O presente trabalho tem como objetivo trazer um panorama tanto das normas internacionais de limitação de responsabilidade e a obrigatoriedade do Brasil, investigação de acidentes e interpretação dos tratados internacionais, como da visão do Judiciário brasileiro na aplicação da norma de defesa dos consumidores.
Existem diversos tratados internacionais para a unificação das regras relativas ao transporte aéreo internacional. Um dos mais importantes e fonte de inspiração de diversos outros tratados é o Convênio de Varsóvia de 1929, sendo aplicado pelos países partes tanto no transporte gratuito como oneroso. Tal tratado considera como transporte internacional o que tenha ponto de partida (PP) e ponto de destino (PD), havendo ou não interrupção, situados em dois Estados contratantes, ou quando o PP e PD estejam situação no mesmo Estado quando há uma escala intermediária em outro Estado, seja este parte ou não.
No art. 17 do Convênio de Varsóvia traz a responsabilidade do transportador quando ocasione a morte, quando o acidente tenha ocorrido a bordo da aeronave ou desde o começo do embarque até a conclusão do desembarque. Já o art. 22 traz o montante máximo da responsabilidade, sendo o valor da responsabilidade limitada, sendo caso de exceção quando o transportador avence com o transportado de forma mais vantajosa a esse. O limite de responsabilidade também é afastado quando o acidente seja ocasionado de forma intencional ou alguma figura similar ao dolo, segundo a lei da jurisdição competente.
Há também a previsão de forum shopping, facilitando o acesso a prestação jurisdicional por parte do transportador ou família, em caso de morte, sendo eles: território de uma das partes do convenio, seja o tribunal de domicílio do transportador, ou domicílio principal da exploração da atividade econômica, onde haja estabelecimento determinado pelo contrato ou o tribunal de destino. Sendo que a lei processual aplicada ao caso será a do tribunal que conheça da causa.
Um ponto importante é o prazo de caducidade para a responsabilização que são de dois anos, contados a partir da chegada ao destino ou da data que a aeronave deveria haver chegado ou da detenção do transporte, sendo que a forma de calcular tal prazo será realizado de acordo com a lei processual do tribunal que conheça da causa.
Posteriormente ao Convênio de Varsóvia foi realizado o Protocolo de Haia de 1955, modificando poucos pontos do convênio anterior – Varsóvia-, se modifica a redação do conceito de transporte internacional, sem alterar o conteúdo, apenas melhorando a redação. No que se refere ao montante da indenização, ele é aumentado, de 120 mil francos para 250 mil francos. Os dois tratados internacionais se consideram como um só documento e se interpreta como tal.
Em 1971 se cria o Protocolo de Guatemala, sendo as principais modificações: a inclusão da responsabilidade do transportador pelo simples fato do acidente haver ocorrido a bordo; sendo também agregado a exclusão de responsabilidade por estado de saúde do passageiro; surge um novo foro competente o do estabelecimento do transportador quando o passageiro tenha domicílio permanente no local. O protocolo limita a responsabilidade pelo conjunto de reclamações ao máximo de quinze milhões de francos pela morte de cada passageiro.
Na cidade de Montreal, sede da Organização Internacional de Aviação Civil, em 1975, se cria alguns protocolos que modificam o convênio de Varsóvia alterado pelo Protocolo de Haia.
O Protocolo Adicional I, II e III de Montreal modificam a soma da limitação da responsabilidade e a unidade de medida estabelecidos no Convênio de Varsóvia e os sucessivos documentos que alteram o convênio original, sendo que a unidade monetária é definida pelo Fundo Monetário Internacional – FMI.
Em 1999 em Montreal cria-se um convênio com o escopo de unificar as normas de direito aeronáutico internacional e modernizar as normas de Varsóvia e os instrumentos conexos. O conceito e requisitos do transporte aéreo internacional de pessoas e os parâmetros da responsabilidade civil limitada se mantiveram. Foi adicionada uma nova excludente de responsabilidade, que poderá ser total ou parcial, dependendo do grau de culpa do passageiro; tal excludente se baseia na negligência, ação ou omissão que tenha contribuído para a causa do evento danoso. A unidade monetária se manteve como Direitos Especiais de Giro e houve um aumento no montante da responsabilidade limitada, ademais o transportador não será responsabilizado pela soma que ultrapasse o montante quando haja culpa exclusiva de terceiro ou fatos não atribuídos ao transportador e sua tripulação.
No mesmo convênio, Montreal de 1999, se ditou que no caso de a legislação de um dado Estado contratante exigir adiantamentos de valores, não se entenderá tal ação como reconhecimento de responsabilidade por parte da empresa aérea, podendo ser deduzido em caso de futura indenização.
A natureza jurídica das indenizações por acidente aéreo será compensatória, sendo proibido a aplicação da punitive damage theory. Dessa forma não se admite como indenizações as de carácter pedagógico, exemplar ou punitiva.
No que se refere a cláusula do forum shopping houve uma modificação significativa com o objetivo de abarcar mais hipóteses e priorizar o acesso a prestação jurisdicional. Dentre as disposições gerais se encontram: território de um dos Estados parte, seja no tribunal do domicílio do transportador, onde esteja a sede ou domicílio principal do transportador, lugar de celebração do contrato, ou, ainda, o tribunal do destino. Nos casos de morte, se adicionou uma cláusula com disposições específicas: tribunal de um dos Estados partes no qual o passageiro tenha a residência principal e permanente no momento do acidente, ou onde o transportador preste seus serviços.
O prazo de caducidade se manteve em 2 anos. Ao final do documento se estabeleceu que o presente convênio tem carácter revogar, prevalecendo sobre outras normas de transporte aéreo internacional.
Analisados os tratados que tratam das responsabilizações no transporte aéreo, se disserta a seguir sobre os tratados internacionais que tratam das investigações de acidentes aéreos.
Na cidade de Chicago em 1944 se cria uma convenção que trata sobre as investigações do transporte aéreo internacional de passageiros. Já no começo da convenção há o reconhecimento da soberania exclusiva e absoluta sobre a zona aérea do território de cada Estado. O próprio texto engloba como território a extensão territorial e as águas adjacentes sob o controle do Estado soberano.
A convenção reforça que os Estados partes devem colaborar entre si para a busca de aeronaves perdidas, permitindo, segundo a legislação interna, que os donos das aeronaves e autoridades do local do registro possam oferecer a ajuda que a situação exija.
Quando as investigações ocorram em outro Estado que não seja da matrícula da aeronave, quando o acidente ocasione morte ou feridas graves, ou que indique defeito técnico grave, esse estado levará adiante as investigações através de seus órgãos de aviação e permitirá que observadores do Estado de matrícula acompanhem os procedimentos realizados. Finalizada a investigação o Estado do local do acidente enviará relatório com as conclusões e informações necessárias ao país de matrícula da aeronave.
Os países que assinaram a Convenção de Chicago assumiram o compromisso de renunciarem as Convenções de Paris de 1919 e Havana 1928, sendo ainda que a convenção em análise tem carácter derrogatório.
Na União Europeia existe a Diretiva 94/56/CE que tem por objetivo a prevenção de acidentes e é aplicada tanto no território comunitário como fora deste território quando as aeronaves envolvidas tenham registro em um dos países da comunidade e que as investigações não sejam realizadas por outro Estado. De acordo com o diretiva é considerado acidente o desaparecimento total ou quando a aeronave seja totalmente inacessível.
Os Estados da comunidade europeia assumem o compromisso de que haja um organismo aeronáutico civil permanente que deve ser independente desde o ponto de vista funcional, sendo que as recomendações técnicas não possuem carácter de responsabilização, mas, sim, de recomendação para evitar futuros acidentes.
Foi dedicada uma boa parte do artigo para tratar das normas internacionais de responsabilização e investigações técnicas para uma melhor compreensão da matéria específica que se passa a abordar.
Atualmente se reconheceu a repercussão geral no RE 636.331, em tal recurso se analisará a subsistência das normas internacionais e o código aeronáutico brasileiro que trazem limitação de indenização frente ao princípio constitucional da não limitação das indenizações. Atualmente o recurso possui três votos a favor da aplicação das normas de direito internacional privado.
Ainda que tenha sido reconhecida a relevância de se julgar o tema, no leanding case, há julgamentos anteriores, mais antigos, que não analisam a matéria de fundo proposta neste artigo, como AI 548.681 AgR/RJ e RE 351.750 RJ. Há também a aplicação do Convênio de Varsóvia em alguns poucos casos, antes da nova ordem constitucional como o RE 96.864 RJ.
Em outros recursos se deixa de analisar a matéria de fundo por diversas razões, seja pela violação reflexa da Constituição ou pela necessidade de analisar normas infraconstitucionais, verbis: ARE 691.437 AgR/RJ, RE 391.032 AgR/RJ e RE 214.349/RJ.
Já no âmbito do STJ encontramos uma maior quantidade de recursos de acordo com o art. 105, III, a da Constituição Federal., já que há a negativa de vigência e contrariedade aos tratados internacionais assumidos pela República Brasileira. Para chegar as conclusões trazidas se analisou todos os recursos especiais posteriores a nova ordem constitucional.
Se percebe uma corrente muito forte na aplicação da legislação interna em detrimento dos tratados internacionais, conforme se nota nos seguintes recursos: AgRg no AREsp 407.809/SP, AgRg no AREsp 34.280/RJ, AgRg no AREsp 27.528/RJ e AgRg no Ag 1.230.663/RJ. Ao contrário do verificado nos recursos citados, há poucas jurisprudências que aplicam os convênios internacionais, mas é raro que as encontrem atualmente, neste sentido: REsp 277.541/SP.
Se pode concluir que o STJ tem o entendimento que a lei nacional prevalece sobre a norma internacional, pois segundo o entendimento – a norma internacional viola o princípio da não limitação do dano sofrido, consagrada na nova ordem constitucional.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro segue a linha do STJ, conforme se demonstrará a seguir.
Em 2009 um voo da AirFrace, A447, saindo do Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim com destino ao Aeroporto Internacional Charles de Gaulle, com 228 pessoas a bordo, caiu no meio do Oceano Atlático. A tragédia foi noticiada por todos os meios de comunicação e despertou a solidariedade de vários países no auxílio e buscas.
Não se pode determinar exatamente onde a aeronave caiu, mas se supõe que pelas comunicações dos radares o fato tenha ocorrido em res nulliens, espaço fora da soberania de qualquer Estado. Dessa forma a Convenção de Chicago, 1944, que vincula tanto o Brasil – PP e França – PD e local de matrícula da aeronave, traz o princípio da ajuda mútua da comunidade internacional para encontrar uma aeronave perdida.
Em aplicação ao Princípio da Bandeira a França seria o estado competente em levar adiante as investigações técnicas, através do Bureau Enquêtes Accidents – BEA, e a investigação judicial por meio da Justiça Francesa para atribuições de responsabilidades civis, penais e administrativas, já que o BEA não atribuí responsabilidades, por ser órgão técnico. Se ressalta ainda que a Justiça Brasileira também era competente segundo o Convênio de Varsóvia e a Convenção de Montreal, já que há um caso de forum shopping.
Na apelação cível n. 0006789-44.2009.8.19.0212 TJRJ há o caso de uma vítima fatal do acidente narrado, em que o Tribunal aplica a legislação nacional frente a internacional, baseando se no Princípio Restitutio in Integrum., condenando a empresa AirFrance em uma soma milionária.
Insta salientar que o Judiciário Brasileiro não enfrentou o tema sob a ótica da Convenção de Viena de 1969, que foi promulgada e entrou em vigor em 2009, por meio do Decreto 7.030.
No art. 26 da convenção sobre os tratados, Viena 1969, há o Princípio do Pacta Sunt Servanda. Dessa forma não pode um estado contratante deixar de cumprir o tratado, sem renunciá-lo, invocando a legislação interna, tal vedação encontra-se de modo explícito no art. 27.
Ademais o prazo de caducidade da ação nos tratados internacionais é de 2 anos enquanto na legislação interna é de 5 anos, segundo o CDC.
No direito comparado temos o exemplo argentino, no qual a lei de defesa do consumidor (Ley 24.240) se aplica subsidiariamente, tendo prioridade o código aeronáutico e os tratados internacionais. Corroborando o entendimento da lei consumerista, a Suprema Corte Argentina tem o entendimento de que os tratados internacionais, ainda que não seja de direitos humanos, são superiores a legislação interna nacional.
Não se tem notícia de outros países que não seja a Índia e Brasil que apliquem a legislação interna. A ilustre Drª Capaldo, em seu artigo Análisis del sistema de responsabilidad em el Convenio de Montreal de 1999[1], cita o caso Serrano v. American Airlines, Inc. em que o juiz responsável ditou que afastar o convenio internacional por uma lei doméstica seria ultrajar o papel do Congresso Americano no processo de ratificação dos tratados.
O Brasil se rege em suas relações internacionais pela cooperação dos povos, isso quer dizer que cada comunidade estrangeira deve cooperar uma com a outra para alcançar um nível de progresso e união desejável. Para que um país seja tido como confiável ele deve honrar seus compromissos voluntariamente assumidos. Não há integração internacional se um Estado descumpri os compromissos na esfera externa.
Os direitos e garantias constitucionais não excluem outros adotados por tratados internacionais cuja adesão o Brasil tenha realizado.
Ainda que o art. 170 da CF tenha adotado a defesa do consumidor como um princípio de ordem econômica, não se deve deixar de aplicar um tratado internacional, sob o simples e frágil argumento que defesa do consumidor é legislação interna posterior. Até o momento o STF não pacificou o assunto, ponderando os direitos em voga. O mundo aeronáutico internacional espera ansioso o julgamento do RE 636.331.
[1] CAPALDO, Griselda D. disponibilizado em http://cedaeonline.com.ar/2012/12/26/analisis-del-sistema-de-responsabilidad-en-el-convenio-de-montreal-de-1999/, consultado em 04 de fevereiro de 2015.
Formado em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal - UDF e mestrando em Direito Internacional Privado pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires - UBA. É advogado e atua na área de Direito Civil, do Trabalho e Internacional Privado.<br>Realizou duas investigações científicas durante sua graduação: a laicidade do Brasil e a consciência dos cidadãos, em 2008 pelo Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; estudo comparado da adoção internacional - Brasil e Argentina-, em 2012 parte na Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires - UBA e outra parte no Centro Universitário do Distrito Federal - UDF.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Iurii Ricardo Guimaraes de. O Direito Aeronáutico Internacional Brasileiro nas Relações de Consumo: A visão do Judiciário brasileiro no transporte aéreo de passageiros Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 fev 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43276/o-direito-aeronautico-internacional-brasileiro-nas-relacoes-de-consumo-a-visao-do-judiciario-brasileiro-no-transporte-aereo-de-passageiros. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Erick Labanca Garcia
Por: Erick Labanca Garcia
Precisa estar logado para fazer comentários.