RESUMO: Serve o presente trabalho para verificar a natureza jurídica do delito de desenvolvimento clandestino de atividades de telecomunicação, especificamente para perquirir se o crime se classifica como de perigo abstrato ou concreto.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Responsabilidade Administrativa, Civil e Penal. Independência entre as instâncias. 3. O Crime do Artigo 183 da Lei nº 9.472/1997: Perigo Abstrato ou Concreto? 4. Conclusão. 5. Referências Bibliográficas.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade; Desenvolvimento Clandestino de Telecomunicações; Infração Administrativa; Infração Penal; Perigo Abstrato; Perigo Concreto.
1. INTRODUÇÃO
O art. 19 da Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, preconiza que à Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, destacando, no inciso VIII do mesmo dispositivo que, para tanto, deverá o referido ente administrar o espectro de radiofrequências e o uso de órbitas, expedindo as respectivas normas.
Nessa linha de pensamento é que a mesma Lei, em seu art. 183, configura como ilícito penal desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação, punindo a conduta com detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais), incorrendo na mesma pena quem, direta ou indiretamente, concorrer para o crime.
Cumpre, inicialmente, indagar sobre a natureza do crime previsto no art. 183 da LGT, se se trata de crime de perigo concreto ou abstrato, bem como as consequências de um ou outro entendimento para a configuração da responsabilidade administrativa do infrator.[1]
2. Responsabilidade Administrativa, Civil e Penal. Independência entre as instâncias.
Para José dos Santos Carvalho Filho, a noção de responsabilidade indica uma ideia de resposta, o que, para a esfera jurídica, implica que alguém (o responsável) responderá perante a ordem jurídica em função de algum fato anterior[2]. O autor defende, ainda, que “o fato gerador da responsabilidade varia de acordo com a natureza da norma jurídica que o contempla. Essa variação é que propicia os diversos tipos de responsabilidade ou, em outras palavras, a diversidade da norma corresponde à diversidade dos tipos de responsabilidade”. E continua o administrativista:
Temos, então, que se a norma tem natureza penal, a consumação do fato gerador provoca responsabilidade penal; se a norma é de direito civil, temos a responsabilidade civil; e, finalmente, se o fato estiver previsto em norma administrativa, dar-se-á responsabilidade administrativa.
Como as normas jurídicas, no caso acima, são autônomas entre si, a consequência é a de que as responsabilidades também serão, em princípio, independentes: a responsabilidade civil não acarreta, necessariamente, a responsabilidade penal e a administrativa; esta última, por sua vez, independe da civil e da penal.
Podem, eventualmente, conjugar-se as responsabilidades, mas isso só vai ocorrer se a conduta violar, simultaneamente, normas de naturezas diversas. (...)
No caso de uso não autorizado de radiofrequência, a previsão para a sua proibição, sob pena de cometimento de responsabilização criminal, encontra-se no art. 183 da LGT, in verbis:
LGT
Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação:
Pena - detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, direta ou indiretamente, concorrer para o crime.
Cabe, no entanto, lembrar que a conduta, por si só, gera ainda a responsabilização administrativa do infrator, submetendo-o às penalidades previstas no art. 173 da LGT:
LGT
Art. 1° Compete à União, por intermédio do órgão regulador e nos termos das políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo, organizar a exploração dos serviços de telecomunicações.
Parágrafo único. A organização inclui, entre outros aspectos, o disciplinamento e a fiscalização da execução, comercialização e uso dos serviços e da implantação e funcionamento de redes de telecomunicações, bem como da utilização dos recursos de órbita e espectro de radiofreqüências.
Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente: (...)
VIII - administrar o espectro de radiofreqüências e o uso de órbitas, expedindo as respectivas normas;
IX - editar atos de outorga e extinção do direito de uso de radiofreqüência e de órbita, fiscalizando e aplicando sanções; (...)
Art. 48. A concessão, permissão ou autorização para a exploração de serviços de telecomunicações e de uso de radiofreqüência, para qualquer serviço, será sempre feita a título oneroso, ficando autorizada a cobrança do respectivo preço nas condições estabelecidas nesta Lei e na regulamentação, constituindo o produto da arrecadação receita do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações - FISTEL.
Art. 163. O uso de radiofreqüência, tendo ou não caráter de exclusividade, dependerá de prévia outorga da Agência, mediante autorização, nos termos da regulamentação.
§ 1° Autorização de uso de radiofreqüência é o ato administrativo vinculado, associado à concessão, permissão ou autorização para prestação de serviço de telecomunicações, que atribui a interessado, por prazo determinado, o direito de uso de radiofreqüência, nas condições legais e regulamentares.
§ 2° Independerão de outorga:
I - o uso de radiofreqüência por meio de equipamentos de radiação restrita definidos pela Agência;
II - o uso, pelas Forças Armadas, de radiofreqüências nas faixas destinadas a fins exclusivamente militares. (grifos nossos)
Assim, o uso não autorizado de radiofrequência não acarreta apenas a responsabilização criminal do infrator. Por ter infringido diversas normas de caráter administrativo, dentre as quais aquela que determina que, como regra, o uso de radiofrequência requer a expedição prévia de outorga, mediante autorização, por parte da ANATEL, submete-se o infrator às penalidades administrativas cabíveis.
Desta forma, independentemente de haver ou não a comprovação de dano, efetivo ou iminente, aos demais serviços, deve o agente ser punido administrativamente. Em outras palavras, ainda que se entenda que a configuração do crime previsto no art. 183 da LGT requer a existência de efetiva interferência prejudicial, não deve esse posicionamento ser transportado para a esfera administrativa. Ou seja, o uso de radiofrequência e a exploração de serviços de telecomunicações, sem a outorga da Agência, por si só, já são consideradas infrações administrativas, independentemente da configuração ou não de dano.
Portanto, para fins de instauração de processo sancionador por parte da entidade reguladora competente, não é necessário verificar a existência ou não de dano. A exploração de serviço de telecomunicações ou uso de radiofrequência sem a outorga da ANATEL, por si só, já enseja a responsabilização administrativa do infrator, devendo a extensão do dano causado pela irregularidade ser considerada quando da aplicação da sanção administrativa. Portanto, a fiscalização da ANATEL, ainda que não vislumbre a existência de dano ou interferência prejudicial nessas hipóteses, deverá encaminhar suas conclusões à área competente para que esta instaure processo sancionador, de modo a que a conduta reste punida na esfera administrativa.
3. O Crime do Artigo 183 da Lei nº 9.472/1997: Perigo Abstrato ou Concreto?
Primeiramente, convém destacar que incumbe à ANATEL a ordenação do espectro de radiofrequências, notadamente um bem público escasso. Com efeito, destaca Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas (2008, p. 215):
Na destinação de faixas de radofreqüência, a ANATEL deverá considerar o emprego racional e econômico do espectro, sobretudo tendo em vista que se trate de bem limitado, bem como as atribuições, distribuições e consignações existentes, objetivando evitar interferências prejudiciais.
Ora, a repressão a tais delitos visa justamente evitar a utilização indevida do espectro de radiofrequência, sem o devido controle do ente regulador incumbido da função. O delito em comento, portanto, visa a evitar interferências prejudiciais em faixas de frequência tais como aquela utilizada pela Defesa Nacional e para aquelas utilizadas pela aviação civil.
Cabe lembrar que, havendo indícios de cometimento de crime, deve a ANATEL comunicar o fato às autoridades públicas incumbidas da persecução penal. Assim, sempre que se verificar que uma determinada conduta, em tese, pode ser considerada como infração penal, deve ela informar tal fato à Polícia ou ao Ministério Público.
Com efeito, não compete à Administração Pública a verificação da adequação típico-penal de uma determinada infração administrativa. Aliás, deve-se consignar que o entendimento segundo o qual o crime previsto no art. 183 da LGT é de perigo concreto não é pacífico na jurisprudência. A bem da verdade, existem decisões contrárias a tal posicionamento, indicando que o crime em comento deve ser classificado como de perigo abstrato. Assim, por exemplo, decidiu a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça:
HABEAS CORPUS. PENAL. RADIODIFUSÃO CLANDESTINA. PRETENSÃO DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNFICÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE, CONDUTA PERFEITAMENTE ADEQUADA À NORMA. BAIXA POTÊNCIA OU PEQUENO ALCANCE DO RADIOTRANSMISSOR. INDIFERENÇA. ORDEM DENEGADA.
1. A instalação de estação clandestina de radiofrequência, sem autorização do órgão e do ente com atribuições para tanto – o Ministério das Comunicações e a ANATEL - , já é, por si só, suficiente a comprometer a regularidade e a operabilidade do sistema repressivo penal e faz impossível a aplicação do princípio da insignificância.
2. O fato de os equipamentos radiotransmissores terem baixa potência ou pequeno alcance é indiferente para a adequação típica da conduta.
3. Ordem denegada, em conformidade com parecer ministerial.
(HC 184053/BA. Ministro Marco Aurélio Bellizze. Quinta Turma. DJe 08/05/2012)
Destaca-se, ainda, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça, julgado no DJE em 17 de setembro de 2013:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. 1. CONTRARIEDADE AO ART. 183 DA LEI Nº 9.472/1997. ATIVIDADE CLANDESTINA DE RADIODIFUSÃO COMUNITÁRIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. 2. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. DESNECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA LESIVIDADE DA CONDUTA. DECISÃO RECORRIDA EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA 83/STJ. 3. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA SEGUIMENTO.
1. Prevalece no Superior Tribunal de Justiça o entendimento no sentido de não ser possível a incidência do princípio da insignificância nos casos de prática do delito descrito no art. 183 da Lei nº 9.472/1997. De fato, a instalação de estação clandestina de radiofrequência, sem autorização dos órgãos e entes com atribuições para tanto - Ministério das Comunicações e ANATEL -, já é, por si, suficiente para comprometer a segurança, a regularidade e a operabilidade do sistema de telecomunicações do país, não podendo, portanto, ser vista como uma lesão inexpressiva. Ademais, as particularidades do caso não justificam a excepcional aplicação do referido princípio, pois ficou demonstrado nos autos que a potência do aparelho apreendido (227W) seria muito superior ao estabelecido no art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.612/1998, que fixa os parâmetros relativos à potência e à altura do sistema irradiante dos serviços de radiodifusão comunitária.
2. É assente a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido de que o delito do art. 183 da Lei nº 9.427/1997 é de perigo abstrato. Isso porque para sua consumação, basta que alguém desenvolva de forma clandestina as atividades de telecomunicações, sem necessidade de demonstrar o prejuízo concreto para o sistema de telecomunicações. Dessa forma, patente que o acórdão recorrido encontra-se em consonância com a jurisprudência desta Corte, tanto no que concerne à não incidência do princípio da insignificância, quanto no que se refere à desnecessidade de demonstração de prejuízo concreto, o que atrai a incidência do enunciado nº 83 da Súmula desta Corte.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp 355.445/BA, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 17/09/2013, DJe 25/09/2013)
Nessa linha de raciocínio, deve a ANATEL comunicar os entes e órgãos incumbidos da persecução penal acerca de quaisquer indícios de cometimento da infração criminal prevista no art. 183 da LGT de que tenham conhecimento, considerando que, apesar de haver divergência, a jurisprudência do STJ tem demonstrado inclinação no sentido de que o referido delito é de perigo abstrato. De todo modo, deve a Agência, em sua atividade fiscalizatória, reunir tantos elementos de convicção quantos forem possíveis, subsidiando ao máximo a atividade estatal de persecução penal, inclusive mediante a apreensão de bens e solicitação de auxílio de força policial. É o que se depreende do parágrafo único do art. 3º da Lei nº 10.871/2004, com a redação dada pela Lei nº 11.292/2006. Vejamos:
Art. 3º. São atribuições comuns dos cargos referidos nos incisos I a XVI, XIX e XX do art. 1º desta Lei: (Redação dada pela Lei nº 11.292, de 2006)
I - fiscalização do cumprimento das regras pelos agentes do mercado regulado;
II - orientação aos agentes do mercado regulado e ao público em geral; e
III - execução de outras atividades finalísticas inerentes ao exercício da competência das autarquias especiais denominadas Agências Reguladoras de que trata esta Lei.
Parágrafo único. No exercício das atribuições de natureza fiscal ou decorrentes do poder de polícia, são asseguradas aos ocupantes dos cargos referidos nos incisos I a XVI, XIX e XX do art. 1ºdesta Lei as prerrogativas de promover a interdição de estabelecimentos, instalações ou equipamentos, assim como a apreensão de bens ou produtos, e de requisitar, quando necessário, o auxílio de força policial federal ou estadual, em caso de desacato ou embaraço ao exercício de suas funções. (Redação dada pela Lei nº 11.292, de 2006) [grifou-se]
De se lembrar que, para a realização de Busca e Apreensão, a ANATEL deve requerer autorização judicial. O mesmo, porém, não ocorre com a apreensão, cabendo à Agência, independentemente de mandado judicial, apreender bens ou equipamentos que sirvam a atividades contrárias à sua regulamentação. Deste modo, o ordenamento legal autoriza a ANATEL, na sua atividade de polícia, a interditar estabelecimentos, instalações e equipamentos, bem como apreender bens e produtos, o que pode ser muito útil às autoridades incumbidas da investigação criminal, sem prejuízo de o ente regulador, durante o curso do inquérito policial ou do processo penal, prestar os esclarecimentos técnicos eventualmente solicitados.
4. CONCLUSÃO
De toda sorte, havendo indícios de cometimento de crime, deve a ANATEL comunicar o fato às autoridades públicas incumbidas da persecução penal, já que não compete àquele ente regulador a verificação da adequação típico-penal de uma determinada infração administrativa.
5. Referências Bibliográficas
BOTTINI, Pierpaolo. Crimes de perigo abstrato não são de mera conduta. In: Revista Consultor Jurídico. 29 de maio de 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-mai-29/direito-defesa-crimes-perigo-abstrato-nao-sao-mera-conduta. Acesso em 05.11.2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2007.
MASCARENHAS, Rodrigo Tostes de Alencar. Direito das Telecomunicações. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008.
[1] Não partilhamos da tese segundo o qual o crime de perigo abstrato padeceria de vício de constitucionalidade, por ofensa ao princípio da lesividade. Nesse sentido, partilhamos das lições de Pierpaollo Bottini (2012), para quem “os crimes de perigo abstrato são legítimos e constitucionais, desde que o magistrado se certifique de que, no caso concreto, aquele comportamento específico tinha potencialidade para lesionar ou colocar em risco o bem jurídico protegido pela norma penal, que não era absolutamente inócuo”.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 471.
Procuradora Federal em Brasília (DF).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Marina Georgia de Oliveira e. O Desenvolvimento Clandestino de Atividades de Telecomunicações como Crime de Perigo Abstrato Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37266/o-desenvolvimento-clandestino-de-atividades-de-telecomunicacoes-como-crime-de-perigo-abstrato. Acesso em: 23 dez 2024.
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