Resumo: A Lei nº 14.230/2021 promoveu significativas alterações da Lei 8.429/1992. Da leitura atenta da lei constata-se que não se trata de mera reforma legislativa, mas sim do surgimento de uma nova Lei de Improbidade Administrativa, como vem sendo tratada por parte da comunidade jurídica. Foi alterada a estrutura base da Lei 8.429/1992 e implementado um novo sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa.[1]
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Direito administrativo sancionador. 3. Irretroatividade da modalidade culposa do ato de improbidade para as sentenças transitadas em julgado. 4. Retroatividade da modalidade culposa do ato de improbidade para as ações em curso. 5. Conclusão. 6. Considerações finais. 7. Bibliografia.
1. Introdução
Pode-se dizer que a Lei nº 14.230/2021 promoveu a maior reforma da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) desde que esse diploma foi editado.
Sancionada sem vetos e com vigência imediata, desde a publicação em 26 de outubro de 2021, a Lei nº 14.230/21 suprimiu a modalidade culposa de improbidade administrativa, modificou as regras sobre prescrição e alterou muitos aspectos processuais. [2]
A questão é saber se as alterações promovidas pela lei 14.230/2021 retroagem para alcançar os atos praticados antes de seu advento. Trata-se de tema concernente à aplicação de lei no tempo, cabendo apreciar se a lei nova, neste caso, pode ser aplicada com efeitos retroativos, ou seja, alcançando fatos ocorridos antes de sua edição.
2. Direito administrativo sancionador
A ação de improbidade administrativa possui natureza cível. Em outras palavras, é uma ação civil e não uma ação penal. Assim, o ato de improbidade administrativa não é crime, mas sim conduta a ser apurada no âmbito cível.
A Lei nº 14.230/2021 acrescentou o § 4º ao art. 1º da LIA afirmando que a ele devem ser aplicados os princípios do direito administrativo sancionador, que muito se assemelham aos princípios do direito penal:
Art. 1º (...)
§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.
A partir da compreensão de que o sistema de responsabilidade de improbidade administrativa constitui ramo do direito sancionador, impõe-se o reconhecimento de que se sujeita às garantias constitucionais de defesa dos acusados em geral, com especial destaque, neste caso, ao que prevê o art. 5º, XL, da CF (“XL a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”).
Nesse sentido, vale relembrar a lição de EMERSON GARCIA e ROGÉRIO PACHECO ALVES:
A irretroatividade da lei punitiva que agrave a situação do agente, princípio há muito consagrado no Direito Penal, deve prevalecer em qualquer seara na qual o Estado exerça o seu poder sancionador, pois a violação e consequente recomposição da ordem jurídica sempre possuem um alicerce comum, como será visto item concernente à natureza jurídica das sanções cominadas aos atos de improbidade. De forma correlata, será igualmente aplicável a segunda parte do art. 5º, XL, da Constituição, que consagra a retroatividade da lei mais benéfica. Assim, violado o preceito proibitivo previsto, de forma implícita ou explícita, na norma, estará o agente sujeito à sanção cominada, cujo conteúdo e intensidade sempre estarão sujeitos aos influxos sociais. Verificada a severidade de determinada sanção e optando o legislador por atenuá-la, aqueles que praticaram atos de improbidade sob a égide da lei antiga haverão de ser alcançados pela alteração legislativa. [3]
Essa concepção já era adotada pelo STJ:
“As sanções da Lei de Ação Popular, da Lei de Ação Civil Pública e da Lei de Improbidade Administrativa não têm caráter penal, mas formam o arcabouço do direito administrativo sancionador, de cunho eminentemente punitivo, fato que autoriza trazermos à baila a lógica do Direito Penal, ainda que com granus salis. É razoável pensar, pois, que pelo menos os princípios relacionados a direitos fundamentais que informem o Direito Penal devam, igualmente, informar a aplicação de outras leis de cunho sancionatório.
(...)
De acordo com essa linha de argumentação, um princípio norteador do Direito Penal que, em minha opinião, deve ter plena aplicação no campo do Direito Administrativo sancionador é o princípio da culpabilidade (...)” (STJ REsp 765212/AC).
No STF, prevaleceu o entendimento do ministro Alexandre de Moraes, de que a LIA está no âmbito do direito administrativo sancionador, e não do direito penal. Portanto, a nova norma, mesmo sendo mais benéfica para o réu, não retroage nos casos já transitados em julgado. [4]
3. Irretroatividade da modalidade culposa do ato de improbidade para as sentenças transitadas em julgado
A partir a Lei nº 14.230/2021 (26/10/2021), deixou de existir, no ordenamento jurídico, a tipificação para atos culposos de improbidade administrativa. Contudo, essa alteração não retroage para absolver pessoas que já tenham sido condenadas com trânsito em julgado em respeito à coisa julgada.
Por força do art. 5º, XXXVI, da CF/88, a revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, promovida pela Lei nº 14.230/2021, é irretroativa, de modo que os seus efeitos não têm incidência em relação à eficácia da coisa julgada, nem durante o processo de execução das penas e seus incidentes. STF. Plenário. ARE 843989/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 18/8/2022 (Repercussão Geral – Tema 1199) (Info 1065).
No caso, não é possível aplicar a retroatividade da lei penal mais benéfica. Esse princípio não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal. [5]
Conforme o professor Márcio André Lopes Cavalcante, a regra, no ordenamento jurídico, é a irretroatividade das leis para não atingir situações transitadas em julgado. A retroatividade da lei penal mais benéfica é uma exceção que, como tal, deve ser interpretada restritivamente, prestigiando-se a regra geral da irretroatividade da lei e a preservação dos atos jurídicos perfeitos, especialmente porque, no âmbito da jurisdição civil, prevalece o princípio tempus regit actum.
Assim, a Lei nº 14.230/2021 não irá retroagir para absolver aquele que já foi condenado por sentença transitada em julgado.
4. Retroatividade da modalidade culposa do ato de improbidade para as ações em curso
Situação diversa ocorre se o processo ainda estiver em curso. Retroage a Lei nº 14.230/2021 em relação aos atos de improbidade administrativa culposos cujos processos não transitaram em julgado.
Não será mais admitida a condenação por crime culposo de improbidade administrativa, mas somente na modalidade dolosa. É o que prevê o art. 1º, § 3º da lei em estudo:
Art. 1º
(...)
§ 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.
Contudo, destaca-se que em respeito ao princípio da cooperação, antes de extinguir os processos de improbidade administrativa que tramitam apenas para apuração da modalidade culposa, deve o magistrado abrir vistas para oportunizar que o Ministério Público promova as adequações legais.
Essa medida é necessária porque, na vigência da Lei nº 8.429/1992, como não se exigia a definição de dolo ou culpa, muitas vezes a imputação era feita de modo genérico, sem especificar qual era o elemento subjetivo do tipo. Até então, todos os atos processuais até então praticados são válidos.
5. Conclusão
Conclui-se que as inovações legislativas atinentes aos atos de improbidade administrativa e de suas sanções, aplica-se aos atos praticados antes de sua vigência, se para beneficiar o réu e desde que não tenha havido o trânsito em julgado.
Assim, decidiram os ministros do STF que a nova lei somente se aplica a atos culposos praticados na vigência da norma anterior se a ação ainda não tiver decisão definitiva. Segundo a decisão, tomada no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 843989, como o texto anterior que não considerava a vontade do agente para os atos de improbidade foi expressamente revogado, não é possível a continuidade da ação em andamento por esses atos.
6. Considerações Finais
O presente estudo analisa detalhadamente a retroatividade das alterações promovidas pela lei 14.230/2021, instituto novo, mas objeto de grande discussão jurídica nos âmbitos judicial, doutrinário e acadêmico.
7. Bibliografia
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL. Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992. Lei de Improbidade Administrativa. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 2 de junho de 1992.
BRASIL. Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Diário Oficial da União, Brasília/DF, 25 de outubro de 2021.
CAVALCANTE. Márcio André Lopes. As mudanças promovidas pela Lei 14.230/2021 no elemento subjetivo e na prescrição da improbidade administrativa retroagem? Dizer o Direito, 2022. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2022/11/as-mudancas-promovidas-pela-lei.html#:~:text=Com%20a%20Lei%20n%C2%BA%2014.230,culpa%20para%20configura%C3%A7%C3%A3o%20da%20improbidade>. Acesso em: 28/02/2023.
EMERSON GARCIA e ROGÉRIO PACHECO ALVES. Improbidade Administrativa”, 7ª edição, Saraiva, 2013, p. 277.
MEDINA, José Miguel Garcia. A nova Lei de Improbidade Administrativa deve ser aplicada retroativamente? Conjur, 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/processo-lei-improbidade-aplicada-retroativamente>. Acesso em: 28/02/2023.
STF decide que mudanças na lei de improbidade não retroagem para condenações definitivas. STF, 2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=492606&ori=1>. Acesso em: 28/02/2023.
STF. Plenário. ARE 843989/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 18/8/2022.
[1] MEDINA, José Miguel Garcia. A nova Lei de Improbidade Administrativa deve ser aplicada retroativamente? Conjur, 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/processo-lei-improbidade-aplicada-retroativamente>. Acesso em: 28/02/2023.
[2] CAVALCANTE. Márcio André Lopes. As mudanças promovidas pela Lei 14.230/2021 no elemento subjetivo e na prescrição da improbidade administrativa retroagem? Dizer o Direito, 2022. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2022/11/as-mudancas-promovidas-pela-lei.html#:~:text=Com%20a%20Lei%20n%C2%BA%2014.230,culpa%20para%20configura%C3%A7%C3%A3o%20da%20improbidade>. Acesso em 28/02/2023.
[3] EMERSON GARCIA e ROGÉRIO PACHECO ALVES. Improbidade Administrativa”, 7ª edição, Saraiva, 2013, p. 277.
[4] STF decide que mudanças na lei de improbidade não retroagem para condenações definitivas. STF, 2022. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=492606&ori=1>. Acesso em: 28/02/2023.
[5] CAVALCANTE. Márcio André Lopes. As mudanças promovidas pela Lei 14.230/2021 no elemento subjetivo e na prescrição da improbidade administrativa retroagem? Dizer o Direito, 2022. Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2022/11/as-mudancas-promovidas-pela-lei.html#:~:text=Com%20a%20Lei%20n%C2%BA%2014.230,culpa%20para%20configura%C3%A7%C3%A3o%20da%20improbidade>. Acesso em: 28/02/2023.
Artigo publicado com autoria exclusiva. ISSN - 1984-0454. Especialista em Direito Penal, Processo Penal, Processo Civil e Direito Civil. Aprovada no TJ/RO e Defensoria de Roraima e na fase de títulos da Defensoria de Rondônia. Assessora de juiz de segunda entrância.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CIZMOSKI, GIOVANNA DE MORAES. Retroatividade da lei de improbidade administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 maio 2023, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61465/retroatividade-da-lei-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 23 dez 2024.
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