Resumo: O presente trabalho tem como escopo desmistificar a interpretação restrita e equivocada acerca da imutabilidade das cláusulas pétreas à luz das Emendas à Constituição que, in concreto, modificaram direitos previstos no rol do art. 60, §4º da Constituição Federal. Corroborando tal tese, busca-se evidenciar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à constitucionalidade das reformas constitucionais promovidas pelo Poder Constituinte Derivado Reformador. Conclui-se pela possibilidade de redução das cláusulas pétreas, sem que, todavia, seu núcleo essencial seja atingido.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Poder Constituinte. Poder de reforma. Imutabilidade. Cláusulas pétreas.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. PODER Constituinte; 2.1 Poder Constituinte Originário; 2.2 Poder Constituinte Derivado; 3. LIMITES AO PODER CONSTITUINTE DERIVADO REFORMADOR; 3.1 LIMITES FORMAIS; 3.2 LIMITES CIRCUNSTANCIAIS; 3.3 LIMITES MATERIAIS (CLÁUSULAS PÉTREAS); 3.3.1 Limitações expressas; 3.3.2 Limitações implícitas; 4. A (I)MUTABILIDADE DAS CLÁUSULAS PÉTREAS; 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
Ab initio, faz-se mister registrar as razões que deram azo ao estudo em questão: 1) a atemporal relevância temática do Poder Constituinte (originário e derivado); 2) a necessidade de delimitação do alcance constitucional dos limites substanciais explícitos; 3) as teses contemporâneas acerca da (in)constitucionalidade das matérias que impactam diretamente na reforma constitucional.
Destarte, far-se-ão análises assentes nas principais reformas legislativas-constitucionais com vistas a comprovar juridicamente a possibilidade de modificação das matérias constantes no art. 60, §4º, inclusive, vale dizer, restringindo tais direitos, desde que, obviamente, o seu núcleo essencial permaneça tutelado.
A par disso, cumpre mencionar a tese do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, aduzindo que o Direito não se interpreta em tiras, aos pedaços[1]. Tal posicionamento demonstra-se vivaz à medida que, comumente, intérpretes do direito limitam o sistema jurídico à norma stricto sensu.
Neste sentido, busca-se afastar o reducionismo interpretativo, de modo que a conclusão pela (in)constitucionalidade de reformas – ou mesmo de possíveis reformas, v.g., redução da maioridade penal sob o enfoque constitucional – deverá ser fruto da juridicidade, levando-se em conta, portanto, as normas e os princípios expressos na Constituição Federal, assim como aqueles cujo Estado brasileiro seja signatário.[2]
2 PODER CONSTITUINTE
2.1 PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO
Poder constituinte originário “é poder político supremo, destinado a elaborar o texto da Constituição do Estado e que, para tal mister, não encontra qualquer condição ou limites pré-estabelecidos no Direito, pois a este precede.”[3]
Com efeito, cumpre ressaltar as características inerentes ao poder de criação de uma Constituição suscitadas uniformemente pela doutrina, quais sejam:
i) Inicial, visto que a manifestação deste poder dá-se com a elaboração de nova Constituição e, como consectário lógico-jurídico, rompe-se com a ordem jurídica vigente;
ii) Ilimitado, já que como visto conceitualmente, o poder constituinte originário não está sujeito a limitações prévias, diferentemente do poder de reforma, como se verá mais adiante;
iii) Incondicionado, em razão de sua eclosão não se sujeitar às condições procedimentais.
Insta observar, todavia, que, hodiernamente, tais características não mais representam conceitos estanques, fechados, sofrendo, portanto, mitigações. Desse modo, desarrazoado seria se nova Constituição modificasse radicalmente os valores (internos e internacionais) assegurados em dada comunidade jurídica. Eis, então, nova acepção acerca das limitações ao poder inovador apontada pela doutrina de vanguarda.
Finda a análise das linhas gerais do poder constituinte originário, parte-se à compreensão do poder de reforma, cujos impactos serão esmiuçados.
2.2 PODER CONSTITUINTE DERIVADO
Como visto alhures, o poder constituinte originário goza da prerrogativa inovadora e, em decorrência disso, não se sujeita a limitações senão as valorativas. A seu turno, o poder constituinte derivado encontra naquele seu primeiro freio. Isto porque, em verdade, trata-se de poder constituído, cuja função é modificar pontualmente a ordem jurídica vigente à luz dos preceitos pré-estabelecidos.
Nesse ínterim, evidencia-se que o propósito do poder constituído é evitar a manifestação do poder constituinte originário para mudanças meramente pontuais, reduzindo, dessa forma, os efeitos nefastos das contínuas rupturas da ordem constitucional.[4]
Caracteriza-se, doutrinariamente, o Poder Constituinte Derivado como sendo:
i) Derivado, levando-se em conta que sua manifestação pressupõe, anteriormente, a exteriorização do poder constituinte originário;
ii) Limitado, em atenção às limitações temporais, circunstanciais, formais e materiais exigidas pela Constituição Federal;
iii) Condicionado, pois sua materialização advém posteriormente ao preenchimento das formalidades impostas pela Lei Maior.
Outrossim, classifica-se o poder constituinte derivado em: a) reformador; b) decorrente. Aquele tem o condão de modificar a ordem constitucional através de emendas constitucionais (reforma stricto sensu) e revisão constitucional (reforma lato sensu); este, por outro lado, destina-se à elaboração e modificação das constituições estaduais.
Deveras, utilizar-se-á como alicerce deste trabalho tão somente o poder constituinte derivado reformador. À vista disso, as idiossincrasias relativas ao poder constituinte derivado decorrente não serão abordadas.
Ademais, é forçoso convir que a disposição normativa acerca da revisão constitucional endossou lapso temporal para a produção de seus efeitos[5]. Com isso, a referida norma adquiriu status de eficácia exaurida e, portanto, a Constituição apenas poderá ser emendada e não mais revisada.[6]
Dissecada a temática do Poder Derivado Reformador, resta examinar os seus limites. Note-se que esta análise será de suma importância para a compreensão da proposta do presente estudo.
3 LIMITES AO PODER DERIVADO REFORMADOR
3.1 Limites formais
A compreensão dos limites formais remonta à ponderação do constitucionalismo moderno, aflorado no final do século XVIII com a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa[7].
Como corolário deste histórico movimento, a rigidez constitucional difundiu-se entre as Constituições modernas, condicionando, assim, as reformas constitucionais a procedimentos específicos. Aduz, nesse viés, o Ministro Luís Roberto Barroso[8]:
Da rigidez constitucional resulta a existência de um procedimento específico para reforma do texto constitucional, que há de ser mais complexo do que o adotado para a aprovação da legislação ordinária. Esse procedimento envolverá, normalmente, regras diferenciadas em relação à iniciativa, ao quórum de votação das propostas de emenda e às instâncias de deliberação.
Assim sendo, as fases atinentes ao processo de mudança podem ser decompostas didaticamente em:
i) Iniciativa
ii) Constitutiva
iii) Complementar
A iniciativa, de acordo com o texto constitucional, refere-se à apresentação da proposta de Emenda Constitucional através de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; do Presidente da República; de mais da metade das Assembleias Legislativas, manifestando-se, cada casa, pela maioria relativa de seus membros.
No que concerne à fase constitutiva, exige-se a anuência de 3/5 da Câmara dos Deputados e 3/5 do Senado Federal, sendo deliberado duas vezes em cada Casa. Converte-se, então, a proposta de Emenda em Emenda propriamente dita.
Finalmente, a etapa complementar envolve a promulgação e publicação da Emenda. Promulgar, pois, significa o atestado de regularidade do processo legislativo-constitucional; ao passo que publicar, consequentemente, relaciona-se à divulgação do ato de promulgação. Tal procedimento será realizado conjuntamente pelas Mesas da Câmara e do Senado, nos termos do art. 60, §3º.[9]
3.2 LIMITES CIRCUNSTANCIAIS
O legislador constituinte, acertadamente, dispôs acerca dos limites circunstanciais, cuja nomenclatura colabora consideravelmente ao entendimento. Fala-se, então, em limites circunstanciais enquanto impedimento de reforma constitucional durante a vigência de determinadas circunstâncias anômalas que potencializam abalos ao Estado Democrático de Direito.
Em síntese, tais circunstâncias dividem-se em: a) intervenção federal, enquanto mecanismo que retira temporariamente a autonomia política de algum ente da federação; b) estado de defesa, sendo decretado pelo Presidente da República e controlado pelo Congresso Nacional, com vistas a restabelecer a ordem pública em locais determinados; e c) estado de sítio, que, diante da insuficiência do estado de defesa, restringe direitos fundamentais em razão da instabilidade que assola o país.
Ora, como cediço, o processo legislativo representa crucial momento democrático, razão pela qual os congressistas necessitam de equilíbrio institucional para deliberarem as reformas à Lei maior. Dessa forma, o art. 60, §1º tutelou a matéria, garantindo, por consequência, segurança aos destinatários da reforma constitucional.[10]
3.3 LIMITES MATERIAIS (CLÁUSULAS PÉTREAS)
Os limites materiais, por sua vez, constituem desconfianças do legislador. Isto é, quando da elaboração da Constituição Cidadã, o constituinte tutelou determinadas matérias, vedando alterações que restrinjam seus núcleos principais.
Tal proteção, inclusive, vai além: não se admitem as propostas tendentes a abolir as cláusulas pétreas. Neste caso, portanto, há controle preventivo de constitucionalidade, o que impede a tramitação da proposta por ser flagrantemente inconstitucional.
Ademais, tais limitações podem ser expressas (previstas explicitamente na Constituição Federal) ou implícitas (não previstas explicitamente pela Constituição, mas que gozam do mesmo respaldo).
Analisemo-las.
3.3.1 Limitações expressas
Estas, como dito, encontram-se previstas no texto constitucional, in verbis:
Art. 60. [...]
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Não constitui objetivo desta produção dissecar individualmente as matérias amparadas pela Lei Maior. Sem embargo, cumpre advertir que o inciso IV em questão é alvo de embates doutrinários. Uns, apegados à literalidade do dispositivo constitucional, interpretam-no restritivamente[11]; outros, contudo, decifram a expressão “direitos e garantias individuais” como sendo espécie do gênero direitos fundamentais, optando-se, assim, pela interpretação ampliativa.[12]
Em busca da interpretação adequada às cláusulas pétreas, salienta o Ministro Luís Roberto Barroso[13]:
A locução tendente a abolir deve ser interpretada com equilíbrio. Por um lado, ela deve servir para que se impeça a erosão do conteúdo substantivo das cláusulas protegidas. De outra parte, não deve prestar-se a ser uma inútil muralha contra o vento da história, petrificando determinado status quo. A Constituição não pode abdicar da salvaguarda de sua própria identidade, assim como da preservação e promoção de valores e direitos fundamentais; mas não deve ter a pretensão de suprimir a deliberação majoritária legítima dos órgãos de representação popular, juridicizando além da conta o espaço próprio da política. O juiz constitucional não deve ser prisioneiro do passado, mas militante do presente e passageiro do futuro. (grifei)
As limitações explícitas na Carta Constitucional, portanto, são imprescindíveis à ordem constitucional; entretanto, o intérprete constitucional deve, casuisticamente, sopesar os valores inatos à Constituição objetivando salvaguardá-la e prosperá-la, simultaneamente.
3.3.2 Limitações implícitas
Conquanto tais limitações não estejam previstas no texto constitucional, suas funções seguem mesma lógica das limitações expressas, enquanto mecanismo fundamental de ponderação ao exercício do poder reformador.
A respeito destas limitações implícitas, Nelson de Sousa Sampaio fixou entendimento como sendo: “1ª) as relativas aos direitos fundamentais; 2ª) as concernentes ao titular do poder constituinte; 3ª) as referentes ao titular do poder reformador; 4ª) as relativas ao processo da própria emenda ou revisão constitucional”.[14]
O raciocínio, portanto, é tutelar, em linhas gerais, o próprio sistema que instituiu as cláusulas pétreas. A contrario sensu: incongruente seria estabelecer um sistema e, simultaneamente, não oferecer ferramentas necessárias à sua proteção.
De maneira latente, pois, percebe-se que a doutrina tradicional já mencionava a necessidade de custodiar o sistema instituidor das cláusulas pétreas, de modo que, contemporaneamente, há plenitude doutrinária acerca do tema.
4 A (I)MUTABILIDADE DAS CLÁUSULAS PÉTREAS
Tecidas as ponderações cruciais à tônica do Poder Constituinte, analisa-se, doravante, a situação-problema investigada por este estudo.
À luz das diretrizes outrora construídas, percebe-se que, em verdade, as cláusulas pétreas são mutáveis, isto é, a forma federativa de estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais podem, em certa medida, sofrer alterações.
A priori, faz-se mister por razões históricas e pela relação intrínseca com o cerne do debate, aludir ao julgamento acontecido sob a égide da Constituição de 1967-69 na Suprema Corte:
Os Exmos. Srs. Senadores Itamar Franco e Antonio Mendes Canale requerem mandado de segurança contra a Mesa do Congresso Nacional, na pessoa de seu Presidente, o Exmo. Sr, Senador Luiz Viana Filho, a fim de que seja impedida a tramitação das Propostas de Emendas Constitucionais nºs. 51 e 52/80, bem assim da Emenda nº 3 às referidas Propostas.
Argumentam que ditas Emendas, visando à prorrogação dos mandatos dos atuais Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores, não podem ser objeto de deliberação, ante o que dispõe o art. 47, § 1º, da Constituição, segundo o qual "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a Federação e a República"[15].
[...]
A emenda constitucional, em causa, não viola, evidentemente, a república, que pressupõe a temporariedade dos mandatos eletivos. De feito, prorrogar mandato de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da coincidência de mandatos nos vários níveis da Federação, não implica introdução do princípio de que os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indiretamente, sua adoção de fato, como sustentam os impetrantes, sob a alegação de que, a admitir-se qualquer prorrogação, ínfima que fosse, estar-se-ia a admitir prorrogação por vinte, trinta ou mais anos. Julga-se à vista do fato concreto, e não de suposição, que, se vier a concretizar-se, merecerá, então, julgamento para aferir-se da existência, ou não, de fraude à proibição constitucional[16]. (MS 20.257/DF, Rel. originário Min. Cordeiro Guerra, Rel. p/ o acórdão Min. Moreira Alves, DJ 27/02/1981) (grifei)
Notabiliza-se, já na vigência da Constituição Federal de 1988, o julgamento da ADI n.º 2.024-MC, cuja relatoria incumbiu ao Ministro Sepúlveda Pertence:
I. Ação Direta de Inconstitucionalidade: seu cabimento – afirmado no STF desde 1926 – para questionar a compatibilidade de emenda constitucional com os limites formais ou materiais impostos pela Constituição ao poder constituinte derivado: precedente.
[...]
1. A “forma federativa de Estado” – elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e aapriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu um limite material imposto às futuras emendas à Constituição; de resto, as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do seu núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. (ADI 2.024-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 01/12/00) (grifei)
Em outra oportunidade, quando do julgamento do MS 23.047/DF, o Ministro Sepúlveda Pertence proferiu o seguinte voto:
Reitero de logo que a meu ver as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do seu núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação neles se protege.
Convém não olvidar que, no ponto, uma interpretação radical e expansiva das normas de intangibilidade da Constituição, antes de assegurar a estabilidade institucional, é a que arrisca legitimar rupturas revolucionárias ou dar pretexto fácil à tentação dos golpes de Estado. (MS 23.047, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14/11/03)
Este viés do Supremo Tribunal Federal é louvável. Com a devida vênia aos doutrinadores que, modernamente, ainda insistem em examinar o rol das matérias tuteladas à reforma constitucional como sendo imodificável, tal posicionamento contradiz os postulados consolidados pela jurisprudência pátria antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Compreendida a mutabilidade das cláusulas pétreas, parte-se às suas possibilidades de alterações.
Indaga-se, de antemão, se uma Emenda Constitucional poderá, eventualmente, restringir determinada cláusula pétrea. Como visto, cláusulas pétreas podem ser restringidas, desde que seu núcleo principal permaneça incólume. Este núcleo, portanto, nada mais representa que a estrutura substancial de determinado instituto jurídico.
Compreender desta forma, pois, permite ao intérprete enxergar além do dispositivo constitucional e, consequentemente, evita decisões teratológicas, aproximando-se da justiça interpretativa.
Nesse sentido, uma Emenda Constitucional poderá impactar, v.g., na separação dos poderes, sem, no entanto, violar o seu conteúdo mínimo. Explica-se: a EC n.º 45/2004, denominada “Reforma do Judiciário”, modificou, dentre outros imbróglios jurídicos, as competências do STF e STJ. Para tanto, corrigiu a incoerência que previa a possibilidade de interposição de Recurso Especial no caso de conflito entre lei local e federal, ao passo que, simultaneamente, a competência para processar e julgar originariamente as causas envolvendo a União, nos termos da Constituição, seria do STF. Diante da iminência de decisões conflitantes, visto que a mesma situação jurídica poderia ser submetida, concomitantemente, ao STF e STJ, sobreveio a reforma constitucional, atribuindo-se ao Supremo a competência para julgar o conflito entre lei local e federal mediante Recurso Extraordinário.[17]
Percebe-se, claramente, que a modificação, notadamente a restrição das cláusulas pétreas, é possível. No caso explicitado, a Emenda Constitucional restringiu a competência do STJ, já que, anteriormente, o órgão adequado ao julgamento do conflito entre lei local e federal seria o próprio STJ através da interposição de Recurso Especial.
Outrossim, não há dúvidas que o núcleo essencial da separação de poderes permaneceu tutelado, o que comprova, novamente, a tese aqui defendida.
Vencida a questão atinente à restrição das cláusulas pétreas, interpela-se: as reformas às cláusulas pétreas podem ser ampliativas?
Seguindo o raciocínio construído, a resposta apenas poderá ser negativa. Isto porque, como visto, o poder constituinte derivado reformador é outorgado pelo poder constituinte originário e, assim sendo, sofre limitações impostas exclusivamente pelo poder criador. Isto é, o poder reformador não sofre limitações de outro poder reformador (e nem poderia!). Caso fosse admitida, v.g., a instituição de nova cláusula pétrea por determinado poder reformador, o poder reformador futuro estaria restrito às determinações dadas por outro poder reformador, o que seria uma afronta à estrutura do poder constituinte.
Isto não obsta, todavia, que uma Emenda Constitucional tenha no seu bojo o objetivo de ampliar direitos e garantias fundamentais (os direitos e garantias individuais, conforme verificado anteriormente, são espécies). Aliás, coibir reformas ampliativas aos direitos fundamentais seria petrificar o sistema constitucional, desprezando-se, inclusive, os objetivos fundamentais consagrados pela Lei Fundamental.
À vista disso, elucida-se o magistério de Dirley da Cunha Júnior[18]:
Ora, é induvidoso que uma emenda constitucional pode reformar o catálogo dos direitos e garantias fundamentais para acrescentar ao texto constitucional novos direitos (por exemplo, o direito social à moradia, que foi acrescentado ao art. 6º pela EC nº 26/2000) e novas garantias (por exemplo, a garantia da razoável duração do processo, que foi inserida, como inciso LXXVIII, ao art. 5º pela EC nº 45/2004). A própria lei pode ampliar o conteúdo dos direitos e garantias constitucionais, porém jamais esvaziá-lo. Podemos dar o seguinte exemplo: uma lei pode ampliar a garantia constitucional do Júri para, além da sua competência garantida para julgar os crimes dolosos contra a vida, acrescentar outros crimes (como latrocínio, lesão corporal seguida de morte, etc); só não pode a lei, nem emenda constitucional, retirar da competência do Júri os crimes dolosos contra a vida, pois se trata aí de seu conteúdo mínimo, que é imutável.
Isto exposto, ratifica-se a mutabilidade das cláusulas pétreas – e, obviamente, a mutabilidade em questão refere-se à modificação em sentido amplo, abrangendo, portanto, a redução e a ampliação. Interpretá-la como intangível destoa da doutrina de vanguarda, bem como do posicionamento firmado pela cúpula máxima do poder judiciário brasileiro anteriormente ao advento da Lei Maior, estagnando o sistema interpretativo-constitucional.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se, ao longo deste estudo, examinar os principais aspectos relativos ao tema Poder Constituinte para, posteriormente, esmiuçar as cláusulas pétreas, na qualidade de limitações à reforma constitucional.
Todavia, com isso não se quer dizer que a temática em questão fora esgotada. Aliás, tal conjuntura seria impossível em virtude do propósito do presente trabalho, qual seja o de trazer à baila a mutabilidade dos limites materiais ao poder constituinte derivado reformador.
Convém acentuar, dessa forma, os desfechos obtidos:
a) O poder constituinte originário é a potência inovadora de uma ordem constitucional e, assim sendo, não se sujeita a limitações senão as de ordem axiológica;
b) O poder constituinte derivado, por consequência, atua em ordem constitucional existente, razão pela qual sua competência é mitigada pelas limitações impostas diretamente pelo poder originário;
c) As limitações fixadas ao poder reformador, por sua vez, servem para a manutenção do sistema jurídico-constitucional, coibindo eventuais abusos do poder de reforma;
d) No que se refere às cláusulas pétreas, o entendimento dominante doutrinário e jurisprudencial pauta-se pela mutabilidade, isto é, as cláusulas pétreas podem ser alteradas, desde que seu conteúdo central mantenha-se protegido;
e) É vedado ao poder de reforma a ampliação de cláusulas pétreas, visto que as limitações do poder constituinte reformador decorrem, exclusivamente, do poder originário.
f) Uma Emenda Constitucional, entretanto, poderá ampliar direitos e garantias fundamentais, a exemplo das EC n.º 26/00 e EC n.º 45/04; afinal, ampliá-los representa, consequentemente, a evolução da ordem constitucional.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n.º 20.257 – DF, Impetrantes: Itamar Augusto Cautiero Franco e Antonio Mendes Canale, Impetrado: Mesa do Congresso Nacional. Relator originário: Min. Cordeiro Guerra, Brasília, D.J 27 fev. 1981. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2015.
_______. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.024-2 – DF, Requerente: Governador do Estado do Mato Grosso do Sul, Requerido: Congresso Nacional. Relator: Min Sepúlveda Pertence. D.J 01 dez. 2000. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2015.
_______. Mandado de Segurança n.º 23.047-3 – DF, Impetrantes: Miro Teixeira e outros, Impetrado: Presidente da Câmara dos Deputados. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. D.J 14 nov. 2003. Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2015.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2014.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 1 ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
MENDES, Gilmar Ferreira. Os limites da revisão constitucional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, 21:69, 1997.
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[1] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 1 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 41.
[2] Art. 5º, § 2º, CF: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
[3]CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 198.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 118.
[5] ADCT, art. 3º: “A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”.
[6] Nesse sentido, SOARES, Ricardo Maurício Freire. Elementos de teoria geral do direito. 1. ed. Salvador: Saraiva, 2013, p. 40.
[7] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.10 et seq.
[8] Ibidem, p. 152.
[9] Art. 60, §6º, CF: “A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem”.
[10] Art. 60, §1º, CF: “A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou estado de sítio”.
[11] Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes: “Parece inquestionável, assim, que os direitos e garantias individuais a que se refere o art. 60, § 4º, IV, da Constituição são, fundamentalmente, aqueles analiticamente elencados no art. 5º” (Os limites da revisão constitucional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, 21:69, 1997, p. 86).
[12] Nesse sentido, Dirley da Cunha Júnior: “É inegável que a proteção alcança todos os direitos e garantias fundamentais, incluindo os de natureza coletiva e difusa e os direitos sociais, em razão da concepção hoje dominante da unidade e indivisibilidade dos direitos e garantias” (Curso de Direito Constitucional. 8 ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 204).
[13] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 169.
[14] SAMPAIO, Nelson de Sousa. O poder de reforma constitucional. 3. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1995, p. 95.
[15] Relatório do julgamento MS 20.257/DF.
[16] Voto do Ministro Moreira Alves.
[17] Art. 102, CF: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal”. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
[18] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 203.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Bruno Porangaba. Poder Constituinte e a (i)mutabilidade das cláusulas pétreas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 mar 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49621/poder-constituinte-e-a-i-mutabilidade-das-clausulas-petreas. Acesso em: 22 nov 2024.
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