RESUMO: Este estudo pretende investigar a constitucionalidade da norma do art. 168-A, caput, do Código Penal Brasileiro à luz da jurisprudência do STF e do STJ em face da garantia da vedação da prisão civil por dívidas insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal.
PALAVRAS-CHAVE: Apropriação Indébita Previdenciária. Prisão Civil por Dívida.
SUMÁRIO: 1– Introdução; 2- A constitucionalidade do art. 168-A do Código Penal; 3 - Conclusões.
1- INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro, no art. 168-A do Código Penal, criminaliza a conduta de deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional, sancionando-a com a pena de reclusão, pelo prazo de 2 a 5 anos, além de multa.
Trata-se de crime comum - que pode ser praticado por qualquer pessoa e não apenas pelo administrador da pessoa jurídica– que visa à proteção do bem jurídico subsistência da previdência social, como já teve oportunidade de afirmar o STF, no HC 76.978-1/RS.
Introduzido pela Lei 9.983/00, o artigo citado apresenta a seguinte redação:
Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;
II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
§ 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.
§ 3o É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:
I - tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou
II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.
O crime pune quatro modalidades distintas de conduta. Interessa ao presente estudo a prevista no caput, na qual o empregador deixa de recolher à União as contribuições descontadas dos empregados. Nessa hipótese, a pena recai sobre a figura do substituto tributário que deixa de recolher aos cofres da previdência social as contribuições descontadas do contribuinte.
A substituição tributária, enquanto forma de responsabilidade tributária ou enquanto técnica legal facilitadora da arrecadação, possui previsão legal no art. 128 do CTN, in verbis:
“Sem prejuízo do disposto neste Capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.”
Assim, por exemplo, o empregador que deixar de recolher em prol da Fazenda Nacional a contribuição previdenciária descontada do empregado por ocasião do pagamento da remuneração do trabalhador incorrerá nesse crime. Importa verificar que a conduta desse empregador que desatender a sujeição passiva imposta pela lei é ao mesmo tempo ilícito penal e ilícito administrativo-tributário.
Verificou-se que, para a doutrina majoritária, não há diferença ontológica entre a infração administrativa e a infração penal. A diferença residiria apenas na sanção prevista em lei. Enquanto as infrações tributárias são punidas com sanções que afetam o patrimônio do contribuinte infrator, os delitos fiscais são reprimidos com sanções subjetivas, de caráter pessoal (restrição ou privação de liberdade) ou misto (incluindo sanção pecuniária). Nesse sentido, professa Antonio Carlos Martins Soares[1].
A propósito, bastante conhecida e professada é a distinção entre direito penal tributário e direito tributário penal, pois enquanto o primeiro se ocupa dos crimes contra a ordem tributária e suas penas, o segundo regula as infrações administrativas e suas sanções.
Ao estudar o tema em comento, constata-se que existe interessante polêmica sobre a necessidade de criminalização do ilícito administrativo-tributário.
Há fortes argumentos tanto em favor dos que a sustentam, quanto em favor dos que defendem que o direito penal não deveria se preocupar com o comportamento de quem deixa de recolher um tributo no prazo legalmente previsto. Os primeiros invocam a afirmação da insuficiência das sanções administrativas para proteger o sistema arrecadatório previdenciário, a necessidade de mudança forçada do comportamento de grande parte da população que historicamente denota resistência ao pagamento de tributos, não só no Brasil, o incipiente e ainda pouco conhecido dever fundamental de pagar tributos, e a compreensão do garantismo penal não apenas como proibição do excesso, mas também uma proibição da proteção deficiente do Estado. Os últimos partem da concepção da fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal, que deveria intervir somente excepcionalmente quando os outros ramos do direito falhassem (ultima ratio), da ausência de uma consciência coletiva consolidada sobre o desvalor da conduta criminalizada e da falência do sistema penal punitivo, calcado na restrição da liberdade, no tocante à prevenção de novos delitos e à recuperação de criminosos.
Independentemente de qual corrente de pensamento se adote, o dado é que a apropriação indébita previdenciária no Brasil possui tipificação específica desde 1937, como será melhor abordado no tópico subseqüente, podendo ser enquadrada como crime contra a ordem tributária, espécie de delito econômico, e, ao mesmo tempo, ilícito administrativo-tributário.
2- A CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 168-A do CÓDIGO PENAL
Numa breve resenha, pode-se dizer que historicamente o delito em apreço possuiu tipificação específica nos seguintes diplomas legais: art. 5º do Decreto-lei 65/37, art. 86 da Lei 3.807/60, art. 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 e art. 95, alínea “d” da Lei 8.212/91.
O art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988 prevê que: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”.
Dúvidas surgiram sobre se o crime de apropriação indébita previdenciária seria inconstitucional por afrontar a vedação à prisão civil por dívida.
As Cortes Superiores de nosso país já examinaram a matéria e concluíram negativamente. O STF, no HC 91704, HC 78234, no RE 391996, AI 366390, e o STJ, no REsp. 244462, REsp. 433830 e AGResp. 610389.
Para melhor compreensão do tema, releva destacar os fundamentos utilizados nos precedentes da Corte Suprema, pois é cediço ser dela a interpretação final sobre o juízo de constitucionalidade.
O entendimento adotado pelo STF foi calcado na premissa de que a prisão decorrente do delito de apropriação indébita previdenciária tem caráter criminal, não se confundindo com a prisão civil. Esta é a ratio decidendi tirada da leitura dos precedentes adrede citados.
Afirmou o Min. Octávio Gallotti, no HC 78.234, julgado em 02/02/1999, ao examinar a constitucionalidade do então vigente art. 95, alínea “d” da Lei 8.212/91: “(...) Nem por isso é lícito, em tese, confundir essa figura de caráter criminal, com a simples prisão civil por dívida (...)”.
Desde então a posição que diferencia e afasta a prisão civil por dívida do tipo penal da apropriação indébita previdenciária é pacífica no STF, tendo sido reafirmada, por exemplo, no HC 91704, julgado em 06/05/2008, Rel. Min. Joaquim Barbosa; no RE 391996, julgado em 25/11/2003, Rel. Min. Ellen Grace; AI 366390, julgado em 06/08/2002, Rel. Min. Nelson Jobim.
Na doutrina constitucionalista há quem interprete essa norma constitucional de forma diversa. Clèmerson Merlin Clève, citado por José Paulo Baltazar Junior[2], sustenta que se o menos – prisão civil – está proibido, com muito mais razão também está proibido o mais, ou seja, a prisão criminal. Porém, conforme acima demonstrado, não foi essa a linha de pensamento que orientou o STF. Como visto, pode-se afirmar que o STF vem admitindo a prisão penal por dívida imposta por lei ordinária por não verificar nela qualquer afronta ao disposto no art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal.
Ainda que a mais alta corte do país tenha dito que o delito do art. 168-A do Código Penal não viole a vedação constitucional da proibição da prisão civil por dívida, parece que ele viola norma infraconstitucional de hierarquia superior.
Isso porque também existe óbice à prisão por dívida (seja penal, seja civil), salvo a do devedor de obrigação alimentar, na norma estatuída no art. 7º, item 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 1992, através do Decreto-legislativo nº 27, de 1992, preceituando que: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
Essa norma, conforme decidiu o STF no RE 349703 e no RE 466343, possui status ou caráter supralegal, estando hierarquicamente acima da lei ordinária e abaixo da Constituição, vale dizer, não pode ser contrariada por lei ordinária e ao mesmo tempo não pode contrariar o disposto na Constituição.
Ou seja, como o art. 168-A do Código Penal é lei ordinária, ele viola o Pacto de São José.
Há autores como José Paulo Baltazar Júnior[3] que não vislumbram na sanção prevista para delito de apropriação indébita previdenciária a essência de prisão por dívida. Sustenta o respeitável autor:
“(...) o que está criminalizado não é a conduta dever, mas sim a conduta consistente em deixar de recolher a contribuição descontada ou cobrada, o que gera uma dívida. Vários tipos penais podem ser cometidos no bojo de uma relação lícita ou podem gerar uma dívida, como no dano e na apropriação indébita. (...).”
Contudo, não se pode comungar desse entendimento, eis que a conduta omissiva de deixar de recolher tributo arrecadado por substituição tributária, juridicamente, é a mesma conduta omissiva de não pagar débito próprio, isto é, inadimplir. Em uma frase: deixar de recolher é não pagar, é dever.
Não haveria a menor diferença se o legislador penal tivesse previsto a elementar “não pagar” ao invés da elementar “deixar de recolher”. Em ambos os casos há inexecução voluntária de uma obrigação própria, vale dizer, em ambos os casos não há pagamento.
A norma de substituição tributária previdenciária, na linha do art. 128 do CTN, foi instituída pelo art. 30 da Lei 8212/91, inciso I, alínea “a”:
“Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas:
I - a empresa é obrigada a:
a) arrecadar as contribuições dos segurados empregados e trabalhadores avulsos a seu serviço, descontando-as da respectiva remuneração; (...).
A atribuição incumbida ao substituto tributário é a obrigação de pagar uma dívida própria, excluindo qualquer responsabilidade da pessoa do contribuinte.
Nesse sentido, impende invocar as lições do tributarista Sacha Calmon Navarro Coelho[4] para demonstrar que não se trata de responsabilidade tributária por transferência, aquela que deriva de um fato posterior ao fato gerador do tributo, e sim de sujeição passiva do substituto que ocorre em momento concomitante à ocorrência do fato gerador, ao qual se imputa a obrigação de pagar o tributo descontado a título de dívida própria, in verbis:
“Dizia o Mestre (referência a Rubens Gomes de Sousa): a transferência ´ocorre quando a obrigação tributária depois de ter surgido contra uma pessoa determinada (que seria o sujeito passivo direto), entretanto, em virtude de um fato posterior, transfere-se para outra pessoa diferente.
E a substituição ´ocorre quando em virtude de uma disposição expressa de lei a obrigação tributária surge desde logo contra uma pessoa diferente daquela que esteja em relação econômica com o ato, o fato ou negócio tributado. Nesse caso é a própria lei que substitui o sujeito passivo direto por outro indireto. (...) De ver, e isso é fundamental, que a pessoa designada na lei como ´realizadora´ da hipótese de incidência (fato gerador) é diversa da que, na conseqüência da norma, aparece designada como sujeito passivo da obrigação. Então, juridicamente, B é sujeito passivo direto. Ele não paga ´dívida alheia´. Paga dívida própria. Apenas não realizou o fato gerador. Todavia, ninguém antes dele esteve jamais na condição de sujeito passivo. (...)”
Ora, se na responsabilidade por substituição tributária a dívida é própria do substituto, caso ele deixe de recolher o tributo, haverá dívida exclusivamente sua, e não do substituído. Tanto é assim que a jurisprudência, acertadamente, vem admitindo o afastamento da culpabilidade do empregador nos casos em que ele procede à adequada compensação tributária, isto é, paga as contribuições previdenciárias com créditos que tem a receber do Instituto Nacional de Seguro Social - INSS.
Como se vê, o tipo do art. 168-A, caput, do CP pune a conduta de não pagar dívida própria do empregador. Por isso, entendemos que esse tipo penal, ao relacionar ao não pagamento de uma dívida previdenciária a imputação da sanção de prisão ao devedor, viola frontalmente a disposição normativa contida no art. 7º, item 7, do Pacto de São José da Costa Rica, norma que lhe é hierarquicamente superior. Daí porque conclui-se ter sido ilicitamente introduzido, no ordenamento jurídico pátrio, o delito de apropriação indébita previdenciária. Portanto, os preceitos primário e secundário dessa norma são inválidos e não geram efeitos no âmbito penal.
3– CONCLUSÕES
Após esse breve estudo sobre o delito de apropriação indébita previdenciária, previsto no art. 168-A, caput, do Código Penal Brasileiro, pode-se articular as seguintes conclusões:
1- o STF já afirmou a constitucionalidade do art. 168-A, do Código Penal Brasileiro, reconhecendo que ele não viola a garantia da vedação da prisão civil por dívidas do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal, na medida em que a sanção por ele prevista configura uma prisão penal;
2- o art. 168-A, do CP, ao preceituar uma prisão penal por dívida, viola a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), norma que possui status supralegal e que está hierarquicamente acima do Código Penal.
3- o legislador penal dispensa um tratamento mais gravoso ao autor da apropriação indébita previdenciária relativamente ao sonegador de contribuição previdenciária, o que sem dúvida viola o princípio constitucional da razoabilidade.
4 – o precedente mais recente do pleno do STF, rompendo com tradição anterior que o considerava crime omissivo formal, passou a entender o delito previsto no art. 168-A, do CP, como crime omissivo material, isto é, aquele necessita de dano à seguridade social para a sua consumação, entendimento também seguido pelo STJ;
5- tanto o STF quanto o STJ estão exigindo o lançamento definitivo, assim considerado o erigido após o término do processo administrativo fiscal, como condição objetiva de punibilidade do delito;
6- o pagamento integral do débito, a qualquer tempo, extingue a punibilidade, enquanto que o parcelamento do débito é considerado causa suspensiva da pretensão punitiva;
7- a tese defensiva das dificuldades financeiras é acatada pela jurisprudência como causa supralegal excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, mas requer a demonstração de as dificuldades são extremas, incumbindo o ônus da prova à defesa.
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALTAZAR JUNIOR, de José Paulo. Crimes Federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 19ª ed., 2007.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª Ed., 2010.
DIAS, Eduardo Rocha; MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: Método Editora, 2ª ed., 2010.
SOARES, Antonio Carlos Martins. A Extinção da Punibilidade nos Crimes contra a Ordem Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[1] SOARES, Antonio Carlos Martins. A Extinção da Punibilidade nos Crimes contra a Ordem Tributária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 58.
[2] CLÈVE, Clèmerson Merlin, apud BALTAZAR JUNIOR, de José Paulo. Crimes Federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 22.
[3] BALTAZAR JUNIOR, de José Paulo. Crimes Federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 22.
[4] COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 599.
Procuradora Federal desde novembro de 2007. Ex-Advogada da Caixa Econômica Federal. Especialista em Direito Previdenciário e em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal - ESMAFE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Cristiane Castro Carvalho de. A constitucionalidade do delito de apropriação indébita previdenciária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2014, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42309/a-constitucionalidade-do-delito-de-apropriacao-indebita-previdenciaria. Acesso em: 23 dez 2024.
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