Palavras-chave: Tráfico de pessoas. Mecanismos internos de enfrentamento. Brasil.
INTRODUÇÃO[1]
Neste estudo, visa-se a demonstrar algumas medidas internas adotadas pelo Brasil para enfrentar o tráfico de pessoas, quais sejam: a política nacional, o plano nacional e a Lei n. 13.344/2016.
Através de uma análise histórico-reflexiva, objetiva-se analisar, em síntese, as medidas utilizadas pelo Estado brasileiro para prevenir e reprimir o tráfico de pessoas, porquanto o país se situava na lista dos principais países de origem das vítimas do tráfico de pessoas, desde a ratificação do Protocolo de Palermo, em 2004.
DESENVOLVIMENTO
Sendo o Brasil um dos principais países de origem das vítimas do tráfico de pessoas, desde a ratificação do Protocolo de Palermo pelo Estado brasileiro, em 2004, uma parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (em inglês, UNODC) foi se desenvolvendo, “propiciando intercâmbio de informações, realizações de eventos e seminários sobre o tema, além da pressão para o Brasil, como signatário do referido protocolo, movesse esforços”, o que incentivou a elaboração de uma política pública contra o tráfico de seres humanos[2].
Nesse cenário, criou-se um grupo de trabalho voltado para o estabelecimento de diretrizes a serem seguidas no âmbito brasileiro relacionadas ao tráfico de seres humanos, que contou com a participação do Ministério da Justiça, além de outros órgãos do Poder Executivo Federal, do Ministério Público Federal e Ministério do Trabalho, sem contar a participação de outras esferas de poder e da sociedade civil[3].
Como resultado prático, sobreveio, em 2006, a edição do Decreto n. 5.948, que, tendo como parâmetro o Protocolo de Palermo, tanto na definição do crime quanto na necessidade de se estabelecer um plano de ação no contexto das diversas modalidades de tráfico de pessoas, estabeleceu a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas[4]. Os princípios norteadores foram enumerados no seu artigo 3º, conforme se observa do texto a seguir[5]:
Art. 3º São princípios norteadores da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas:
I - respeito à dignidade da pessoa humana;
II - não-discriminação por motivo de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, nacionalidade, atuação profissional, raça, religião, faixa etária, situação migratória ou outro status;
III - proteção e assistência integral às vítimas diretas e indiretas, independentemente de nacionalidade e de colaboração em processos judiciais;
IV - promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos;
V - respeito a tratados e convenções internacionais de direitos humanos;
VI - universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; e
VII - transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, procedência, raça e faixa etária nas políticas públicas.
Parágrafo único. A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas observará os princípios da proteção integral da criança e do adolescente.
Percebe-se, à vista do exposto, que a primeira medida interna de grande expressão no cenário nacional, após o advento do Protocolo de Palermo, adotou, como se esperava, um conjunto valorativo plural, em observância à nova ordem de Direitos Humanos vigente.
Observa-se, ainda, uma preocupação com a cooperação bilateral ou multilateral para o enfrentamento do problema, notando-se a clara articulação com os documentos das agências das Nações Unidas[6]-[7].
Seguindo-se a orientação do Protocolo de Palermo em adotar medidas de cunho preventivo, pode-se destacar a realização do Seminário “Desafios para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil”, em 2007, que se inseriu no cenário da iniciativa global das Nações Unidas e que contou com relevante apoio do Estado brasileiro ao mobilizar diversos setores sociais para debater os principais temas relativos ao tráfico de pessoas no Brasil[8].
Sobreleva notar, igualmente, a realização e divulgação de pesquisas referentes ao tráfico de pessoas, a exemplo da Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Comercial Sexual, que, divulgando número desse crime no Brasil, propiciou a instauração da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre exploração sexual nos anos de 2003 e 2004[9].
Efetivamente, as medidas de conscientização das potenciais vítimas do tráfico de pessoas permitiram que se alcançasse um maior nível de informação dos grupos vulneráveis, possibilitando, assim, o discernimento sobre a utilização dos meios dos quais os traficantes se valiam[10].
Sob o viés repressivo, pretendia-se não apenas tipificar os delitos conexos ao tráfico de pessoas de forma independente, mas sim penalizar as condutas praticadas, as quais não eram poucas – exemplificativamente, a escravidão, os trabalhos forçados, a prostituição forçada, o casamento forçado, a tortura, o tratamento cruel, desumano e degradante, o sequestro, o confinamento ilícito[11].
Ocorre que o tráfico de pessoas, à época tratado pelo Código Penal brasileiro de 1940 no artigo 231, tinha por sujeito passivo apenas a mulher vítima da promoção e facilitação à prostituição e não mencionava a possibilidade de tráfico de pessoas no interior das fronteiras nacionais, nos seguintes termos: “promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro”[12].
Diante da deficiência legislativa, havia necessidade de modificação, o que veio a ocorrer com a Lei n. 11.106/2005, o qual alterou o artigo 231 do Código Penal vigente, passando a assim ser redigido: “promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”[13].
Igualmente, criou-se um novo tipo penal referente ao tráfico de seres humanos, agora relativo ao tráfico interno, constante do artigo 231-A do Código Penal, assim redigido: “promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas que venham a exercer a prostituição”[14].
Não obstante o avanço, críticas foram tecidas em relação à negligência quanto às diretrizes emanadas do Protocolo de Palermo, dentre as quais: a nova redação do artigo 231 do Código Penal manteve a prostituição como destinação única da prática do tráfico de pessoas e o mesmo diploma normativo ignorou a utilização de artifícios de fraude ou coação em desfavor das vítimas, equiparando-se, assim, ao crime de facilitar a prostituição, embora com nova designação[15].
Há de se consignar, por último, o eixo relacionado com a assistência às vítimas, de grande importância para a reinserção social das vítimas e recuperação de traumas por elas sofridos[16].
Nesse contexto, desenvolvem-se ações que visam a proporcionar assistência jurídica, social e de saúde às vítimas, diretas ou indiretas, do tráfico de pessoas, além da assistência consultar, concedida independentemente da situação migratória da vítima em seu país de origem[17].
Em continuidade ao enfrentamento ao tráfico de pessoas, o Brasil estabeleceu, através do Decreto n. 6.347/2008, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do qual se traçou a estratégia de atuação governamental para a efetivação das medidas de combate ao tráfico, delineadas tanto pela Política Nacional e pela legislação nacional, quanto por documentos internacionais dos quais o Brasil era signatário[18].
Proveniente das atividades do Grupo de Trabalho Interministerial – composto por treze ministérios, dentre os quais, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho –, que tinha por objetivo a elaboração de um relatório final contendo um plano de ações para prevenir e combater o tráfico de pessoas, o referido Plano Nacional incumbiu-se de operacionalizar este plano de ações[19].
Tendo por objetivo conferir exequibilidade do plano de ações, foram incentivadas iniciativas de âmbito estatal pelo governo federal, visando à ampliação da finalidade de combate ao tráfico de pessoas, através da participação das unidades da federação, ou seja, através de uma execução integrada[20].
Dessa forma, “incentivava-se o desenvolvimento de planos locais de enfrentamento ao tráfico de pessoas nos Estados, municípios e Distrito Federal, assim como a participação da sociedade nos mesmos”, o que levou à assinatura de um acordo de cooperação com os estados, em dezembro de 2007, no contexto do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), cuja finalidade consistia no agrupamento da segurança pública com políticas sociais[21].
Posteriormente, instituiu-se, através do Decreto n. 7.901, publicado em 4 de fevereiro de 2013, a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com vistas a coordenar a gestão estratégica e integrada da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e dos Planos Nacionais de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, além do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONTRAP)[22].
A título de curiosidade, vale ressaltar que a referida Coordenação é integrada, consoante o parágrafo único do artigo 1º do Decreto n. 7.901/2013, pelo Ministério da Justiça, pela Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República[23].
Em que pesem os esforços para o enfrentamento do tráfico de pessoas, permanecia uma lacuna em relação ao cumprimento do constante no artigo 5º do Protocolo de Palermo, por meio do qual o Brasil se obrigou a criar uma infração penal que tivesse por escopo impedir a prática dos comportamentos previstos no já mencionado artigo 3º[24].
Por conta disso, aproximadamente 12 anos após a edição do Protocolo de Palermo, foi editada a Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016[25], a qual dispôs sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas, tendo criado o crime de tráfico de pessoas, nos moldes da legislação internacional, tipificado no art. 149-A do Código Penal, além de ter revogado as infrações penais previstas nos artigos 231 (tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual) e 231-A (tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual), do mesmo diploma normativo[26].
A partir dessa novidade legislativa, enfim, o ordenamento jurídico brasileiro passou a prever um tipo penal com abrangência maior, prevendo a prática de condutas criminosas não restritas à exploração sexual[27], conforme se percebe da íntegra da transcrição do multirreferido dispositivo legal, in verbis[28]:
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
§ 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.
Nota-se, em linha de desfecho, que ao se distanciar da concepção restrita de tráfico de pessoas, a legislação criminal brasileira avançou – ainda que tardiamente – na repressão do referido delito, reconhecendo a sua multiface, à similitude dos documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Considerando que o Brasil se situava no rol dos principais países de origem das vítimas do tráfico de pessoas, desde a ratificação do Protocolo de Palermo, em 2004, emergiram diversos mecanismos internos de enfrentamento ao tráfico de pessoas pelo Brasil, implementando política e plano nacionais de enfrentamento e, recentemente, a edição da Lei n. 13.344/2016, que acrescentou o artigo 149-A ao Código Penal, estabelecendo um tipo penal específico para a conduta do tráfico de pessoas.
ARY, Thalita Carneiro. O tráfico de pessoas em três dimensões: Evolução, globalização e a rota Brasil-Europa. Dissertação (Dissertação em Relações Internacionais) – UnB, 2009.
BRASIL. Decreto n. 5.948 de 26 de outubro de 2006. Dispõe sobre a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5948.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
______. Lei n. 13.344 de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre o tráfico interno e internacional de pessoas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13344.htm. Acesso em: 15 de maio de 2019.
GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 11ª ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017.
______________. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 14ª ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017.
[1] O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.
[2] ARY, Thalita Carneiro. O tráfico de pessoas em três dimensões: Evolução, globalização e a rota Brasil-Europa. Dissertação (Dissertação em Relações Internacionais) – UnB, 2009, p. 100.
[3] Idem. Ibidem, p. 100.
[4] Idem. Ibidem, p. 101.
[5] BRASIL. Decreto n. 5.948 de 26 de outubro de 2006. Dispõe sobre a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5948.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[6] Idem. Ibidem, p. 102.
[7] Nesse ponto, cabe ressaltar uma das diretrizes gerais no artigo 4º, in verbis: Art. 4º São diretrizes gerais da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: [...] II - fomento à cooperação internacional bilateral ou multilateral. Op. cit.
[8] Idem. Ibidem, p. 103.
[9] Idem. Ibidem, p. 103.
[10] Idem. Ibidem, p. 104.
[11] Idem. Ibidem, p. 104.
[12] Idem. Ibidem, p. 105.
[13] Idem. Ibidem, p. 106.
[14] Idem. Ibidem, p. 106.
[15] Idem. Ibidem, pp. 106-107.
[16] Idem. Ibidem, p. 111.
[17] Idem. Ibidem, p. 112.
[18] Idem. Ibidem, pp. 112-113.
[19] Idem. Ibidem, p. 113.
[20] Idem. Ibidem, p. 114.
[21] Idem. Ibidem, pp. 114-115.
[22] GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. 11ª ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017, p. 722.
[23] Idem. Ibidem, p. 722.
[24] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa. 14ª ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017, p. 766.
[25] BRASIL. Lei n. 13.344 de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre o tráfico interno e internacional de pessoas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13344.htm>. Acesso em: 15 de maio de 2019.
[26] Idem. Ibidem, p. 766.
[27] Idem. Ibidem, p. 766.
[28] Op. cit.
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Bruno Porangaba. Mecanismos internos de enfrentamento ao tráfico de pessoas pelo Brasil: política nacional, plano nacional e Lei n. 13.344/2016 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jun 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53082/mecanismos-internos-de-enfrentamento-ao-trafico-de-pessoas-pelo-brasil-politica-nacional-plano-nacional-e-lei-n-13-344-2016. Acesso em: 22 nov 2024.
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