RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a evolução histórica do Habeas Corpus como remédio de liberdade constitucional, fazendo-se uma digressão entre o seu cabimento, a sua natureza jurídica de ação constitucional e os conceitos gerais. Frisa-se, ao final, crítica a atual jurisprudência dos Tribunais Superiores que tendem a restringir o uso do Habeas Corpus para aquém das hipóteses de cabimento previstas no ordenamento jurídico, em clara burla a legalidade. Sendo assim, visa-se demonstrar que desde os primórdios, a excelência do Habeas Corpus foi protegida para fazer valer a sua força como remédio heroico em busca da liberdade de ir e vir.
INTRODUÇÃO
O Habeas Corpus é instituto jurídico que teve em seu nascimento a causa do autoritarismo do Estado contra a liberdade de locomoção dos indivíduos, tendo como natureza jurídica o caráter de ação penal constitucional.
Instrumento jurídico necessário para qualquer nação democrática e civilizada é atualmente considerado uma preciosa garantia no devido processo legal dos Estados Democráticos de Direito. Previsto em quase totalidade dos países civilizados, e contido na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, essa importante garantia tem o seu valor a ser garantido pela ordem jurídica vigente, a fim de impedir decisões arbitrárias contra os homens.
O presente trabalho visa a definir uma conceituação geral do habeas corpus, apresentando sua importância no cenário jurídico atual, permeando desde o seu desenvolvimento histórico e evolutivo, até os dias atuais. Igualmente, demonstra-se a presença do habeas corpus no diploma Constitucional e Processual Penal, apresentando as suas hipóteses de incidência, tendo em visto ressaltar a importância de sua função no nosso ordenamento jurídico.
Ademais, traz-se o atual posicionamento dos tribunais superiores quanto ao uso substitutivo do habeas corpus por outros meios recursais, prática já bastante enraizada no direito positivo pátrio.
1. HISTÓRICO DO HABEAS CORPUS
O instituto do habeas corpus nasceu da necessidade de se opor ao arbítrio estatal, limitando a atuação indevida dos detentores do poder. Dizem os doutrinadores que nos países civilizados e democráticos, a existência do habeas corpus é essencial à manutenção das liberdades do homem, uma vez que pode ser visto como a contenção do autoritarismo.
Não há um consenso unânime quanto à verdadeira origem do habeas corpus na história da humanidade.
Há doutrinadores que perfilham a linha histórica de que o habeas corpus tem a sua origem no direito romano, em que havia a existência de institutos que garantiam aos cidadãos romanos direitos fundamentais como o direito de locomoção e a liberdade de ir e vir, tendo aqueles o direito de peticionar a sua liberdade em razão da ilegalidade do fundamento de suas prisões.
Contudo, a maior parte da doutrina reconhece como sendo no direito inglês o nascedouro do habeas corpus.[1] Foi na Carta Magna da Inglaterra, outorgada pelo Rei João Sem Terra, em 1215, que surge a determinação legal que impedia a prisão do homem sem um prévio julgamento[2], já que tinha por objetivo barrar os excessos cometidos pelo Estado. Isso porque para os ingleses o direito de ir e vir era bem mais precioso do que até mesmo o direito à vida e o direito à propriedade.
Apesar de possuir raízes históricas anteriores ao século XVII, foi apenas em 1679, que surge a terminologia do Habeas Corpus, contida no instituto do Habeas Corpus Act, ato que impedia a prisão arbitrária ou ilegal. Por meio deste ato, todos os acusados de crime obrigatoriamente deveriam ser apresentados ao juiz, a fim de ser analisada a legalidade do ato de sua prisão. Tratava-se de instituto que era válido apenas no processo penal.
Em 1816 e pelo conseqüente desenvolvimento e evolução do Habeas Corpus Act, o habeas corpus passou a abranger todas as figuras de ilegalidade que tolhiam os homens de sua liberdade de locomoção. É a partir deste momento, que o instituto desenvolve-se como o meio eficaz para garantir a liberdade individual nos sociedades democráticas.
2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO HABEAS CORPUS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
O primeiro registro histórico de instrumento processual que se assemelhava com o Habeas Corpus no ordenamento Brasileiro surgiu em 1821, com o Decreto 114, autorizado por meio de um Alvará de Dom Pedro I, o qual vedava prisões arbitrárias. De igual modo, sem explicitamente citar a figura do habeas corpus, a Carta Imperial de 1824 previu, implicitamente o HC.
O Código Criminal do Império de 1830[3] foi o primeiro diploma legal a inaugurar, explicitamente, o habeas corpus. Nesse contexto, o referido Código Criminal fora aprimorado em 1832, havendo, com isso, o reforço na figura do habeas corpus[4].
Em 1871 foi outorgada a Lei 2.033, que teve papel importante na delimitação da legitimidade do remédio constitucional, uma vez que estendeu para estrangeiros um instrumento jurídico que até então só era possível para nacionais.
A Constituição de 1891 foi o primeiro diploma, que em nível constitucional consagrou o instituto do habeas corpus. Influenciado pelas idéias de Ruy Barbosa e Pedro Lessa, surgiu a Teoria Brasileira do habeas corpus, o qual pregava o entendimento de que o habeas corpus seria o meio hábil à defesa de qualquer direito líquido e certo, objeto de coação por ilegalidade ou abuso de poder, já que naquela determinada época ainda não existia a figura do Mandado de Segurança.
Em 1934, a Constituição Promulgada consagrou mais um remédio constitucional, o mandado de segurança, que acarretou na restrição das hipóteses de cabimento do habeas corpus.
A Constituição Federal de 1946 e a de 1967 perpetuaram o instituto nos seus textos constitucionais. Ocorre que o Ato Institucional nº 5 de 1968, instituído na vigência da ditadura militar estabeleceu que “fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. Essa disposição vigorou até 1969, data em que foi deliberada a EC 1/69.
A Constituição Federal de 1988 trouxe o habeas corpus dentre as liberdades pública, estabelecendo-o como instrumento processual constitucional e isentando quem fizer uso deste instituto de qualquer custo.
3. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO
A expressão habeas corpus tem origem no latim e provém dos vocábulos habeas (tomar) e corpus (corpo), os quais, em sua literalidade, significam tome o corpo. Em outras palavras, significava tomar a pessoa presa, apresentando-a ao juiz competente, antes do julgamento do caso. Popularmente, o habeas corpus também passou a ser conhecido como “ordem de libertação”, sem relevância o seu significado literal.
Nas palavras de Edílson Mougenot Bonfim[5]:
Habeas corpus é o remédio jurídico-constitucional destinado a proteger a liberdade de locomoção do indivíduo (ju manendi, eundi, ambulandi, veniendi, ultro citroque), ameaçada por qualquer ilegalidade ou abuso de poder. A expressão habeas corpus significa ‘tome o corpo’, pois em suas origens, com a impetração da ordem o prisioneiro era levado à presença do rei para que este verificasse a legalidade ou ilegalidade da prisão.
Direito fundamental que visa à garantia da liberdade individual, o habeas corpus é largamente conceituado como remédio jurídico que assegura a liberdade de locomoção do indivíduo. Constitucionalmente previsto na Carta Federal de 1988, o habeas corpus é chamado de instrumento heróico, já que tutela um dos direitos fundamentais mais preciosos, que é o direito de ir e vir.
Cumpre mencionar que o habeas corpus é considerado como garantia ativa, uma vez que pode ser usado como ação para fazer valer o cumprimento de um dever fundamental, que é o direito de ir e vir.
Nos termos do art. 647 do CPP, o habeas corpus está inserido dentre espécies de recurso. Entretanto, embora esteja presente como uma espécie recursal, a sua natureza jurídica é tema controverso na doutrina brasileira.
Doutrina majoritária vem acatar a tese de que o habeas corpus tem caráter jurídico de ação independente ou sui generis, uma vez que não pode ser considerado recurso, já a sua instauração não necessita de estar vinculado a um processo pré-existente, requisito fundamental e inerente a qualquer recurso.
Ademais, antes mesmo de ser considerado como um instrumento do processo penal, o habeas corpus está contido na Constituição Federal de 1988, como remédio constitucional. Assim sendo, é considerado como uma ação penal constitucional, de rito especial, uma vez que possui características que o difere de todos os outros meios recursais penais.
Uadi Lammêgo Bulos[6] assinala algumas características deste remédio constitucional:
Trata-se de uma ação penal popular, de berço constitucional e procedimento sumário. Ora assume o posto de ação cautelar, declaratória ou constitutiva (CPP, art. 648, I a V), ora de ação rescisória constitutiva negativa (CPP, art. 648, VI e VII).
Não é em todo e qualquer caso que o remédio heróico pode ser usado, visto que somente serve para tutelar a liberdade ambulatória ou de locomoção.
Nas palavras do Supremo Tribunal Federal, o habeas corpus possui preferência sobre qualquer outro instrumento, uma vez que “é a via processual que tutela especificamente a liberdade de locomoção, bem jurídico mais fortemente protegido por uma data ação constitucional”. In verbis:
HABEAS CORPUS. AÇÃO CONSTITUCIONAL IMPETRADA NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA HÁ QUASE DOIS ANOS. DEMORA NO JULGAMENTO. DIREITO À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO. NATUREZA JURÍDICA DO HABEAS CORPUS, A DOTÁ-LO DE PRIMAZIA SOBRE QUALQUER OUTRA AÇÃO JUDICIAL. ORDEM CONCEDIDA.1. O habeas corpus é a via processual que tutela especificamente a liberdade de locomoção, bem jurídico mais fortemente protegido por uma dada ação constitucional.2. O direito à razoável duração do processo não é senão projeção do direito de acesso eficaz ao Poder Judiciário. Direito a que corresponde o dever estatal de julgar com segurança (elemento técnico) e presteza (elemento temporal). No habeas corpus, tal dever estatal de decidir se marca por um tônus de presteza máxima, sem nenhum prejuízo para o dever de fazê-lo com apuro técnico.3. Assiste ao Supremo Tribunal Federal determinar aos Tribunais Superiores o julgamento de mérito de habeas corpus, se entender irrazoável a demora no respectivo julgamento. Isso, é claro, sempre que o impetrante se desincumbir do seu dever processual de pré-constituir a prova de que se encontra padecente de "violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder" (inciso LXVIII do art. 5º da Constituição Federal).5ºConstituição Federal4. Ordem concedida para que a autoridade impetrada apresente o HC 181.141, em mesa, até a décima Sessão da Turma em que oficia, subseqüente à comunicação da presente ordem.[7]
4. LEGITIMIDADE AD CAUSAM
A legitimidade ativa do Habeas Corpus vem estabelecida pelo caput do art. 654 do Código de Processo Penal[8], bem como a legitimidade passiva encontra-se presente no art. 5º, LXVII da Constituição Federal[9].
Tem legitimidade ativa para impetrar Habeas Corpus qualquer pessoa física, seja nacional ou estrangeira, bem como menor ou incapaz, todos estes sem a necessidade de representante com poderes especiais para estar em juízo, assim como o Ministério Público também é parte legítima para impetrar o writ, nos termos do que dispõe o Código de Processo Penal.
Nesse contexto, todo indivíduo, independentemente de qualquer signo distintivo como idade, sexo, profissão, posição social ou nacionalidade é hábil para impetrar em nome próprio ou de terceiro, o remédio constitucional heróico.
Cumpre mencionar que pessoa jurídica não pode ser beneficiária de habeas corpus, uma vez que não possui como requisito a possibilidade de ter cerceada a sua liberdade de locomoção, uma vez que se trata de ente fictício.
Uadi Lammêgo Bulos[10] afirma que “o pronome indefinido alguém, empregado no bojo do art. 5º, LXVIII, em nada mudou o entendimento de que o instituto só serve para tutelar a liberdade humana (defesa do jus manendi, eundi ultra citroque).”
Ainda sobre este tema, em precedente judicial, o Supremo Tribunal Federal passou a considerar a possibilidade de a pessoa jurídica ser parte legitima para impetrar habeas corpus, desde que seja tenha por objeto ilegalidades ou abuso de poder quando figurar como co-ré em ação penal que apura a prática de delitos ambientais. In verbis:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. HABEAS CORPUS PARA TUTELAR PESSOA JURÍDICA ACUSADA EM AÇÃO PENAL. ADMISSIBILIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA: INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA QUE RELATOU a SUPOSTA AÇÃO CRIMINOSA DOS AGENTES, EM VÍNCULO DIRETO COM A PESSOA JURÍDICA CO-ACUSADA. CARACTERÍSTICA INTERESTADUAL DO RIO POLUÍDO QUE NÃO AFASTA DE TODO A COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. EXCEPCIONALIDADE DA ORDEM DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ORDEM DENEGADA.I - Responsabilidade penal da pessoa jurídica, para ser aplicada, exige alargamento de alguns conceitos tradicionalmente empregados na seara criminal, a exemplo da culpabilidade, estendendo-se a elas também as medidas assecuratórias, como o habeas corpus.II - Writ que deve ser havido como instrumento hábil para proteger pessoa jurídica contra ilegalidades ou abuso de poder quando figurar como co-ré em ação penal que apura a prática de delitos ambientais, para os quais é cominada pena privativa de liberdade.III - Em crimes societários, a denúncia deve pormenorizar a ação dos denunciados no quanto possível. Não impede a ampla defesa, entretanto, quando se evidencia o vínculo dos denunciados com a ação da empresa denunciada.IV - Ministério Público Estadual que também é competente para desencadear ação penal por crime ambiental, mesmo no caso de curso d'água transfronteiriços.V - Em crimes ambientais, o cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta, com conseqüente extinção de punibilidade, não pode servir de salvo-conduto para que o agente volte a poluir.VI - O trancamento de ação penal, por via de habeas corpus, é medida excepcional, que somente pode ser concretizada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime, estiver extinta a punibilidade, for manifesta a ilegitimidade de parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal.VII - Ordem denegada.(92921 BA , Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 19/08/2008, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-182 DIVULG 25-09-2008 PUBLIC 26-09-2008 EMENT VOL-02334-03 PP-00439 RJSP v. 56, n. 372, 2008, p. 167-185, undefined)
A legitimidade passiva do habeas corpus é de titularidade daqueles que pratiquem a ilegalidade ou abuso de poder, seja autoria pública ou particular. Desta forma, podem ser consideradas autoridades coatoras os delegados de polícia, promotores, juízes de direito, tribunais, particulares, etc.
Ademais, cumpre esclarecer que autoridade coatora é aquela de quem emanou a ordem ou ameaça de prisão do paciente.
5. DO CABIMENTO
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu como sendo dois requisitos necessários para a impetração do habeas corpus, quais sejam, a violência ou coação à liberdade de locomoção e a ilegalidade ou abuso de poder.
O art. 648 do Código de Processo Penal[11] traz um rol de hipóteses de cabimento do habeas corpus, em razão da ilegalidade da conduta. Entretanto, doutrina majoritária já consolidou o entendimento de que se trata de um rol meramente exemplificativo, uma vez que existem diversas outras situações não abrangidas pelo artigo em comento que podem gerar a ilegalidade ou o abuso de poder, nos termos do que delimita a Constituição Federal de 1988.
Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal:
I - quando não houver justa causa;
II - quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei;
III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
V - quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza;
VI - quando o processo for manifestamente nulo;
VII - quando extinta a punibilidade.
Visando a esclarecer cada uma das hipóteses de cabimento, cabe trazer separadamente o estudo detalhado de cada um dos incisos transcritos:
I - quando não houver justa causa;
A terminologia justa causa refere-se à ausência de legalidade na conduta e na persecução das formalidades exigidas pela lei. Essa espécie de coação não possui conexão direta com o mérito da demanda, e sim com os procedimentos e formas adotados pelo diploma penal.
II - quando alguém estiver preso por mais tempo que a lei determina;
A presente hipótese diz respeito às prisões ilegais, em que o preso tem sua liberdade de locomoção estendida por mais tempo do que a lei determina como sendo necessário para o desenvolvimento da instrução criminal. Trata-se do excesso de prazo da prisão do paciente.
De igual forma, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[12] já é assente quanto à permanência de uma pessoa na prisão por tempo superior ao estabelecido em lei. Tal fato é fundamento válido para o deferimento do writ constitucional.
Há divergência doutrinária acerca do momento cabível para a impetração do habeas corpus. Parte da doutrina sustenta que deve haver a soma de todos os prazos processuais necessários para o encerramento da instrução criminal, e que somente após tal lapso temporal é que seria cabível o remédio constitucional. Já a outra parte da doutrina assegura que qualquer excesso de prazo, em que haja abuso legal, possibilita o uso do habeas corpus.
Acredito que o último entendimento se encontra mais adequado aos ditames da justiça e da dignidade da pessoa humana, uma vez que não pode se considerar a totalidade dos prazos legais, e sim eles em separado, já que seria insustentável para o acusado responder processo penal sem a segurança jurídica do prazo processual em que está inserido. Ressalta-se que este é o entendimento de Tourinho Filho[13]:
[...] no STF, o entendimento dominante é no sentido de que os prazos se contam separadamente, não sendo possível considerar-se que o constrangimento ilegal surja apenas quando se tiver excedido o total dos prazos, de modo que o excesso de uns possa ser compensado pela economia de outros.
III - quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo;
Em virtude de a prisão só poder ser determinada por despacho fundamentado de autoridade judiciária competente, a prisão que não seguir tal procedimento e não atender os requisitos que a lei determina será considerado ilegal, salvo os casos de flagrante delito, em que qualquer pessoa do povo ou autoridade policial é autorizada a fazê-lo.
IV - quando houver cessado o motivo que autorizou a coação;
Havendo cessado os motivos que fundamentaram a prisão do acusado, a continuidade da privação de liberdade é hipótese de cabimento do remédio constitucional.
V - quando não for alguém admitido a prestar fiança nos casos em que a lei a autoriza;
A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 5º, LXVI, que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Assim sendo, não sendo concedido fiança nos casos em que a lei determina, caberá o habeas corpus para a liberdade do acusado.
VI - quando o processo for manifestamente nulo;
A nulidade processual ocorre em detrimento do não preenchimento dos requisitos e elementos que a lei considera indispensável à formação do ato processual. Nesses termos, quando o processo penal não observar as determinações formais estabelecidas pela lei, tal processo será considerado nulo, e a privação de liberdade do acusado será, a partir deste momento, considerada ilegal.
VII - quando extinta a punibilidade;
As causa de extinção da punibilidade estão presente no art. 107 do Código de Processo Penal, e havendo a ocorrência de algumas destas causas, a prisão não mais será cabível, sendo a sua continuidade fundamento para o habeas corpus.
Por fim, cabe mencionar que o art. 647 do CPP[14] excetuou das hipóteses de cabimento do habeas corpus, a prisão em virtude de punição disciplinar. Essa hipótese também está presente na Carta Magna[15], que dispõe não caber habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.
6. DAS PARTES, ESPÉCIES E DA COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO
O procedimento do habeas corpus permite a existência de quatro diferentes membros que compõem o seu processo.
Nesse sentido, há a figura do impetrante, aquele responsável por impetrar a ordem em favor dele próprio ou de um terceiro, dando início ao processo do habeas corpus. O paciente é o sofredor da violência ou coação que lhe impeça de se locomover. È o indivíduo que será beneficiado diretamente com a concessão da garantia constitucional penal. O Coator é aquele que cometeu a agressão, ou seja, quem causa a violência ou coação a fim de limitar o direito de ir e vir do paciente. Por fim, o Detentor é quem infringe a liberdade do paciente.
O habeas corpus pode ocorrer de forma preventiva (salvo-conduto) ou de forma repressiva (liberatória).
O preventivo visa a afastar aquele que se sinta ameaçado de sofre violência ou coação em face de seu direito de ir e vir. Cabe mencionar que tais condutas podem ser derivadas de ilegalidade ou abuso de poder. A ordem de salvo-conduto permite ao paciente o exercício livre de sua liberdade de locomoção. Ressalta-se que apesar de tratar-se de ameaça de violência ou coação, tal conduta deve ser fruto de ato concreto, como prova efetiva. Edilson Mougenot Bonfim[16] assevera que:
Será preventivo quando sua finalidade for afastar o constrangimento à liberdade antes mesmo de se consumar. Baseia-se, portanto, na iminência da violência ou coação ilegal e na possibilidade próxima da restrição da liberdade individual. Caso seja admitido, será expedido um salvo-conduto a favor daquele que tem ameaçado sua liberdade de ir e vir. No entanto, se houver mandado de prisão expedido e não cumprido, o impetrante deve requerer no pedido do habeas corpus a expedição do contramandado de prisão, e não o salvo-conduto. Tal hipótese gera certa dúvida na doutrina, existindo posicionamento no sentido de ser o habeas corpus repressivo, uma vez que o ato coator já estaria devidamente formalizado.
O repressivo é aquele que pretende atingir ato já existente, fruto de arbitrariedade ou ilegalidade que possa cercear o direito de ir e vir do indivíduo. Vale ressaltar que o Habeas Corpus repressivo pode ser concedido a pedido ou de ofício, nos termos do art. 654, § 2º do Código de Processo Penal[17].
Quanto à competência para julgamento do Habeas Corpus, via de regra, a autoridade julgadora competente para apreciar o pedido de liberdade é a autoridade hierarquicamente superior a quem pratica o ato ilegal ou com abuso de poder.
7. DA RESTRIÇÃO DO USO DO HABEAS CORPUS: DO ATUAL POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Inicialmente cumpre mencionar que, em suas origens, o habeas corpus fora previsto como instrumento unicamente destinado a atacar qualquer ato que tivesse como objetivo cercear a liberdade de locomoção do homem. Em seu estado evolutivo, e fruto do processo evolutivo na jurisprudência brasileira, o uso do remédio constitucional fora alargado a fim de atacar as alegadas ilegalidades do sistema processual penal brasileiro.
Assim, a garantia jurídica que antes tinha apenas uma função, amplia seus efeitos e passa a atuar em diversas facetas do direito processual penal, como próprio reconheceu o Ministro Gilmar Mendes[18].
Frise-se que essa ampliação não é fruto do simples acaso jurídico ou de uma jurisprudência farta de manias processuais, mas sim surgiu para fazer valer um direito que ao fundo ainda prevalece, que é o direito de ir e vir. Quando os tribunais aceitam o uso do habeas corpus nas mais diversas maneiras, seja para trancar ação penal ou contra instauração do inquérito policial, tenta-se tutelar um dos mais antigos direitos fundamentais, que é o da locomoção.
Entretanto, acima de todas as conquistas já alcançadas até hoje pela construção e evolução do uso do habeas corpus, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, em precedentes judiciais, decidiram por restringir o cabimento do remédio constitucional que aqui tanto se fala, quando, na verdade, o que se esperava era o fortalecimento de uma garantia fundamental tão importante.
Ademais, o processo penal brasileiro, lento e atrasado, não oferece a celeridade ou segurança que se encontra no procedimento do habeas corpus, instrumento jurídico eficaz para fazer cessar o constrangimento ilegal. Nesse contexto, o habeas corpus tende a ser usado em substituição aos recursos penais. Isso porque os recursos constantes do CPP tendem a seguir todo o protocolo e burocratização da justiça brasileira, retardando ainda mais o sonho do acusado de ter sua liberdade devolvida. É isso que defende Antônio Sérgio A. M. Pitombo[19]:
Tal convicção leva a se intuírem dois pontos. A demora do processo penal traz efeitos negativos à pessoa humana, tanto sob o prisma subjetivo, como no plano social. E, via de consequência, a lei oferece um procedimento mais célere ao habeas corpus (v.g., arts. 649, 656, 660, 661 e 664, do CPP), instrumento jurídico eficaz para fazer cessar o constrangimento ilegal.
Dessa forma, visando barrar o uso do habeas corpus e a demanda de processos judiciais nos Tribunais Superiores, o STJ e STF[20] em recentes julgados, limitaram o uso da ação penal constitucional sob o argumento de que a vulgarização do habeas corpus teria por descaracterizá-lo como remédio heróico.
Em que pese à respeitabilidade das decisões dos Tribunais de Superposição, não se pode coadunar com tal entendimento, visto que o sistema positivo não impõe limitações ao uso do habeas corpus, não podendo assim o STF ou STJ fazê-lo.
Outrossim, o acesso à justiça e o direito à jurisdição não pode ficar submetido a logísticas administrativas derivadas do alto número de demandas judiciais, por pura desorganização da máquina administrativa do Estado, seja na sua administração ou na disponibilização de recursos financeiros suficientes e adequados para se promover justiça.
O que não se pode é o acusado ter um direito apreciado e concedido em função de uma decisão administrativa, uma vez que tais condutas não guardam correlação com a dignidade da pessoa humana com o fundamento do direito processual penal.
CONCLUSÃO
O direito à liberdade faz parte da primeira geração dos direitos fundamentais, e remonta ao nascedouro de civilização e justiça. Tido como um dos maiores garantias dadas ao homem, uma das espécies de liberdade diz respeito à locomoção, ao direito de ir e vir que todos os indivíduos possuem.
De um passado não tão distante, o habeas corpus surgiu forte e imponente para lutar com um sistema em que o Estado e suas decisões prevaleciam. Era uma época em que o sentido de ilegalidade de abuso de poder ainda não existia, já que não existia limites ao poder estatal.
Foi em meio à luta neoliberal e contra os sistemas dominantes, que o habeas corpus, fruto de um processo social, surgiu com a característica de libertar os homens das mãos daqueles que injustamente lhes oprimiam.
Por meio de um processo evolutivo fundado no primado da dignidade da pessoa humana e nas garantias constitucionais, o remédio constitucional enraizou-se nos diplomas legais das mais diversas nações, constituindo um dos poucos diplomas globalizados, que hoje tem também seu fundamento na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Dada a sua relevância e importância, no Brasil, o habeas corpus foi erigido a nível constitucional, a fim evitar as ilegalidades cometidas em outros tempos na história do homem e que não era aceitável virem a se repetir.
Atualmente, trata-se do instrumento jurídico de caráter constitucional penal, que tem por fim assegurar a liberdade de locomoção, tutelando o direito fundamental de ir e vir e evitando a perpetuação da ilegalidade e do abuso de poder daqueles que tem o poder de punir.
REFERÊNCIAS
BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006. p.742
Bulos, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos – 2 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2010.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2006
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.137
NUCCI, Guilherme. Leis Penais e Processuais Penais comentadas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006.
Pitombo, Antônio Sérgio Altieri de Moraes. Habeas corpus, como instrumento eficaz de tutela da liberdade. Informativo Migalhas 3.040 - 2012
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. IV
STF, 2ª Turma, HC 107.701/RS, rel. Gilmar Mendes, j. em 13/09/2011
STF, 1ª Turma, HC 104045/RJ, rel. min. Rosa Weber, julgado em 21/08/2012
112298 RS , Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 13/03/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-061 DIVULG 23-03-2012 PUBLIC 26-03-2012
[1] Os fundamentos do instituto somente tornam-se claros com a assinatura da Magna Carta de 1215, assinada pelo Rei João Sem-Terra, após a revolta dos barões ingleses. (MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.137.)
[2] Art. 48: Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, de acordo com as leis do país.
[3] Art. 183. Recusarem os Juizes, á quem fôr permittido passar ordens de - habeas-corpus - concedel-as, quando lhes forem regularmente requeridas, nos casos, em que podem ser legalmente passadas; retardarem sem motivo a sua concessão, ou deixarem de proposito, e com conhecimento de causa, de as passar independente de petição, nos casos em que a Lei o determinar.
[4] Art. 341. Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor.
[5] BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006. p.740.
[6] Bulos, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos – 2 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2010.
[7] (112298 RS , Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 13/03/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-061 DIVULG 23-03-2012 PUBLIC 26-03-2012, undefined)
[8] Art. 654. O habeas corpus poderá ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério Público.
[9] LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
[10] Bulos, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos – 2 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2010.
[12] "O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU. - Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 - RTJ 157/633 - RTJ 180/262-264 - RTJ 187/933-934).
[13] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v. IV
[14] Art. 647. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.
[15] 144, § 5. Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.
[16] BONFIM, Edílson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006. p.742.
[17] Os juízes e os tribunais tem competência para expedir de ofício ordem de Habeas Corpus, quando no curso do processo verificarem se alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.
[18] “O Supremo tem alargado o campo de abrangência dessa ação constitucional, como no caso de impetrações contra instauração de inquérito criminal para tomada de depoimento, indiciamento de determinada pessoa, recebimento de denúncia, sentença de pronúncia no âmbito do processo do Júri e decisão condenatória, entre outras” (STF, 2ª Turma, HC 107.701/RS, rel. Gilmar Mendes, j. em 13/09/2011).
[19] Pitombo, Antônio Sérgio Altieri de Moraes. Habeas corpus, como instrumento eficaz de tutela da liberdade. Informativo Migalhas 3.040 - 2012
[20] HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. HISTÓRICO. VULGARIZAÇÃO E DESVIRTUAMENTO. SEQUESTRO. DOSIMETRIA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE ILEGALIDADE OU ARBITRARIEDADE. 1. O habeas corpus tem uma rica história, constituindo garantia fundamental do cidadão. Ação constitucional que é, não pode ser amesquinhado, mas também não é passível de vulgarização, sob pena de restar descaracterizado como remédio heroico. Contra a denegação de habeas corpus por Tribunal Superior prevê a Constituição Federal remédio jurídico expresso, o recurso ordinário. Diante da dicção do art. 102, II, a, da Constituição da República, a impetração de novo habeas corpus em caráter substitutivo escamoteia o instituto recursal próprio, em manifesta burla ao preceito constitucional. Precedente da Primeira Turma desta Suprema Corte. 2. A dosimetria da pena submete-se a certa discricionariedade judicial. O Código Penal não estabelece rígidos esquemas matemáticos ou regras absolutamente objetivas para a fixação da pena. Cabe às instâncias ordinárias, mais próximas dos fatos e das provas, fixar as penas. Às Cortes Superiores, no exame da dosimetria das penas em grau recursal, compete precipuamente o controle da legalidade e da constitucionalidade dos critérios empregados, com a correção apenas de eventuais discrepâncias gritantes e arbitrárias nas frações de aumento ou diminuição adotadas pelas instâncias anteriores. 3. Assim como a concorrência de vetoriais negativas do art. 59 do Código Penal autoriza pena base bem acima da mínima legal, a existência de uma única, desde que de especial gravidade, também autoriza a exasperação da pena, a despeito de neutras as demais vetoriais. 4. A fixação do regime inicial de cumprimento da pena não está condicionada somente ao quantum da reprimenda, mas também ao exame das circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, conforme remissão do art. 33, §3º, do mesmo diploma legal. Precedentes 5. Não se presta o habeas corpus, enquanto não permite ampla avaliação e valoração das provas, ao reexame do conjunto fático-probatório determinante da fixação das penas. 6. Habeas corpus rejeitado. (STF, 1ª Turma, HC 104045/RJ, rel. min. Rosa Weber, julgado em 21/08/2012).
Advogado. Atuou como assessor na Defensoria Pública da União, especialmente em matérias previdenciárias e administrativa. Atualmente sou servidor público e atuo no setor das relações de trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALDINO, Vandson dos Santos. Habeas Corpus: natureza jurídica de ação penal constitucional e crítica à atual jurisprudência na restrição de seu uso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 mar 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38729/habeas-corpus-natureza-juridica-de-acao-penal-constitucional-e-critica-a-atual-jurisprudencia-na-restricao-de-seu-uso. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.