I. Introdução.
A Constituição previu o pagamento do benefício assistencial de prestação continuada de forma bastante restrita a dois grupos de indivíduos, cujas particularidades justificam uma maior proteção por parte do Estado.
Não obstante, o próprio Texto Constitucional prevê que a atuação do Poder Público se dá de forma subsidiária em relação ao papel da família, de prover a subsistência do membro hipossuficiente.
Conforme se verá ao longo desse artigo, de forma explícita ou sistemática, todas as normas que tratam desse benefício deixam claro seu o caráter personalíssimo e as consequências dessa característica no âmbito do processo judicial em que é formulado o pedido de concessão.
II. Análise normativa.
Com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana e buscando resguardar a garantia do mínimo existencial, o art. 203, V, da Constituição previu o pagamento de um salário-mínimo mensal ao idoso ou ao portador de deficiência que não possuísse meios de prover sua subsistência ou de tê-la provida por sua família. Eis a redação do dispositivo:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
(...)
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Para dar aplicação ao comando constitucional, foi editada a lei nº 8.742/93, denominada de Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Outrossim, a lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) também dedica alguns dispositivos ao tema.
Seja qual for o diploma normativo em análise, não há dúvidas de que a interpretação de seus dispositivos deve ser feita de forma restritiva, haja vista tratar-se a concessão de benefício assistencial de uma excepcionalidade prevista no sistema da seguridade social, a que fazem jus apenas dois grupos de indivíduos (deficientes e idosos), impossibilitados de garantir sua manutenção ou de tê-la provida pela família.
Mediante o pagamento de um salário-mínimo mensal, assim, a Constituição prevê a garantia do mínimo existencial daquele beneficiário específico. A LOAS, em seu art. 21, § 1º, por sua vez, dispõe sobre o cancelamento do pagamento quando cessadas as condições que o ensejaram ou em razão da morte do beneficiário[1].
O próprio valor pago, ademais, demonstra que a verba constitucionalmente prevista se destina a atender às necessidades vitais básicas enumeradas no art. 7º, IV, da CF/88[2].
Dessa forma, conquanto se verifique que a única renda do grupo familiar decorre do benefício de prestação continuada, com a morte do idoso/deficiente, não haverá a transferência do benefício para outrem.
Na eventualidade de outro membro do grupo fazer jus à concessão, deverá comprovar que atende a todos os requisitos e formular requerimento próprio, sem que haja qualquer vinculação com o benefício cessado.
Tal ocorre em razão do caráter personalíssimo da verba em questão, destinada ao sustento e à manutenção exclusiva do agraciado, diversamente do que ocorre com os benefícios pagos pelo sistema previdenciário, destinados a cobrir uma quantidade muito maior de riscos sociais e de atender não só ao segurado, mas também a quem a lei enquadra como dependente.
Não se olvide, aliás, que a lei nº 10.741/2003 (art. 34, parágrafo único) reforça o caráter personalíssimo do benefício ao excluir do cálculo da renda per capita eventual pagamento feito a título assistencial a outro idoso que componha o grupo familiar[3]. Isso ocorre, repita-se, porque a verba se destina à manutenção daquele que se encontra em estado de extrema vulnerabilidade econômico-social e não à de todo o grupo familiar.
Infere-se, portanto, que o benefício de prestação continuada, objetiva de forma única e exclusiva o custeio da manutenção do indivíduo que a ele tem direito, garantindo-lhe o mínimo existencial, não tendo o condão de ensejar a formação de patrimônio ou de reserva pecuniária.
Dessa situação emerge uma importante consequência processual.
Normalmente a propositura da ação judicial é precedida de um requerimento administrativo formulado perante o INSS e indeferido por essa autarquia. Ocorre que o julgamento procedente do pedido pelo juízo pode determinar como data de início do benefício aquela em que foi formulado o requerimento na seara administrativa.
Infelizmente, não são raros os casos em que o idoso/deficiente falece, em razão de seu precário estado de saúde, no decorrer do processo judicial em que pleiteava a concessão do benefício.
Em face disso, surge a dúvida acerca da possibilidade de habilitação dos sucessores do de cujus para o recebimento dos valores pretéritos.
À míngua das razões apresentadas pelos defensores da possibilidade de continuidade do processo e, em caso de julgamento procedente, pagamento aos sucessores das parcelas vencidas antes do óbito do beneficiário, tal solução vai de encontro à disciplina normativa do instituto.
Isso porque as verbas pagas a título de benefício assistencial de prestação continuada possuem caráter personalíssimo sendo, pois, intransmissíveis.
Além do mais, o benefício assistencial, orientado pelos princípios da seletividade e da distributividade (art. 94, parágrafo único, III, da CF/88) só deve ser prestado, nos termos do acima transcrito art. 203, V, da Constituição, quando a manutenção das pessoas a que se refere não puder ser provida por elas ou por sua família.
O conceito consagrado de família, por sua vez, corresponde ao conjunto de pessoas ligadas entre si por relações de parentesco. Sobre essas últimas, dispõe o Código Civil no art. 1591 e seguintes[4].
Percebe-se, portanto, que a assistência social a ser prestada pelo Poder Público possui caráter subsidiário, ou seja, apenas na impossibilidade de manutenção própria ou por meio da família, deverá ser deferido o benefício de prestação continuada prevista na LOAS.
Nesse contexto, é relevante trazer à colação o seguinte excerto do Código Civil:
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
(...)
Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.
Pode-se inferir, desse modo, que há a obrigação entre os membros da família em relação ao sustento um do outro e, apenas em caso da impossibilidade dos parentes em arcar com as despesas pela manutenção do necessitado, poderá ser demandado o Poder Público.
Assim, deferir o pagamento de eventuais valores atrasados a quem tinha, de forma originária, o dever de arcar com o sustento do falecido atentaria também contra o princípio do tu quoque, relacionado ao da boa-fé objetiva.
Segundo aquele princípio, a inobservância da lei não pode acarretar situação mais favorável que a gerada pelo seu cumprimento. Por isso, descabe condenar o INSS a pagar aos parentes/sucessores da parte autora valor decorrente de dever jurídico que a eles inicialmente caberia cumprir.
Infere-se, portanto, que mesmo reconhecido o direito ao benefício desde a data do requerimento administrativo e havendo valores atrasados a serem recebidos, dado o caráter personalíssimo da verba e o princípio da boa-fé objetiva, a morte da parte autora acarreta a extinção do processo sem julgamento do mérito, inexistindo a possibilidade de sucessão por parte dos herdeiros.
Tal entendimento, ressalte-se, é adotado pela jurisprudência, conforme se depreende da leitura do julgado abaixo:
PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. BENEFÍCIO DE AMPARO SOCIAL AO DEFICIENTE FÍSICO. FALECIMENTO DA POSTULANTE NO CURSO DA AÇÃO. 1. O art. 267, IX, do CPC determina a extinção, sem resolução do mérito, da ação que for considerada intransmissível por disposição legal. 2. O benefício assistencial - LOAS (art. 203 da CF/88) é personalíssimo e intransferível, pelo que deixará de existir quando da cessação das condições que deram origem ao benefício ou pelo falecimento do beneficiário. 3. Apelação não-conhecida.
(AC 0028942-76.2010.4.01.9199/MG, DESEMBARGADORA FEDERAL NEUZA MARIA ALVES DA SILVA, TRF1 - SEGUNDA TURMA, 27/08/2010)
III. Conclusão.
O benefício assistencial de prestação continuada se destina única e exclusivamente à subsistência de seu titular quando este ou sua família não têm condições materiais de provê-la.
Disso decorre seu caráter personalíssimo e o papel subsidiário do Estado em custear a manutenção do beneficiário.
Desse modo, infere-se ser descabida a habilitação dos sucessores no processo judicial em que o de cujus pleiteava a concessão do benefício, motivo pelo qual o falecimento do autor idoso/deficiente físico impõe a extinção do processo sem resolução do mérito nos termos do art. 267, IX, do CPC.
[1] Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.
§ 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no caput, ou em caso de morte do beneficiário.
[2] Moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social
[3] Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas.
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.
[4] Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes.
Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra.
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.
Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.
§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PONTUAL, Marina dos Anjos. Anotações sobre o caráter personalíssimo do benefício assistencial de prestação continuada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jul 2011, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25009/anotacoes-sobre-o-carater-personalissimo-do-beneficio-assistencial-de-prestacao-continuada. Acesso em: 29 set 2024.
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