
Ao se analisar a etiologia da palavra “Direito”, consoante o Dicionário Brasileiro Globo, pode-se perceber quão numerosa é a quantidade de significados que a mesma possui, tais como: “aquilo que se segue ou se estende em linha reta, plano aprumado, reto, íntegro, justo, honrado [...] o que é conforme a lei, [...], faculdade legal de se praticar um ato, conjunto de leis ou preceitos que regulam as relações sociais [...] regalia” etc. (FERNANDES, LUFT e GUIMARÃES, 1998). Destarte, desde já, não à toa se nota uma acepção formalista e dogmática de tal termo, porquanto a própria “evolução” natural de sua significância se confunde com a estrutura sócio-político-econômica e cultural vigente em cada época e comunidade por que a ciência jurídica passou, exercendo, de alguma forma, a sua influência.
Pautando-se estritamente por sua tradição dogmático-formalista, ao Direito em si foi atribuída uma espécie de “blindagem” semântica, que se enraizou estruturalmente nas sociedades por onde o mesmo percorreu (as ocidentais em especial), sob um enfoque superior, diretivo, afastando-se, talvez, dos objetivos originários de justiça, aos quais foi concebido.
Nesse contexto, faz-se imprescindível um estudo pormenorizado da interação estabelecida entre a ciência jurídica e o seu principal ente articulador e, quiçá, garantidor da sua existência, bem como da sua perpetuação ao longo dos tempos: o Estado. Neste diapasão, far-se-á uma pequena abordagem sobre a manifestação da ciência jurídica no contexto histórico-evolutivo do Brasil, sob o fito de se tentar demonstrar como a mesma adquiriu uma relação de destaque com o aparelho estatal, ajudando assim a traçar-lhe os aspectos peculiares na sociedade atual.
Inicialmente, pode-se afirmar que existe uma relação entre o Direito e o aparelho estatal, a qual ajuda a explicar a essência da epistemologia jurídica. Para Wolkmer, há duas correntes principais que explicam o relacionamento Direito versus Estado: a) o dualismo tradicional – preconizador da separação entre ambos, entendo-se aqui constituírem os mesmos duas “realidades díspares”, nas quais se legitima a prioridade lógica do último em relação ao primeiro (o Estado como criador do Direito), estando as normas jurídicas condicionadas à sanção estatal: o Estado seria a fonte mais importante do Direito, entrando em ação, a fim de dar “aplicação e eficácia ao elemento normativo, garantindo a coesão do imaginário sócio-político; e b) a doutrina monista – cujo representante maior foi Hans Kelsen, o qual inaugurou a dogmática normativista, que apresenta o Estado e o Direito como algo indivisível, donde o primeiro “encarna” o segundo, determinando-lhe o nível de ordenação. (WOLKMER, 1995: 72-79). Neste sentido, o “Estado legitima seu poder pela segurança e pela validade oferecida pelo Direito, que, por sua vez, adquire força no respaldo proporcionado pelo Estado”. (Idem: 74)
Diante dessa relação aparato estatal versus ciência jurídica, em que pesem as controvérsias acerca da sua união ou segregação, torna-se indiscutível a influência que um exerce sobre o outro e vice-versa, a ponto de se estabelecerem, no meio social vigente, fatores de dominação, carisma, controle, como fontes de legitimação do poder do Estado.
José F. de Castro Farias acrescenta, por sua vez, que, na complexidade da vida social, não há uma relação humana sem que, de alguma maneira, não se encontre sob a influência voluntária de um indivíduo ou de um grupo a conduta de outro indivíduo ou grupo. Por isso, o conceito de poder tem sido usado para interpretar as mais variadas relações que se espalham pelo corpo social, desde a família até as relações entre as classes sociais e o poder do Estado. Portanto, não é possível situar-se fora do poder e “escapar às suas relações.” (WOLKMER, 1995: 73).
Infere-se desse panorama, que a situação de poder não só se sustenta na sociedade, como também se pauta na “legitimidade” fundada no consenso, advinda da maior parte de seus integrantes ou, sendo ilegítimo, “quando violar os valores dominantes compartilhados e priorizados numa determinada organização política”. (WOLKMER, 1995: 74).
Por outro lado, a relação entre os indivíduos está sempre marcada por conflitos, vez que – conforme observações de Calmon de Passos – percebe-se que os homens inserem-se perante o meio social, basicamente para estarem “uns com os outros (interação, solidariedade etc.), permanecendo, entretanto, “em meio aos outros”, sentindo-se inéditos e irrepetíveis.” (PASSOS, 2003: 41). Desta feita, frise-se, há impossibilidade de auto-organização ou de vivência sem a presença do próximo para a execução e/ou fiscalização de atos, persecução de sonhos, objetivos, desenvolvimento de ideias, haja vista que, ausente o “reconhecimento tácito dos outros, os seres humanos não seriam capazes, nem mesmo, de ter fé no modo pelo qual apareceriam eles mesmos. (PASSOS, 2003: 42).
Ademais, ao se organizarem, os seres humanos são suscetíveis ao melhor atendimento de suas necessidades (aspecto positivo) ou à hierarquização de interesses, “institucionalizando-se” a desigualdade (aspecto negativo), que reclama coordenação e submissão de vontades, só possível com a implementação de um “certo poder” (Idem: 45).
Cumpre ressaltar que – em se considerando a predominância latente do segundo ponto (aspecto negativo) nas relações interindividuais – a realidade que se afigura é a interferência do poder como diretrizador comportamental, tutelado por uma manifestação de força ou coação, a qual se exprime sob diversos aspectos: a) o poder antropológico – pautado no diferencial de capacidade humano, marcado pelas desigualdades, ligado à teoria das necessidades, psicologia e teoria das atitudes; b) o poder sociológico – poder como princípio motor da instituição, ou seja, adicional que transforma o costume numa instituição impositiva para organizar a sociedade, segundo uma ideia; c) o poder político – elemento diferenciador, caracterizado pela ideia comando/obediência, que move indivíduos e instituições e, aliado ao poder estatal, serve como fundamento para que o Estado consiga atingir seus fins; d) o poder econômico – quando se institucionaliza determinado modelo de divisão do trabalho social e de apropriação do produto desse trabalho, proporcionando pressupostos materiais para o poder político; e) o poder jurídico – como energia criadora do Direito, contendo a promessa da realização da ideia social que o representa; f) o poder ideológico – legitimador do próprio poder em todas as suas manifestações, mediante mecanismos de convencimento. (PASSOS, 2003: 46-47).
Nesse ensejo, o poder se assenta numa vontade da parte dominante, através de certos diferenciais, a saber: 1) psicológicos: o poder dependente da experiência, persuasão, medo, raciocínio, conhecimento etc.; 2) sociológicos: o poder dependente do papel desempenhado pelo agente na sociedade (influência, liderança, laços familiares, autoridades institucionalizadas); 3) econômicos: o poder dependente da capacidade de alguns em obter bens e serviços de outro; e 4) políticos: advêm do poder de decisão sobre o grupo, capacitando alguns a obter coercitivamente determinadas prestações em sujeições alheias.” (Idem: 45).
Por sua vez, no que concerne à relação específica poder versus norma, vale salientar a incidência da efetividade. Esta, se sobrepor, deve ser analisada em sua interação com o elemento volitivo, isto é, depende da vontade do homem que o acolhe em sua vida concreta, ao dotá-la de uma energia social capaz de levá-lo a prevalecer no grupo. (Ibidem, p. 48). Assim sendo, a eficácia normativa (termo “eficácia” utilizado em sentido lato, sem intenção de distingui-lo de “efetividade”) independe muito menos da vontade de qualquer prescrição jurídica, seja ela constitucional ou infraconstitucional, do que do modo como se estabelecem as relações do indivíduo, particular ou socialmente. Seguindo a acepção foucauniana (FOUCAUT, 2007), diz-se que há uma interpenetração de microssistemas de poder, na qual o indivíduo se coloca passivamente diante do seu próximo, tendo em vista o status social ou profissional alcançado e referendado tacitamente em seu meio circundante, a exemplo do respeito social extremo à figura do advogado, do médico, do engenheiro, do político, do papa, do juiz, bem como os privilégios de tratamento obtidos pelos grandes proprietários de terra, grandes empresários, artistas famosos etc.
Destarte, torna-se notório que o fenômeno do poder interfere direta ou indiretamente nas normas constantes do meio social, haja vista o seu processo de formação e difusão estar deveras calcado e legitimado nas relações interpessoais, pelos seus aspectos antropológicos, econômicos, políticos, jurídicos e, principalmente, ideológicos. Como bem explicita Calmon de Passos, inexiste, portanto, convivência humana livre de relações de poder, nem há relação de poder a “salvo dos binômios controlador/controlado, comando/obediência.” (PASSOS, 2003: 47). O problema, consequentemente, não é a eliminação do poder nas relações humanas, nem torná-las o que elas não podem ser, mas sim o de domesticar o poder (Idem: 49).
Uma relação comprovadora dessa relação de domínio existente entre a ciência jurídica e o aparelho estatal foi a que ocorreu no processo de formação do Estado brasileiro, desde o advento da colonização.
Utilizando-se de uma interpretação crítica da história do Direito no país, baseada fundamentalmente na visão combativa de Wolkmer (WOLKMER, 2007), parte-se de uma temática analítica na qual se constata sempre ter havido uma tentativa por parte das classes dominantes de impor a sua hegemonia, através da ciência jurídica, colocada como meio legitimador e encobridor das práticas político-patrimonialistas estatais.
Desde o início da colonização brasileira, sempre predominou o interesse econômico exploratório da metrópole sobre os da colônia, como consequência da política imperialista além-mar, implementada após a insurgência precoce do Estado Nacional lusitano já no século XIV. Neste panorama, com o objetivo de fazer prevalecer a sua hegemonia, Portugal estendeu a implementação no país de leis gerais que comumente eram aplicadas no universo jurídico da sede metropolitana portuguesa, advindas basicamente de três institutos: a) as Ordenações Afonsinas (1466) – compilações de leis esparsas em vigor no reino luso, baseadas em resoluções que vieram do principalmente do Direito Canônico; b) as Ordenações Manuelinasc)Ordenações Filipinas – com longa aplicação e vigência no Brasil-Colônia até o século XVIII (WOLKMER, 2008: 354-355). Existiram, neste ínterim, leis extravagantes pátrias, porém sua função era meramente subsidiária, versando sobre alguns assuntos comerciais, como letras de câmbio, seguros marítimos etc. (WOLKMER, 2007: 60).
(1521) – reunião de Leis extravagantes promulgadas pelas legislações anteriores; e, em especial, pelas
Dentro dessa realidade, duradoura do período do Governo-Geral (1479-1763) até meados do século XIX, surgiu um Poder Judiciário colonial marcado pelo controle de certos agentes públicos, os juízes (juízes de fora, os juízes de vintena, os juízes de órfãos etc.), os quais, assumindo papel privilegiado para o julgamento de conflitos locais, receberam ordens expressas da Coroa lusa para aplicar o Direito em conformidade com os interesses desta. Sobre tal processo de controle colonial pelo Estado lusitano, consoante bem afirma Rodrigo de Andrade de Almeida:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, ALEXANDR E MAGNO LINS. A incompreensão das normas jurídicas no Brasil atual como subproduto histórico da relação perversa entre o estado, a ideologia e o poder Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 nov 2010, 08:02. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22164/a-incompreensao-das-normas-juridicas-no-brasil-atual-como-subproduto-historico-da-relacao-perversa-entre-o-estado-a-ideologia-e-o-poder. Acesso em: 27 set 2024.
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