Repercussão geral: suspensão processual e prescrição
O Supremo Tribunal Federal, iniciou julgamento de questão de ordem em recurso extraordinário em que se discutem o alcance da suspensão processual preconizada no art. 1.035, § 5º (1), do Código de Processo Civil (CPC) e os seus efeitos sobre os processos penais cuja matéria tenha sido objeto de repercussão geral reconhecida pela Corte. Questiona-se a possibilidade de suspensão – enquanto não julgado o recurso extraordinário paradigma – do prazo prescricional da pretensão punitiva de crimes ou contravenções penais objeto das ações penais sobrestadas.
A questão foi suscitada em recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida (Tema 924), que impugna acórdão que considerou atípica a conduta contravencional do jogo de azar, prevista no art. 50 (2) da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941).
O ministro Luiz Fux (relator) resolveu a questão de ordem no sentido de: a) que se interprete o art. 116, I (3), do Código Penal (CP) conforme a Constituição, para o fim de se entender que a suspensão do prazo prescricional para a resolução de questão externa prejudicial ao reconhecimento do crime abrange também a hipótese de suspensão do prazo prescricional nos processos criminais que, com fundamento no art. 1.035, § 5º, do CPC, por determinação do relator do recurso extraordinário adotado como paradigma, forem sobrestados em virtude da adoção da sistemática da repercussão geral; b) a partir da interpretação conforme do art. 116, I, do CP, até o julgamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal do recurso extraordinário adotado como paradigma, se reconheça a suspensão do prazo de prescrição da pretensão punitiva relativa a todos os crimes objeto de ações penais que, em todo o território nacional, tiverem sido sobrestados por força de vinculação ao tema 924 da repercussão geral reconhecida, sem prejuízo da extensão de tal entendimento a todos os casos em que um processo de natureza penal for suspenso por força de repercussão geral; c) como proposta adicional, deixar a critério do juiz aferir a legitimidade das medidas de constrição e a necessidade de produção de provas urgentes, mercê de suspensão do processo; d) ainda como proposta adicional, deixar a critério do juiz excepcionar da ordem de sobrestamento exarada pelo relator do processo paradigma as ações penais cujo réu esteja preso preventivamente, sem prejuízo da possibilidade de posterior suspensão do processo e do prazo prescricional respectivo quando e se vier a ser revogada a segregação cautelar.
Inicialmente, o relator citou as hipóteses de suspensão de prescrição previstas no ordenamento jurídico nacional: a) os incisos I e II do art. 116 do CP; b) o art. 366 do CPP; c) o art. 368 do CPP; d) o § 5º do art. 53 da Constituição Federal (CF); e) o § 6º do art. 89 da Lei 9.099/1995; f) o art. 9º da Lei 10.684/2003. Observou que, em todas elas, a suspensão do prazo prescricional tem sempre como pressuposto um fato que impede a atuação do Estado-acusador, o que decorre de aplicação do princípio interpretativo “ubi eadem ratio ibi eadem dispositio”.
Entretanto, reconheceu não haver, no ordenamento jurídico nacional, previsão expressa para a suspensão do prazo prescricional incidente nas ações penais que, por decisão do relator do recurso extraordinário paradigma, tiverem sido sobrestadas em virtude da sistemática da repercussão geral constitucional. Em razão disso, reputou necessário que o Supremo Tribunal Federal explicite os limites aos quais esse mecanismo – criado para a propagação da celeridade processual e uniformização das decisões judiciais – será submetido, sob pena de violação de outros princípios de igual estatura constitucional, em afronta aos postulados da unidade e da concordância prática das normas constitucionais. Para tanto, ante a ausência de previsão de suspensão do prazo prescricional dos processos criminais sobrestados, o relator propôs a aplicação da técnica hermenêutica da interpretação conforme a Constituição para a interpretação da hipótese fático-processual trazida pelo art. 116, I, do CP.
Frisou que, reconhecida a repercussão geral de questão constitucional de viés criminal, o Ministério Público fica cerceado em sua prerrogativa de promover a ação penal, visto que os processos criminais que tratam do mesmo tema ficam sobrestados, aguardando o julgamento do “leading case”. Por outro lado, continua correndo o prazo prescricional, que levará à extinção da pretensão punitiva estatal, paradoxalmente, pela demora no seu exercício. Tal situação causa o cerceamento da prerrogativa acusatória do “Parquet” e da paridade de armas que é consectário do princípio do contraditório.
Asseverou que, no caso, insta reconhecer a ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade, na sua vertente da vedação de proteção deficiente, na medida em que a fragilização da tutela penal do Estado, mediante o impedimento do exercício regular da ação penal, deixa descobertos direitos fundamentais como a vida, o patrimônio, a dignidade sexual, entre outros que o Estado deveria salvaguardar por meio da norma penal.
Consignou que, a despeito de o Direito Penal ser regido pelo cânone da intervenção mínima, atuando como “ultima ratio”, é imprescindível que todos os instrumentos jurídicos que lhe são inerentes preencham as condições mínimas para alcançar o fim último de resguardar os bens jurídicos que se propõem a proteger. Assim, se o legislador atua de forma a criar situações de proteção deficiente de direitos fundamentais, o intérprete pode intervir para formular regime jurídico de melhor proteção. Ademais, em face do princípio “contra non valentem agere non currit praescriptio”, a prescrição não pode correr contra quem não pode agir. A lei não pode criar situações de incompatibilidade lógica, ou seja, não é aceitável impossibilitar a parte de agir e, ao mesmo tempo, puni-la pela sua inércia. Dessa forma, na presença de obstáculo intransponível ao “ius persequendi”, a dilação do prazo prescricional é imperiosa, não se admitindo que a lei discipline mecanismo de paralisação da ação e, simultaneamente, permita a continuidade do lapso temporal.
Diante desse quadro, a partir da invocação dos postulados da unidade e concordância prática das normas constitucionais, o relator propôs afastar o sobredito espectro de violação a normas constitucionais e interpretar a legislação infraconstitucional que regula a suspensão dos prazos prescricionais da pretensão punitiva de modo a abranger, no que tange à regra prevista no art. 116, I, do CP, a hipótese fático-processual concernente ao sobrestamento de ações penais em decorrência do disposto no art. 1.035, § 5º, do CPC. Desse modo, entre as diversas interpretações possíveis para o inciso I do art. 116 do CP, deve-se adotar aquela que se afigure como conforme a Constituição, isto é, que melhor resguarde os demais fundamentos constitucionais potencialmente afetados (proteção da prerrogativa acusatória do Ministério Público para o exercício da pretensão punitiva estatal, proteção ao princípio da paridade de armas e vedação à proteção penal insuficiente), qual seja, a interpretação que compreenda a suspensão para aferição de repercussão geral como fator externo condicionante ao prosseguimento da persecução penal.
Segundo o relator, o prevalecimento da interpretação sugerida não descaracteriza o texto normativo nem contraria o fundamento principiológico que embasou a opção realizada pelo legislador. O inciso I do art. 116 do CP prevê como hipótese de suspensão do prazo de prescrição da pretensão punitiva a ausência de resolução, “em outro processo, de questão de que dependa a existência do crime”. A questão de repercussão geral cogitada de discussão é concernente à constitucionalidade de disposição passível de repercutir na tipicidade formal e material, antijuridicidade ou reprovabilidade de determinada conduta. Assim, segundo parâmetros literais de hermenêutica, com a seleção de um processo paradigma para julgamento da questão e o sobrestamento dos demais sobre o mesmo objeto, estará pendente de resolução, “em outro processo” (no processo paradigma), “questão de que dependa a existência do crime” que é cogitado nos processos.
O relator concluiu que o reconhecimento da repercussão geral da controvérsia constitui verdadeiro embaraço à resolução do processo. Tal óbice deve ser compatibilizado com a suspensão do prazo prescricional, justamente por ter-se formado uma barreira ao andamento regular do feito. A ação penal foi ajuizada a tempo e não foi abarcada por nenhuma hipótese caracterizadora de inércia. Então, questões estranhas ao processo que impeçam o seu fluxo regular devem acarretar também a paralisação do prazo prescricional, sob pena de quebra da organicidade do sistema jurídico.
Após, o julgamento foi suspenso.
(1) CPC/2015: “Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. (...) § 5º Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”.
(2) Decreto-Lei 3.688/1941: “Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local. § 1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo pessoa menor de dezoito anos. § 2º Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, quem é encontrado a participar do jogo, como ponteiro ou apostador. § 2o Incorre na pena de multa, de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador. § 3º Consideram-se, jogos de azar: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. § 4º Equiparam-se, para os efeitos penais, a lugar acessível ao público: a) a casa particular em que se realizam jogos de azar, quando deles habitualmente participam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa; b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se proporciona jogo de azar; c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar; d) o estabelecimento destinado à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse destino”.
(3) CP/1940: “Art. 116. Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre: I – enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime”.
RE 966177 RG-QO/RS, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 1º.6.2017. (RE-966177)
O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição, conforme definido no art. 102 da Constituição da República. É composto por onze Ministros, todos brasileiros natos (art. 12, § 3º, inc. IV, da CF/1988), escolhidos dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada (art. 101 da CF/1988), e nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal (art. 101, parágrafo único, da CF/1988). Entre suas principais atribuições está a de julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da própria Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STF - Supremo Tribunal Federal. Repercussão geral: suspensão processual e prescrição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2017, 18:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/informativos temáticos/50813/repercusso-geral-suspenso-processual-e-prescrio. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: STJ - Superior Tribunal de Justiça BRASIL
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