I. Introdução.
Ao prever o pagamento do benefício assistencial a deficientes e idosos, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS – lei nº 8.742/93) estabeleceu um critério objetivo de determinação da carência econômica que possibilita a concessão.
A recente edição da lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011, mais uma vez alterou a redação do parágrafo 1º do art. 20 da LOAS, visando, dentre outras coisas, dar uma melhor regulamentação ao comando constitucional e dirimir algumas controvérsias judiciais e doutrinárias em torno do conceito de família para os fins daquela lei.
Todavia, conforme será visto, tal preceito não pode ser interpretado de forma literal, sob pena de causar injustiça, exatamente o que a previsão do benefício pretende evitar.
II. Fundamentos constitucionais e legais do amparo assistencial.
A Constituição de 1988, chamada “Cidadã” por causa do abrangente rol de direitos e garantias e garantias individuais, sociais, coletivos e políticos contemplados, dedicou ao princípio da dignidade da pessoa humana especial tratamento.
Tal princípio, considerado fundamental nos termos do art. 1º, III, da Constituição, é o pressuposto de vários outros direitos previstos na Carta Magna e na legislação infraconstitucional.
Em relação aos primeiros, pode-se destacar o seguinte excerto:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
(...)
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
O salário mínimo, por sua vez, não obstante ter sua quantificação dada por lei ordinária, ou ato normativo equivalente, também possui base constitucional fixada no art. 7º, IV, e corresponde, em tese, ao numerário capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
Em relação diploma normativo a que se refere o dispositivo constitucional, trata-se da lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, também denominada Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
Ainda analisando a Carta Magna, percebe-se que, dos vários grupos que se encontram em explícito estado de vulnerabilidade social, o constituinte deferiu a dois - idosos e pessoas com deficiência - uma especial proteção, consistente no pagamento do piso remuneratório do trabalhador, com o fim de lhes assegurar o mínimo existencial.
Num país em que a população pobre ainda ocupa um alto percentual demográfico, o benefício em questão deve manter relação inseparável com o princípio da seletividade da seguridade social, constante do art. 194, parágrafo único, III, da Constituição.
Segundo esse princípio, só as demandas sociais dos mais necessitados devem ser garantidas pelo Poder Público. Em se tratando de assistência social, apenas pode ser deferido o benefício da LOAS ao idoso ou à pessoa portadora de deficiência que se encontre em estado de miserabilidade, sendo vedado que o numerário pago se transforme numa mera complementação de renda, dissociada da garantia do mínimo existencial.
Na tentativa de dar contornos de objetividade ao conceito aberto de miserabilidade, o parágrafo 3º do art. 20 da LOAS teve sua redação mantida e continua a dispor que é incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita é inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo[1].
A realidade brasileira, cujos lares possuem formação bastante heterogênea, também impôs à lei a conceituação de família, para fins de apuração da fração de renda acima referida. Tal conceituação já sofreu duas alterações desde a entrada em vigor da lei nº 8.742/93, que serão tratadas no tópico seguinte.
III. Abrangência do conceito de família, para fins de concessão do benefício assistencial.
Em sua redação original, o art 20, § 1º, da lei nº 8.742/93 assim definia família:
§ 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se por família a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes.
Percebe-se que o conceito acima estava dissociado das relações biológicas, normalmente associadas à ideia de família. Utilizando uma perspectiva sociológica, muito útil à realidade brasileira, a norma contemplou a família de forma abrangente.
Ocorre que, em 30 de novembro de 1998, foi promulgada a lei nº 9.720 que deu a seguinte redação àquele dispositivo:
§ 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se como família o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº. 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto.
O art. 16 da Lei nº. 8.213/91 (Lei de Benefícios da Previdência Social), por sua vez, possui a seguinte redação:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)
II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;
(...)
§ 2º .O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.
Da interpretação literal de tais regras, podia-se inferir a exclusão de alguns parentes do conceito de família para fins de apuração da renda mensal per capita, não obstante coabitarem. Eram eles: filhos maiores de vinte um anos, desde que não sejam inválidos; netos; genros; padrastos e enteados etc.
Isso posto, numa residência em que uma idosa sem renda coabitasse com dois filhos não portadores de invalidez, maiores de vinte um anos e inseridos no mercado de trabalho, com ganhos suficientes para custear a manutenção da residência e de seus moradores, a remuneração destes não poderia ser utilizada para o cálculo da renda per capita para fins de pagamento do benefício assistencial, o que revelava um verdadeiro contrassenso.
À míngua de ser bastante utilizada, é sabido que a interpretação gramatical, quando dissociada das outras formas de exegese, muitas vezes leva a resultados que contrariam o objetivo da norma. É o que se verifica do caso em análise, no qual se demanda a interpretação sistemática das regras acima com outras do ordenamento.
O benefício da assistência social, orientada pelos princípios da seletividade e da distributividade na prestação dos benefícios e serviços (art. 94, parágrafo único, III, da CF/88) só deve ser deferido, nos termos do acima transcrito art. 203, V, da Constituição, quando a manutenção das pessoas a que se refere não puder ser provida por elas ou por sua família.
O conceito consagrado e família, por sua vez, corresponde ao conjunto de pessoas ligadas entre si por relações de parentesco. Sobre essas últimas, dispõe o Código Civil no art. 1591 e seguintes[2].
Percebe-se, portanto, que a assistência social a ser prestada pelo Poder Público possui caráter subsidiário, ou seja, apenas na impossibilidade de manutenção própria ou por meio da família, deverá ser deferido o benefício de prestação continuada prevista na LOAS.
Nesse contexto, é relevante trazer à colação o seguinte excerto do Código Civil:
Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
(...)
Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.
Pode-se inferir, desse modo, que há a obrigação entre os membros da família em relação ao sustento um do outro. Apenas em caso da impossibilidade dos parentes em arcar com as despesas pela manutenção do necessitado poderá ser demandado o Poder Público.
Atendendo ao mandamento constitucional, cujas disposições não podem ser contrariadas por regras ordinárias e considerando o sistema normativo de forma harmônica, no qual se deve buscar interpretações que não importem derrogações, quando possível, não era dado interpretar o art. 20, § 3º, de forma restritiva.
Ora, mesmo não tendo renda própria, se uma mãe ou um pai coabitassem com filhos maiores de vinte um anos e aptos para o trabalho e esses, por imperativos jurídicos e morais, tivessem condições materiais de prover com dignidade a mantença daqueles, não haveria como se considerar a miserabilidade e deferir-se o benefício assistencial.
Seria, aliás, injustificável, no caso acima, permitir a contagem da renda do filho quando este tivesse, por exemplo, dezoito anos de idade, e excluí-la no dia em que este completasse vinte um anos, mas continuasse a coabitar com os pais.
Como já vinham decidindo os Tribunais, não se poderia conceber que uma mãe faria parte do núcleo familiar do filho, porém o filho não pertenceria ao da mãe. Isso, porque, segundo o princípio do terceiro excluído, algo é ou não é, não podendo sê-lo em certos casos e não o ser em outros.
Nesse sentido, já decidira a Turma Nacional de Unificação dos Juizados Especiais Federais (TNU):
EMENTA PROCESSO CIVIL - ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO DA PRESTAÇÃO CONTINUADA. REQUISITOS LEGAIS. CONCEITO DE FAMÍLIA. 1. Ao apurar o grupo familiar do requerente, o juiz não está adstrito ao rol do art. 16 da Lei n. 8.213/91, que, neste caso, é meramente exemplificativo, podendo, diante do caso concreto, ser alargado ou diminuído, de acordo com a sua eqüitativa apreciação, e tendo em visto o art. 5º da Lei n. 11.340/2006. 2. Caso de retorno dos autos ao juízo de origem para, diante do caso concreto, fazer a adequação do julgado. 3. Recurso conhecido e provido em parte. (PEDILEF 200770950064928, JUÍZA FEDERAL MARIA DIVINA VITÓRIA, TNU - Turma Nacional de Uniformização, 19/08/2009).
Na tentativa de encerrar com a polêmica, a lei nº 12.435/2011 deu a seguinte redação ao parágrafo 1º da LOAS:
§ 1º Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Percebe-se que a nova redação se situa numa posição intermediária entre a redação originária da lei, mais ampla em relação ao conceito de família, e a dada pela lei nº 9.720/98, mais restritiva.
Não há dúvidas de que o novel texto supriu as principais falhas da alteração anterior, contudo, não se pode negar que ainda deixou de contemplar situações encontradas em diversos lares brasileiros em que a mútua colaboração entre parentes, dos mais diversos graus, para a subsistência do grupo, conforme determina a Lei Civil, afasta a condição de miserabilidade de todos eles.
Sendo assim, entendo que a melhor solução ainda é aquela dada pelo julgado acima transcrito, segundo a qual o julgador, ao apurar o grupo familiar do requerente, não está adstrito ao rol da nova redação do art. 20, § 1º da LOAS, que, neste caso, é meramente exemplificativo, podendo, diante do caso concreto, ser alargado ou diminuído, de acordo com a sua eqüitativa apreciação.
IV. Conclusão.
A concessão do benefício assistencial, por todos os princípios que a norteiam, é deferida em caráter restrito às pessoas idosas e portadoras de deficiência, incapazes de prover o próprio sustento ou de tê-lo provido pelos familiares.
Vê-se, portanto, que o pagamento do benefício de prestação continuada previsto na Constituição e na LOAS pelo Poder Público se faz de forma subsidiária, apenas sendo devido quando não há parente cujas condições econômicas sejam aptas a fazê-lo.
Em face disso, não se pode dar ao conceito de família uma interpretação restritiva o suficiente para descaracterizá-la ao ponto de afastar dos membros do núcleo o dever jurídico e moral de prover a subsistência uns dos outros.
Tem-se, pois, que tal interpretação restritiva, além de não se justificar juridicamente, contraria os princípios que nortearam o sistema de assistência social no Brasil, não podendo, portanto, ser adotado.
[1] Atualmente, muitos juízes e tribunais consideram a renda per capita do grupo familiar apenas um dos elementos de convencimento para apurar a existência da miserabilidade e não o único. Vide súmula nº.11 da Turma Nacional de Unificação dos Juizados Especiais Federais.
[2] Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes.
Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra.
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.
Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.
§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos irmãos do cônjuge ou companheiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PONTUAL, Marina dos Anjos. A lei nº 12.435/2011 e a mudança no conceito de família para fins de concessão de benefício assistencial de prestação continuada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jul 2011, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/25015/a-lei-no-12-435-2011-e-a-mudanca-no-conceito-de-familia-para-fins-de-concessao-de-beneficio-assistencial-de-prestacao-continuada. Acesso em: 29 set 2024.
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