RESUMO: A pesquisa acerca da Lei de Anistia no Brasil deve ser analisada primeiramente pelo conceito de justiça de transição e qual seria as suas dimensões. A partir da compreensão desse instituto, foram analisadas as decisões mais importantes sobre a temática, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Palavras chaves: justiça de transição. Controle de convencionalidade. Lei de Anistia.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Justiça de Transição e suas dimensões. 3. A Lei de Anistia no Brasil e o controle de convencionalidade realizado na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 4. Conclusão. 5. Referências.
INTRODUÇÃO
O regime militar e suas consequências são sempre trazidos ao debate na atualidade, ante a recente virada democrática ocorrida no Brasil. Na temática, não se pode deixar de fora a Lei de Anistia, cujo objeto foi a anistia de crimes políticos e dos conexos a eles cometidos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. A autoanistia sempre foi criticada por organismos internacionais e entidades jurídicas, de modo a considerar que é uma impunibilidade de agentes violadores de direitos humanos. Assim, as controvérsias trazidas pela Lei de Anistia brasileira também foram objeto de decisões das Cortes, constitucionais e convencionais, sendo analisado seus fundamentos no presente artigo.
2. A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E SUAS DIMENSÕES
No estudo dos tratados e convenções internacionais podemos observar que não é raro que estes sejam elaborados após um momento histórico em que ficou reconhecida a absoluta violação de direitos humanos, seja por parte de um Estado ou de seus particulares.
Nesse sentido, é evidente a necessidade de se restabelecer a garantia de direitos fundamentais dos cidadãos, de modo a caracterizar uma verdadeira busca de prevenção e reparação às vítimas e às marcas e heranças de regimes autoritários ou massivas violações de direitos.
Sendo assim, a partir desse ponto inicia-se a discussão da necessidade de se estabelecer uma justiça de transição. Conforme ensina RAMOS (2020), a justiça de transição é um instituto que reúne diversas normas capazes de restaurar o Estado de Direito democrático, após a ocorrência de regimes ditatoriais e/ou confrontos armados internos.
A justiça de transição, para estabelecer um cenário mais estável e equilibrado, busca atingir quatro dimensões, definidas por RAMOS (2020) como:
a) direito à verdade e à memória;
b) direito à reparação das vítimas e seus familiares;
c) dever de responsabilização dos agentes violadores de direitos humanos;
d) formatação democrática das instituições autoritárias.
O direito à verdade e à memória possui dois enfoques, tanto sob a perspectiva de se obter mais informações sobre violações cometidas em governos de exceção, quanto pela imprescindibilidade em se atestar a ocorrência dos fatos, de modo a impedir que estes sejam negados no futuro.
No tocante à reparação das vítimas e seus familiares, é evidente a necessidade de se reparar os danos sofridos pelos indivíduos direta ou indiretamente atingidos pelos atos violadores.
Essa reparação pode se dar de forma pecuniária ou mesmo por meio de obrigações de fazer. Um exemplo a se observar é o Caso Tavares Pereira e outros vs. Brasil, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou, em sede de medida provisória, que o Brasil mantivesse um monumento em respeito à memória e à família das vítimas da violação de direitos humanos ali analisadas.
O dever de responsabilização dos agentes violadores permite, por óbvio, que as suas ações ou omissões não passem impunes, de modo a caracterizar o reconhecimento da verdade judicial.
Por fim, na dimensão da formação democrática das instituições autoritárias, vê-se a exigência de se modificar, remover e transformar as práticas estatais, substituindo seus agentes por indivíduos mais capacitados, qualificados e instruídos a respeitar os direitos humanos, independentemente da situação enfrentada.
3. A LEI DE ANISTIA NO BRASIL E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE REALIZADO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Em 28 de agosto de 1979 foi aprovada a Lei nº 6.683/79 que concedeu anistia a todos os que, no período de 02/09/1961 a 15/08/1979, cometeram crimes políticos e conexos, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos poderes legislativo e judiciário, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em atos institucionais e complementares (art. 1º).
Esse regramento sempre foi objeto de críticas das organizações civis e de atores no sistema do direito, em razão da impunibilidade de casos de absurdas violações de direitos fundamentais.
Dessa forma, em 2010 foi julgada pelo STF a ADPF 153, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sob o fundamento de que o disposto no art. 1º, §1º, da Lei de Anistia, abria margem para não punir os crimes de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar.
Além disso, a instituição autora alegou que os atos de violação da dignidade humana não são efetivamente reparados apenas com indenização pecuniária, eis que os responsáveis estariam imunes ao processamento e condenação por seus atos.
Seu pedido, portanto, baseou-se na interpretação conforme à Constituição, para declarar que a anistia concedida pela Lei n. 6.683/79 aos crimes políticos e conexos, não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão, contra os opositores políticos, durante o regime militar. Acrescentando-se, ainda, a declaração de não recepção da Lei n. 6.683/79 pela Constituição Federal de 1988.
O Supremo Tribunal Federal, no momento do julgamento sustentou que a Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e precede o preceito veiculado pelo art. 5º, XLIII, da CF/88. Assim, não poderiam essas normativas atingirem leis que as tenham precedido.
A Corte Suprema alegou que a Lei de Anistia seria uma lei-medida, disciplinando diretamente determinados interesses, sendo de efeito imediato, concreto e exaurido e, por isso, devia ser interpretada em conjunto com a realidade e o momento em que foi editada, não com a realidade atual. Além disso, a Lei de Anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento – uma “transição conciliada” do ano de 1979. Por isso, pela maioria, o Tribunal julgou improcedente a arguição[1].
Assim sendo, essa violação perpetrada pelo Brasil foi levada ao conhecimento do sistema interamericano de direitos humanos no caso Gomes Lund e outros.
No julgamento do caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ressaltou a gravidade do crime de desaparecimento forçado, cuja proibição tem caráter jus cogens (conforme também decidido no Caso Goiburú e outros, Caso Chitay Nech e outros, Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, e Caso Velázquez Rodríquez).
O desaparecimento forçado de pessoas constitui uma violação múltipla que se inicia com uma privação de liberdade contrária ao artigo 7 da Convenção Americana, além de comumente resultar em violação do direito à vida, reconhecido no artigo 4 da Convenção. Além disso, a falta de investigação dos fatos, configura violação ao artigo 4.1 do mesmo instrumento, que garante que toda pessoa sujeita a sua jurisdição a inviolabilidade da vida e o direito a não ser dela privado arbitrariamente[2].
Ainda, a Corte entendeu que o desaparecimento forçado ofende o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, estabelecido no artigo 3 da Convenção Americana, uma vez que o “desaparecimento busca não somente uma das mais graves formas de subtração de uma pessoa de todo o âmbito do ordenamento jurídico, mas também negar sua existência e deixá-la em uma espécie de limbo ou situação de indeterminação jurídica perante a sociedade e o Estado”.
No tocante à Lei de Anistia brasileira, ficou reconhecido que em virtude dessa norma, o Brasil não investigou, processou ou condenou penalmente os agentes responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura. Isso se deu justamente pela interpretação no sentido de que a lei absolve automaticamente todas as violações de direitos humanos que tenham sido perpetradas por agentes da repressão política”.
O julgado ressaltou que tanto a própria Corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados.
Assim, a Corte Interamericana realizou o controle de convencionalidade da Lei de Anistia e decidiu que “as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.
Assim, podemos observar que a decisão do Supremo Tribunal Federal foi contrária ao entendimento proferido posteriormente pela Corte IDH, momento em que foi protocolado embargos de declaração nos autos da ADPF 153, o qual ainda não foi julgado.
Após, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou nova ADPF (nº 320) sobre a temática, apensada à anterior, cujo julgamento também não foi realizado até o momento.
CONCLUSÃO
No contexto do constitucionalismo e da necessidade de se exercer de modo concreto a dignidade da pessoa humana, com a devida vênia, não podemos considerar a Lei de Anistia como uma lei-medida, resultante de um acordo legítimo de vontades. Tal regramento foi realizado com evidente objetivo de inviabilizar o direito à verdade, à memória e o dever de responsabilizar os agentes que agiram em abuso de poder. Não se pode permitir que violações de direitos humanos sejam perpetradas ao longo do tempo, eis que o desaparecimento forçado é uma violação permanente, conforme decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. E mais, não se pode permitir que vítimas sejam apagadas da história, sob pena de revivermos as mesmas violações em contextos cíclicos de Estado de exceção.
REFERÊNCIAS
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos – 6. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
[1] Supremo Tribunal Federal. ADPF Nº 153/DF. Relator Ministro Eros Grau. Julgamento em 28/04/2010. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960
[2] Corte Interamericana De Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha Do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010 – Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf
Advogada especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PARREIRA, Ana Laura Baiocchi de Souza. A justiça de transição e o controle de convencionalidade da lei de anistia do Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59221/a-justia-de-transio-e-o-controle-de-convencionalidade-da-lei-de-anistia-do-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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