Sumário: 1. Introdução. 2. O conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. 3. Conclusão.
1 – Introdução.
Estas breves notas estão inseridas em um propósito maior de análise da principiologia contratual clássica e contemporânea.
Na realidade, trata-se de uma série de artigos onde serão analisados, de maneira gradativa, os princípios contratuais clássicos e contemporâneos, de modo que, primeiro, seja compreendido o universo principiológico em que se encontra inserido o instituto dos contratos, para, somente depois, seja possível compreender o verdadeiro alcance dos princípios contratuais propriamente ditos.
Assim, neste artigo em particular, tomamos como objetivo a realização de algumas ponderações sobre o mais importante princípio constitucional brasileiro, qual seja, o da dignidade da pessoa humana, para, em outra oportunidade, analisarmos em necessária profundidade os princípios contratuais propriamente ditos.
2 – O princípio da dignidade da pessoa humana.
Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que princípio "é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo."[1]
O princípio da dignidade da pessoa humana, que, do ponto de vista da técnica legislativa é uma cláusula geral, e do ponto de vista normativo, um princípio, está positivado em lugar de destaque na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que, logo em seu artigo 1º, III, preceitua:
“Art. 1o – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III – a dignidade da pessoa humana;”
Sobre o conteúdo normativo do referido princípio, MARIA CELINA BODIN DE MORAES[2] já adianta que:
“O respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento do imperativo categórico Kantiano, de ordem moral, tornou-se um comando jurídico no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988, do mesmo modo que já havia ocorrido em outras partes.”
Cumpre, então, identificar o que quer a Constituição Federal, quando alça a dignidade da pessoa humana ao patamar de fundamento da República Federativa do Brasil.
Dignidade, para os dicionaristas, é a “qualidade de digno”, e este, por sua vez, traduz-se por “merecedor, apropriado”, de onde se poderia inferir que a pretensão da Constituição Federal ao incluir a dignidade de pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil está exatamente em garantir a todos existência digna, com todos os consectários principiológicos patrimoniais e extrapatrimoniais que isto possa acarretar.
É preciso que se perceba tratar-se de um conceito aberto, fluido, em permanente construção, de modo que jamais se permitirá restringir-se a uma única concepção, assim como também não se limita ao sentido que hoje se lhe confere, mas, muito ao contrário, é mote que proporciona à hermenêutica o maior dos desafios, que é o de compreender a natureza humana e a ela conferir as mais completas garantias existenciais. De todo modo, já é consenso na doutrina que o muito que cabe refletir sobre a dignidade passa pelo imperativo categórico Kantiano, para quem o ser humano não é coisa, não é objeto nem instrumento para atingir interesses, mas, antes de tudo, é sujeito de direitos.
O ser humano, então, não é meio, mas um fim em si mesmo, que justifica, fundamenta e legitima o Estado e a Sociedade. Não é, portanto, o ser humano que existe em função do Estado, mas, ao contrário, o Estado que existe em função do ser humano.
Para INGO SARLET, a dignidade da pessoa humana é, simultaneamente, “elemento e medida dos direitos fundamentais”[3]. Elemento, porque, representando a sua concretização, os direitos fundamentais possuem um “conteúdo em dignidade”.
É, de outro lado, medida dos direitos fundamentais, porque representa, ao mesmo tempo, limite a esses direitos e limite às eventuais restrições que se lhe imponham. Ou seja, diante de relações entre pessoas, a dignidade da pessoa humana impõe limites aos direitos envolvidos, de forma a viabilizar a promoção e o resguardo da igual dignidade entre elas, que são pessoas diferentes. A outro turno, quanto às medidas restritivas dos direitos fundamentais, normalmente perpetradas pelo Estado, o princípio sob exame estabelece verdadeiro limite, além do qual tais medidas hão de ser vistas como ilegítimas.
INGO SARLET elaborou conceito, bastante amplo diga-se, de dignidade da pessoa humana:
“[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”[4]
Antônio Junqueira de Azevedo[5] também já se debruçou sobre o tema:
“a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana e dá origem, em seqüência hierárquica, aos seguintes preceitos: 1 – respeito à integridade física e psíquica das pessoas; 2 – consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; e 3 – respeito pelas condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária.”
MARIA CELINA BODIN DE MORAES[6] acrescenta:
“O substrato material da dignidade assim entendida pode ser desdobrado em quatro postulados: i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade.”
E, a respeito do princípio da integridade psicofísica, novamente BODIN DE MORAES[7]:
“No princípio de proteção à integridade psicofísica da pessoa humana estão contemplados, tradicionalmente, apenas o direito de não ser torturado e o de ser titular de certas garantias penais, como o tratamento do preso nas detenções e nos interrogatórios, a proibição de penas cruéis, etc. Na esfera cível, no entanto, a integridade psicofísica vem servindo a garantir numerosos direitos da personalidade (vida, nome, imagem, honra, privacidade, corpo, identidade pessoal), instituindo, hoje, o que se poderia entender como um amplíssimo “direito à saúde”, compreendida esta como completo bem-estar psicofísico e social. No princípio está contido ainda, e principalmente, o direito à existência digna, tendo sido previsto pelo texto constitucional, para tanto, o salário mínimo capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família (artigo 7o, IV, da Constituição Federal).”
PABLO STOLZE e RODRIGO PAMPLONA também teceram considerações sobre o tema, e acrescentaram à discussão seu ponto de vista aduzindo que a “noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade.”[8]
GUSTAVO TEPEDINO, precursor da doutrina do direito civil-constitucional no Brasil, trouxe importante reflexão sobre o princípio, atribuindo-lhe crucial participação na chamada cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana:
“Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do p. 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotado pelo Texto Maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento.”[9].
Do ponto de vista da Jurisprudência, o princípio da dignidade da pessoa humana presta socorro aos mais diversos ramos do Direito, demonstrando mesmo que é, como preconizado por INGO SARLET, elemento e medida de vários outros princípios fundamentais também encartados na Constituição Federal.
Confira-se alguns julgados do Supremo Tribunal Federal:
“Em conclusão, o Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da Lei federal 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), que permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não usados no respectivo procedimento, e estabelece condições para essa utilização. Prevaleceu o voto do Min. Carlos Britto, relator. Nos termos do seu voto, salientou, inicialmente, que o artigo impugnado seria um bem concatenado bloco normativo que, sob condições de incidência explícitas, cumulativas e razoáveis, contribuiria para o desenvolvimento de linhas de pesquisa científica das supostas propriedades terapêuticas de células extraídas de embrião humano in vitro. Esclareceu que as células-tronco embrionárias, pluripotentes, ou seja, capazes de originar todos os tecidos de um indivíduo adulto, constituiriam, por isso, tipologia celular que ofereceria melhores possibilidades de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais em situações de anomalias ou graves incômodos genéticos. Asseverou que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil, assentando que a Constituição Federal, quando se refere à “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III), aos “direitos da pessoa humana” (art. 34, VII, b), ao “livre exercício dos direitos... individuais” (art. 85, III) e aos “direitos e garantias individuais” (art. 60, § 4º, IV), estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Assim, numa primeira síntese, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estágio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de que trata seu art. 5º diria respeito exclusivamente a um indivíduo já personalizado.” (ADI 3.510, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 28 e 29-5-08, Informativo 508)
“O Tribunal, por maioria, deu provimento a agravo regimental interposto em suspensão de tutela antecipada para manter decisão interlocutória proferida por desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, que concedera parcialmente pedido formulado em ação de indenização por perdas e danos morais e materiais para determinar que o mencionado Estado-membro pagasse todas as despesas necessárias à realização de cirurgia de implante de Marcapasso Diafragmático Muscular - MDM no agravante, com o profissional por este requerido. Na espécie, o agravante, que teria ficado tetraplégico em decorrência de assalto ocorrido em via pública, ajuizara a ação indenizatória, em que objetiva a responsabilização do Estado de Pernambuco pelo custo decorrente da referida cirurgia, ‘que devolverá ao autor a condição de respirar sem a dependência do respirador mecânico’. (...) Concluiu-se que a realidade da vida tão pulsante na espécie imporia o provimento do recurso, a fim de reconhecer ao agravante, que inclusive poderia correr risco de morte, o direito de buscar autonomia existencial, desvinculando-se de um respirador artificial que o mantém ligado a um leito hospitalar depois de meses em estado de coma, implementando-se, com isso, o direito à busca da felicidade, que é um consectário do princípio da dignidade da pessoa humana.” (STA 223-AgR, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-4-08, Informativo 502)
“O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana, princípio alçado a fundamento da República Federativa do Brasil (CF, artigo 1º, inciso III)." (RE 248.869, voto do Min. Maurício Corrêa, julgamento em 7-8-03, DJ de 12-3-04)
"O direito de defesa constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana. Diante da ausência de intimação de defensor público para fins de julgamento do recurso, constata-se, no caso concreto, que o constrangimento alegado é inegável. No que se refere à prerrogativa da intimação pessoal, nos termos do art. 5º, § 5º da Lei n. 1.060/1950, a jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que essa há de ser respeitada." (HC 89.176, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 22-8-06, DJ de 22-9-06)
3. Conclusão.
Como se vê, na realidade não há a pretensão de se conceituar precisamente o que seja a dignidade da pessoa humana, mas elaborar argumentos que confiram um mínimo de concretude ao princípio, a fim de que a amplitude de suas possibilidades interpretativas não esvaziem o conteúdo normativo deste que, ao lado do princípio da solidariedade, constitui verdadeira pedra angular de todo o sistema jurídico brasileiro.
No que tange à disciplina dos contratos, e mais especificamente, aos princípios contratuais, será visto nos artigos que se sucedem que o princípio ora comentado é inspiração e fundamento de outros, como o da boa-fé objetiva e do equilíbrio contratual, por exemplo, e conhecer o seu principal conteúdo significa, em verdade, pavimentar a estrada que levará à adequada compreensão dos demais princípios contratuais.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 808
[2] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana – uma leitura civil constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. P. 82.
[3] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 2.ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p.106
[4] SARLET, op. cit., p.62.
[5] JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antônio. A caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista Trimestral de Direito Civil, n. 9, jan/mar 2002, P. 3-24.
[6] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana – uma leitura civil constitucional dos danos morais. Op. cit. P. 85.
[7] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana – uma leitura civil constitucional dos danos morais. Op. cit. P. 93 e 94.
[8] GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil/Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho – São Paulo: Saraiva, 2005. Pág. 33
[9] TEPEDINO, Gustavo. “A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. XXV
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: eduardo. Princípios Contratuais: notas sobre os princípios cardeais da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O princípio da dignidade da pessoa humana. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2013, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/37622/principios-contratuais-notas-sobre-os-principios-cardeais-da-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil-de-1988-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 27 set 2024.
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