Sumário: INTRODUÇÃO. 1. Como as pessoas se relacionam com a cidadania. 2. Democracia e Estado Social. 3. A cidadania social tem um custo? Cidadania fiscal: o dispêndio na cidadania social. 4. A cidadania fiscal passa pela luta pelo reconhecimento dos valores como ser humano? 5. Problema que a concepção da cidadania omite. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
Com o retorno da democracia ao País e a promulgação da Constituição Federal de 1988, a cidadania voltou a ser reivindicada pela população. Ela se constitui em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, estando inserida no art. 1º, inciso II, da nossa Carta Política. Segundo Carvalho (2011, pag 7), “ A cidadania, literalmente, caiu na boca do povo. Mais ainda, ela substituiu o próprio povo na retórica política. Não se diz mais ‘o povo quer isto ou aquilo’, diz-se ‘a cidadania que’. Cidadania virou gente”. Não se vislumbra outro mecanismo de aquisição de direitos, a não ser através da cidadania, que se afigura como um sentimento que deve levar os indivíduos a buscar seus direitos quando conscientes de que pertencem a um determinado ente que podemos denominar de Estado organizado sob uma constituição.
Atualmente, houve-se muito falar em cidadania. Na mídia de um modo geral, quase que diariamente questões ligadas ao termo cidadão e cidadania são citadas. Mas, o que vem ser a cidadania? O presente artigo tem por escopo tentar responder esses questionamentos e chegar a um entendimento sobre cidadania fiscal.
A participação do povo na vida política do país é elemento que influencia na decisão. Neste sentido, para Borja apud Jacobi (2000), “o objetivo principal da participação no plano conceitual é facilitar, tornar mais direto e mais cotidiano o contato entre os cidadãos e as diversas instituições do Estado e possibilitar que estas levem mais em conta os interesses e opiniões daqueles antes de tomar decisões ou de executá-las”
O orçamento participativo, por exemplo, implantado pelo Partido dos Trabalhadores – PT, na prefeitura de Porto Alegre – RS, foi uma forma de, segundo Silveira (2002, pág. 44) “estimular a formação dos Conselhos populares nos bairros e vilas da cidade para que a população pudesse participar da decisão sobre como e onde deveriam ser aplicados os recursos públicos do município no atendimento das necessidades da cidade”.
Apesar de desenvolver uma democracia participativa e representativa, o orçamento participativo não pode beneficiar todos, isto implica a dizer que, uma determinada coletividade irá se beneficiar em detrimento de outra. Assim, gera um clima de rivalidade.
Por outro lado, o excesso de democracia esgota o indivíduo e gera uma apatia política. Neste sentido, pondera Pont apud Silveira (2000, pág. 45), “é coerente sustentar que a ação organizada da população tende a aumentar a cobrança por mais democracia e por mais eficiência administrativa”.
O grande desafio, a programas como estes, que se busca o exercício da cidadania, é encarar o desconhecimento da população acerca dos aspectos do tributo.
É perceptível que a concepção de cidadania vem passando por mudanças que, não se limitam apenas a participação nas eleições, como aduz a Constituição Federal em seu artigo 3º. Assim, pondera Barcellona (2000, pág. 51)
“O tema da cidadania vem proposto com força em toda a área da esquerda, do mundo católico, das forças que, de qualquer maneira, tentam individualizar uma discriminação própria, com referência à linha do puro lance do mercado, do individualismo, do consumismo”
Por outro lado, pensar em cidadania é pensar numa estratégia para a inserção dos mais explorados e oprimidos, tendo em vista que, se a sociedade é dividida em classes, os interesses da maioria explorada não são o mesmo da minoria exploradora. Neste sentido, Barcellona (2000, pág. 51)
“A figura da cidadania parece a única capaz de fornecer ainda uma imagem unificante, se superar a fragmentação corporativa dos interesses e de “representar” a unidade do indivíduo na diversidade de suas dimensões”
Então a integração dos setores mais pobres da sociedade traz à tona a idéia de pertença; de estar na sociedade, por isso a cidadania deve ultrapassar as últimas conquistas obtidas no curso da história. Segundo Barcellona (2000, Pág. 51):
“A cidadania torna-se o terreno sobre o qual parece possível não apenas testar uma linha defensiva, mas também construir uma formalização de expectativa”
Assim, a cidadania não se restringe a sua transformação nas sociedades socialistas; à crise do Estado Social ou à falência dos países do Leste, pois a cidadania anseia por outras aspirações; novas formas de participação; exigências e necessidades. Conforme Barcellona (2000, Pág. 51):
“A cidadania se dilata, torna-se um ponto de referência de necessidades e exigências novas; nela se mesclam de um lado as antigas aspirações a uma democracia completa, feita de participação consciente e de decisões; e, de outro, a relevância dos que são chamados os “novos bens” expressos pelos “novos movimentos”. O uso do território, a tutela do ambiente, a saúde, até a paz”.
Portanto, a cidadania passa por mudanças de valores, assumindo expectativas de valores no seio da sociedade, de modo a tornar-se as determinações que vem assumindo em cada movimento.
Para que o Estado garanta a seus membros direitos à saúde, à educação, à habitação, à segurança social, e etc., é necessário que o cidadão – contribuinte preste o dever solidário de pagar os impostos, pois o Estado não gera riquezas por si só, daí a idéia de solidariedade social. Neste sentido, afirma Nabais ( 2005, Pág. 115):
“O Estado na sua configuração de Estado Social não pode deixar de garantir a cada um dos membros da sua comunidade um adequado nível de realização dos direitos à saúde, à educação, à habitação, à segurança social, etc”.
A solidariedade pode ser entendida sob diferentes ângulos em que passa pela idéia de pertença na sociedade, de partilha, bem como a consciência de pertencer a tal sociedade. Segundo Nabais (2005, pág. 110) “A solidariedade social e em que é que se traduz ou em que é que consiste a cidadania, designadamente a cidadania que a solidariedade social tende a suportar”.
Por outro lado, podemos dizer que a solidariedade é fator preponderante para que o Estado por exigência constitucional possa garantir aos entes coletivos, direitos sociais que não lhe são alcançados, já que a pobreza, enquanto problema social, e não individual, deve ser observado pelo Estado. Pondera Nabais (2005, pág. 115):
“Podemos dizer que foi este tipo de solidariedade a que foi convocada para a resolução da chamada questão social, quando a pobreza deixou de ser um problema individual e se converteu num problema social a exigir intervenção política”.
Podemos dizer que há uma relação entre a solidariedade social e a cidadania, ou mesmo cidadania solidária. A este respeito, Nabais (2005, pág. 124):
“Na verdade, esta se apresentou, numa primeira etapa, correspondente ao Estado liberal, como cidadania passiva, traduzida numa “liberdade comum” orientada fundamentalmente para a proteção da vida, liberdade e propriedade na esfera privada e familiar, que encarava a comunidade política como algo externo ou alheio à vida comum e, por conseguinte, deixava a criação do direito e a sua execução administrativa ao cuidado de políticos profissionais. Depois numa segunda etapa, correspondente à afirmação do Estado democrático, consolidou-se a idéia da cidadania ativa ou participativa concretizada no sufrágio universal de caráter representativo ou direto, em que o cidadão participa com o seu voto na vida política da comunidade. Finalmente, num terceiro momento, vejo juntar-se a cidadania solidária ou a ‘cidadania responsavelmente solidária”, em que o cidadão assume um novo papel, tomando consciência de que o seu protagonismo ativo na vida pública já se não basta com o controle do exercício dos poderes”
É bastante discutida esta forma de cidadania, já que solidariedade não pode ser imposta; reconhecida individualmente, exatamente porque a tributação nos obriga retirar parte de nossas riquezas. Pondera Nabais (2005, Pág. 125):
“É certo que a esta forma de cidadania pode ser, e tem sido, objeto de algumas objeções. De um lado, argumenta-se dizendo que há uma incompatibilidade entre a solidariedade e a imposição, pelo que integrar as conseqüências jurídicas da solidariedade, impondo deveres exigíveis, em última instância, através de coação, seria pagar a própria idéia de solidariedade”.
Segundo Tanaka apud Jacobi (2000) “a participação minimalista aponta para o fato de que existe um déficit de participação e de constituição de atores relevantes, o que se pode redundar em fator de crise de governalibidade e de legitimidade”. Assim, a participação se fortalece por intermédio do estímulo de práticas dialógicas permanentes para atender aos setores mais excluídos. No dizer de Jacobi (2000, pág. 12),
“tanto no Brasil quanto do resto dos países da América Latina, marcados por tradições estatistas, centralizadoras, patrimonialistas e, logo, por relações clientelistas, meritocráticas e de interesses entre sociedade e Estado. Entretanto, esses condicionantes não têm sido necessariamente um fator impeditivo para o surgimento de diversas formas de participação dos setores populares, e embora muitas delas sem enquadrem no contexto das tradições anteriormente descritas, outras o contradizem abertamente.
A descentralização do poder é um mecanismo essencial para a democratização do poder público e fortalecimento de uma cidadania ativa através do processo de democratização do Estado e de suas práticas institucionalizadora. Tanto que, para Merino apud Jacobi (2000) “ao indentificarmos a participação citadina como uma forma diferenciada da democracia representativa, a que passa por partidos políticos, eleições e integração formal dos governos, pensamos o tema a partir de sua dimensão cotidiana e de seu impacto societal”.
O desafio do impacto das práticas participativas parte da manifestação do coletivo e as barreiras que precisam ser superadas. Segundo Bobbio apud Jacobi (2000, pág. 13):
“a contraposição entre as duas dinâmicas “estatização da sociedade, mas também “socialização do Estado” os dois processos representam, segundo o autor, ‘as duas figuras do cidadão participante e do cidadão que através da participação ativa exige sempre maior proteção do Estado e através da exigência de proteção reforça aquele mesmo Estado do qual gostaria de se assenhorear e que, ao contrário, acaba por se tornar seu patrão”.
Isto porque, quanto maior a cidadania participativa, maior será o sacrifício financeiro.
Cumpre ressaltar que, quanto mais a esfera pública vai se dirigindo a sociedade, mais essa vai demandando. Cunill Grau apud Jacobi (2000, pág. 16), assim ressalta:
“A ampliação da esfera pública pressiona a sociedade no sentido de obter maior influência sobre o Estado, bem como a limitação deste, considerando que a autonomia social pressupõe não só transcender as assimetrias na representação social, mas também modificar as relações sociais em favor de maior auto – organização social”.
Após a década de 70, com a relevância dos movimentos sociais, criou-se uma nova estrutura de interação com o poder público. Estes movimentos ganharam autonomia e passaram a interferir na agenda política. No dizer de Jacobi (2000, pág. 19):
“Os movimentos não só exercem pressão sobre a arena política, como também ampliam seu espaço de inserção, conseguindo às vezes influenciar a agenda de gestões progressistas, graças a expansão do seu potencial participativo em conselhos de gestão tripartite, comissões de planejamento e outras formas específicas de representação”.
O atendimento das demandas sociais tem característica de inclusão; de pertencer a uma comunidade, reconhecendo, portanto, a luta pelo reconhecimento da cidadania fiscal. Pondera Barcellona (2000, Pág. 60), que:
“É a de que o reconhecimento de certos direitos de segurança, de certas formas de garantia do lucro, seja o puro e simples resultado das relações de força que subsistem na sociedade entre os grupos que detêm o controle do processo produtivo e as organizações dos trabalhadores ou outras organizações aliadas. Em suma, a decisão que está na base da política governativa é o “resultado de uma luta”
Segundo Nabais (2005, pág. 119) “a cidadania pode ser definida como a qualidade dos indivíduos que, enquanto membros ativos e passivos de um Estado – nação, são titulares ou destinatários de um determinado número de direitos e deveres universais e, por conseguinte, detentores de um específico nível de igualdade”. Na definição do Dicionário de Aurélio cidadania “é a qualidade ou estado do cidadão; o indivíduo no gozo ou no desempenho de seus deveres para com este”.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu parágrafo único do art. 1º, assim expõe: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Assim, na explicação de Dezen Jr. Apud Silveira (2002, pág. 37) “cidadão, no caso brasileiro, é a parcela do povo que é titular de capacidade eleitoral ativa, ou seja, do poder de votar e do poder de interferir nas decisões políticas e na vida institucional do Brasil, direta ou indiretamente, como prevê a Constituição”.
Este conceito de cidadania é excludente, tendo em vista que, os menores de 16 anos e estrangeiros, por exemplo, seriam excluídos por não possuírem capacidade eleitoral ativa, mas é de suma importância ressaltar que o fator político é um dos elementos da cidadania, e não o único.
A cidadania, segundo Marshall, é composta de três elementos: civil; social e político. Assim, Marshall apud Silveira (2002, pág. 38), traz a definição desses elementos, quais sejam:
“O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros porque é direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminhamento processual. Isto nos mostra que as instituições mais intimamente associados com os direitos civis são os tribunais de justiça. Por elemento político se deve entender o direito de participar do exercício do poder político, como um membro de um organismo investido de autoridade política ou como um eleitor dos integrantes de tal membros. As instituições correspondentes são o parlamento e Conselhos de Governo local. O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas a ele são o sistema educacional e os serviços sociais.
Enfim, o exercício da cidadania, no seio da sociedade, não pode ser apenas identificado pelo direito de votar e ser votado, como no caso brasileiro, pois, conforme pondera Silveira (2002, pág. 39) “ser cidadão é ser capaz de cumprir obrigações perante à sociedade da qual se faz parte, bem como exigir seus direitos”. Portanto, o que importa é o comportamento do indivíduo na sociedade.
A cidadania não só se restringe no direito de votar e ser votado. Exercer a cidadania transcende do mero aspecto político. A cidadania fiscal, por sua vez, requer uma compreensão dos tributos, bem como de sua aplicação na sociedade, pois vive-se uma alienação fiscal e a transparência no dispêndio dos recursos públicos é algo inacessível ao cidadão comum, tendo em vista que essas informações são necessárias para uma maior compreensão da atividade financeira do Estado, e portanto, da cidadania fiscal
A cidadania fiscal, assim, visa apontar à necessidade de simplicidade e transparência na atividade financeira do Estado e a partir daí fazer surgir um cidadão que participe mais ativamente das coisas públicas. É neste contexto que emerge a educação fiscal destinada a induzir no cidadão o devido reconhecimento do seu sacrifício financeiro na manutenção do Estado, especialmente diante da pífia presença social do Estado.
BARBOSA, Alice Mouzinho. Cidadania fiscal. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2007.
BARCELLONA, Pietro. L’individuo e la comunità. Roma: Edizioni Lavoro, 2000.
CARVALHO, José Murilo de, 1939- Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo de Carvalho. – 14ª Ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1998.
JACOBI, Pedro. Políticas sociais e ampliação da cidadania. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
NABAIS, José Casalta. Solidariedade social, cidadania e direito fiscal. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (Coords.). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 110-140.
SILVEIRA, Rogério Zanon de. Tributo, educação e cidadania: a questão tributária no ensino fundamental como fator de desenvolvimento da cidadania participativa no Brasil. 2. ed. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 2002.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, JOÃO PAULO DOMINGOS DE. Cidadania Fiscal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 mar 2012, 12:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/28059/cidadania-fiscal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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