RESUMO: A Constituição Federal prevê que as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade serão vinculantes para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, excluindo o Poder Legislativo, no exercício de sua função típica de legislar. Portanto, no desempenho da sua atividade legiferante, é legítimo ao Congresso Nacional discrepar de posicionamento anterior fixado pela Corte Suprema, por exemplo, em sede de ação direta de inconstitucionalidade. Entretanto, imperioso reconhecer que a prerrogativa do Poder Legislativo de superar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, denominada reversão legislativa, não é ilimitada, sendo necessária a realização de análise da sua validade jurídico-constitucional. Assim, o Congresso Nacional deve buscar promover a evolução do conteúdo normativo, interpretando o texto constitucional de modo a adequá-lo à sua finalidade de integração social e a superar posições jurisprudenciais fundamentadas em ideais incompatíveis com os anseios da sociedade. E, no exercício deste mister, não obstante tenha a Constituição designado o Supremo Tribunal Federal como detentor da “última palavra”, a própria Corte reconhece não possuir a última palavra definitiva, mas tão somente provisória. Esse é o posicionamento defendido, também, pela teoria do diálogo institucional, isto é, independentemente de a qual instituição seja atribuída a última palavra, nada impede que a outra responda e o debate continue mediante o fornecimento mútuo de perspectivas distintas e argumentos complementares. A reversão legislativa, portanto, não é apenas admitida, mas necessária à adequação das normas constitucionais com a realidade socioeconômica e política, e, quando exercida dentro das limitações constitucionais, proporciona a ampliação da qualidade do debate a respeito dos direitos. Propõe-se o presente trabalho a analisar o ativismo congressual sob o ponto de vista da prerrogativa de reversão legislativa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixada em sede de controle de constitucionalidade, no que tange à sua legitimidade e seus limites. Para tanto, será feito o estudo de casos concretos julgados pela Corte Suprema em que houve a tentativa do Congresso Nacional de reverter teses jurisprudenciais anteriormente fixadas.
PALAVRAS-CHAVE: Ativismo congressual; reversão legislativa; diálogo institucional.
1.INTRODUÇÃO
A Constituição Federal instituiu como uma de suas cláusulas pétreas a separação de Poderes (art. 60, §4ª, III). Um dos assuntos mais debatidos nos dias atuais diz respeito à harmonização destes Poderes no exercício de suas funções, sejam típicas ou atípicas, em especial quando se trata da interpretação do texto constitucional. Os princípios que regem a hermenêutica constitucional buscam regular a atividade interpretativa sempre em conformidade com a unidade normativa da Carta Republicana e a harmonia entre seus princípios, o que deve ser observado por todos os poderes.
Em razão da aplicação do conhecido sistema de freios e contrapesos, as decisões do Supremo Tribunal Federal, não obstante vinculantes para a Administração Pública e demais órgãos do Poder Judiciário, não obrigam o Poder Legislativo em sua função típica de legislar.
Assim, ainda que uma matéria tenha sido compreendida como contrária à Constituição Federal por meio da declaração de inconstitucionalidade de lei que sobre ela tratava, nada obstará que o Congresso Nacional edite nova lei ou emenda constitucional tratando exatamente sobre aquele assunto, sem violação à já mencionada separação de poderes, exercendo o que a doutrina chama de reversão legislativa da jurisprudência.
Nesse diálogo entre os poderes, em que o papel de um é exatamente fiscalizar o exercício das funções típicas do outro a fim de coibir abusos e arbitrariedades, deve-se observar a impossibilidade de excessos na atividade de controle.
Assim, embora o Congresso Nacional tenha legitimidade para o exercício da reversão legislativa, sua liberdade não é plena, isto é, não pode se distanciar dos ideais constitucionais e dos contextos político, social e econômico que embasaram a decisão da Suprema Corte. Isso porque, uma vez inalterados estes, a manifestação do Parlamento padecerá do mesmo vício já exposto pelo Supremo Tribunal Federal.
A finalidade deste trabalho é analisar o ativismo congressual sob o ponto de vista da prerrogativa de reversão legislativa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixada em sede de controle de constitucionalidade, no que tange à sua legitimidade e seus limites. Para tanto, será feito o estudo de casos concretos julgados pela Corte Suprema em que houve a tentativa do Congresso Nacional de reverter teses jurisprudenciais anteriormente fixadas.
2.CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E SEUS EFEITOS
A Constituição Federal prevê em seu artigo 102, inciso I, alínea a), que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) de lei ou ato normativo federal.
Dispõe ainda, no parágrafo 2º do mesmo artigo, que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.
Previsão idêntica é a do artigo 28, parágrafo único, da Lei 9.868/1999[1], que dispõe sobre o processo e julgamento da ADI e da ADC perante o Supremo Tribunal Federal.
Analisando estes dispositivos constata-se que a obrigatoriedade das decisões da Suprema Corte em sede de controle concentrado de constitucionalidade atinge a Administração Pública, entendida como o Poder Executivo, em suas funções típicas, bem como o Poder Judiciário, não incluindo o Plenário do próprio Supremo Tribunal Federal, que pode alterar sua jurisprudência.
A vinculação atinge, ainda, o Poder Legislativo quando do exercício de funções meramente administrativas (atípicas). Lado outro, não se sujeita ao entendimento proferido pela Suprema Corte nas decisões de controle de constitucionalidade este mesmo poder quando age em sua função típica.
Sobre este tema posiciona-se Pedro Lenza[2], no sentido de que
o efeito vinculante atinge somente o Judiciário e o Executivo, não se estendendo para o Legislativo no exercício de sua função típica de legislar (nem atingindo, conforme sugerimos, as funções atípicas normativas tanto do Judiciário como do Executivo, quando, por exemplo, o Presidente da República edita uma medida provisória).
Nesta seara, verifica-se que caso fora o Poder Legislativo submetido aos efeitos vinculantes das decisões do Supremo Tribunal Federal ocorreria, nas palavras do Ministro Cezar Peluso, o inconcebível fenômeno da fossilização da Constituição[3].
Portanto, ao proferir uma decisão em sede de ADI ou ADC o Supremo Tribunal Federal estará instituindo um entendimento que necessariamente deverá ser observado pelos órgãos dos Poderes Executivo e Judiciário, porém não pelo Poder Legislativo na sua função legislativa típica.
3.REVERSÃO LEGISLATIVA
Neste contexto, em que é possível ao Congresso Nacional exercer suas funções típicas com independência em relação à posição fixada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade, surge o fenômeno da reversão legislativa, também conhecida como reação legislativa[4] ou mutação constitucional pela via legislativa[5].
O Poder Legislativo, assim como a Corte Suprema, possui legitimidade para interpretar a Constituição Federal, sendo um verdadeiro intérprete autêntico, uma vez que a interpretação é realizada pelo próprio órgão responsável pela edição da norma.
Assim, no exercício de sua função típica e aplicando os princípios da hermenêutica constitucional, o Congresso Nacional poderá editar uma lei ou emenda constitucional que vise a superar o entendimento já exarado pelo Supremo Tribunal Federal, sem que haja qualquer violação à separação dos poderes.
Esta possibilidade de o Poder Legislativo superar entendimento da Corte Suprema proferido anteriormente em sede de controle concentrado de constitucionalidade é considerado, por parcela da doutrina, como uma forma de ativismo congressual.
Nas palavras de Márcio André Lopes Cavalcante[6]:
A reação legislativa é uma forma de "ativismo congressual" com o objetivo de o Congresso Nacional reverter situações de autoritarismo judicial ou de comportamento antidialógico por parte do STF, estando, portanto, amparado no princípio da separação de poderes.
O ativismo congressual consiste na participação mais efetiva e intensa do Congresso Nacional nos assuntos constitucionais.
Assim, na reversão legislativa da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o que o Congresso Nacional deve buscar é a alteração do entendimento da Corte para que se adeque a novos aspectos da realidade não observados no momento da decisão judicial, fomentando o desenvolvimento e a adequação do texto constitucional à sua finalidade de integração social.
Neste sentido, Pedro Lenza[7] afirma que o Poder Legislativo poderá
legislar em sentido diverso da decisão dada pelo STF, ou mesmo contrário a ela, sob pena, em sendo vedada essa atividade, de significar inegável petrificação da evolução social.
Isso porque o valor segurança jurídica, materializado com a ampliação dos efeitos erga omnes e vinculante, sacrificaria o valor justiça da decisão, já que impediria a constante atualização das Constituições e dos textos normativos por obra do Poder Legislativo.
Destarte, verifica-se que o Congresso Nacional poderá, no exercício de sua função típica, editar leis e emendas constitucionais ainda que contrárias às decisões do Supremo Tribunal Federal. Porém, há que se reconhecer, nesta competência congressual, as limitações comuns do processo legislativo.
Resumindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, Márcio André Lopes Cavalcante[8] aduz o seguinte:
No caso de reversão jurisprudencial (reação legislativa) proposta por meio de emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá nas restritas hipóteses de violação aos limites previstos no art. 60, e seus §§, da CF/88. Em suma, se o Congresso editar uma emenda constitucional buscando alterar a interpretação dada pelo STF para determinado tema, essa emenda somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender uma cláusula pétrea ou o processo legislativo para edição de emendas.
No caso de reversão jurisprudencial proposta por lei ordinária, a lei que frontalmente colidir com a jurisprudência do STF nasce com presunção relativa de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente se afigura legítima.
Assim, é possível concluir que, ainda que amplamente aceita e, inclusive, necessária, a reação legislativa possui limitações. Sendo ela exercida por meio de uma emenda constitucional, faz-se mister a observância das disposições do artigo 60 e parágrafos da Constituição Federal[9]. Em se tratando de lei, necessário respeitar as imposições do processo legislativo e ainda a exposição de motivos suficientes a demonstrarem que o precedente criado pela Corte Suprema naquela temática não mais deve prevalecer.
4.COMPETÊNCIA PARA DAR A ÚLTIMA PALAVRA NA INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
A tese de reversão legislativa traz à baila um debate recorrente no que tange a qual órgão teria a última palavra em se tratando da interpretação do texto constitucional. Noutros termos, deveria prevalecer a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade de uma lei ou a nova lei ou emenda constitucional criada pelo Congresso Nacional?
Bernardo Gonçalves Fernandes, ao tratar sobre o tema, cita a doutrina de Conrado Hübner Mendes, professor da USP, acerca dos diálogos institucionais[10]:
Segundo Conrado Hubner, “diálogo institucional” diz respeito a um modo de compreender, interpretar e aplicar o processo constitucional.
Nesse sentido, nós tradicionalmente acostumamos a trabalhar a separação de poderes como uma divisão de funções que leva, em último grau, na decisão de uma corte constitucional que atua como guardiã da constituição. Com isso, o circuito decisório, teria um ponto final, ou seja, uma última palavra. O autor defende a tese da ‘última palavra provisória’ como uma ruptura com essa perspectiva clássica.
Para o professor da USP, o debate teórico que se preocupa com a pergunta de quem deve ter a última palavra está preso a um código binário: a) alguns defendem que a última palavra deveria ser da corte (e as justificativas dessa posição variam); b) outros defendem que deveria ser do parlamento (a instituição democrática por excelência, conforme um certo consenso histórico que impregnou nossa forma de entender a democracia).
No mesmo sentido defendido pelo mencionado autor, o Ministro Luiz Fux, em seu voto de relatoria da ADI 5105/DF[11], defende que
o nosso desenho institucional [...] outorga ao Supremo Tribunal Federal a tarefa de definir a última palavra acerca do conteúdo da Carta Política. Deveras, enquanto “guardião da Constituição” (CRFB/88, art. 102, caput), à Suprema Corte é confiada a faculdade de invalidar, invocando o texto constitucional, qualquer lei ou ato normativo emanado das instâncias políticas majoritárias. Noutros termos, o Supremo detém a última palavra no âmbito do Estado Democrático de Direito, máxime porque seus pronunciamentos não se sujeitam – repiso, por um viés formal – a qualquer controle democrático. Em sede doutrinária, o Ministro Gilmar Mendes perfilhou similar entendimento, aduzindo que “(...) as Cortes Constitucionais estão inegavelmente imunes a qualquer controle democrático. Essas decisões podem anular, sob a invocação de um direito superior que, em parte, apenas é explicitado no processo decisório, a produção de um órgão direta e democraticamente legitimado.” (MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: Hermenêutica Constitucional e Revisão dos Fatos e Prognoses Legislativos pelo Órgão Judicial. In.: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, Celso Bastos Editor, 1998, p. 463).
[...] Sucede que, a despeito desse arranjo, não se pode advogar que o arquétipo constitucional pátrio erigiu um modelo de supremacia judicial em sentido forte (ou material) [...]
Por uma vertente descritiva, há diversos precedentes de reversão legislativa a decisões do Supremo Tribunal Federal, seja por emenda constitucional, seja por lei ordinária, que per se desautorizariam a concepção de última palavra definitiva. Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na realidade interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e, por vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual, desde que, é claro, observados os balizamentos constitucionais.
Dessa forma, observa-se que, não obstante tenha o próprio ordenamento jurídico constitucional brasileiro, a priori, designado o Supremo Tribunal Federal como detentor da “última palavra” na interpretação do texto da Carta Magna, a própria Corte Superior reconhece não possuir a última palavra definitiva, mas tão somente provisória.
É admitida e necessária à evolução do conteúdo do texto constitucional e à sua adequação com a realidade social e contextos econômico e político a reversão legislativa, cabendo ao Supremo Tribunal Federal, em observância do sistema de freios e contrapesos, a análise da validade jurídico-constitucional de tais reversões.
5.ESTUDO DE CASOS
O Supremo Tribunal Federal já julgou casos de grande repercussão nos quais debateu a matéria ora em análise. Um deles é a já mencionada ADI 5105/DF, ajuizada pelo partido Solidariedade (SDD) contra os artigos 1º e 2º da Lei 12.875/2013, que estabelecem limitações a legendas criadas após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados.
A aludida lei federal foi editada pelo Congresso Nacional no intuito de superar o precedente fixado pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4.430 e 4.795. Uma vez que a tentativa de reversão se deu por meio da edição de uma lei ordinária, esta nasceu com presunção de inconstitucionalidade, competindo ao Congresso Nacional comprovar que as premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se fundou a decisão do Supremo Tribunal Federal no passado não mais subsistem, no exercício de verdadeira mutação constitucional pela via legislativa[12].
Contudo, conforme entendeu a Corte Suprema, a exposição de motivos feita pelo Parlamento no momento de elaboração do projeto de lei não foi capaz de infirmar as teses jurídicas anteriormente fixadas pelo Tribunal e, portanto, se revelou inapta para legitimar a reversão da jurisprudência.
Naquela oportunidade, o Ministro Luiz Fux[13] asseverou, em seu voto de relatoria, que
não se afigura legítima a edição de leis ordinárias que colidam frontalmente com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal Federal (leis in your face), sem que o legislador se desincumba do ônus de trazer aos autos novos argumentos, bem como de demonstrar o desacerto do posicionamento da Corte em razão de mudanças fáticas ou axiológicas, tomando como parâmetro, por óbvio, a mesma norma constitucional.
[...] Reitera-se ser possível, em tese, que o legislador ordinário, enquanto não atingido pelos efeitos vinculantes, proceda a correções jurisprudenciais, mas, precisamente porque em oposição ao posicionamento da Corte, nasce com presunção relativa de inconstitucionalidade.
Outro exemplo mais recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal é o da ADI 4983/CE[14], ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra a Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado. À decisão do STF pela procedência da ação, publicada no DJE no dia 27/04/2017, seguiu-se a edição da EC 96 pelo Congresso Nacional, em 07/06/2017, declarando a legalidade da prática.
A discussão que se iniciou em torno desta temática diz respeito ao conflito entre o princípio da proteção do meio ambiente lato sensu e o da liberdade das manifestações culturais e qual ponderação deve prevalecer, se a do Supremo Tribunal Federal na ADI 4983/CE ou do Congresso Nacional na EC 96/2017.
Para a Corte Suprema, naquele caso deveria prevalecer a norma constitucional exposta no inciso VII, §1º do artigo 225 da Constituição Federal que veda práticas que submetam os animais a crueldade. Isso porque a expressão “crueldade” constante de sua parte final foi entendida como englobante da tortura e dos maus-tratos sofridos pelos bovinos durante a prática da vaquejada, de modo a tornar intolerável esta conduta.
Assim, mesmo tendo reconhecido a importância da vaquejada como manifestação cultural regional, esse fator não seria hábil a tornar a atividade imune aos outros valores constitucionais, em especial à proteção ao meio ambiente. Eis a ementa do julgado:
EMENTA: PROCESSO OBJETIVO – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ATUAÇÃO DO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO. Consoante dispõe a norma imperativa do § 3º do artigo 103 do Diploma Maior, incumbe ao Advogado-Geral da União a defesa do ato ou texto impugnado na ação direta de inconstitucionalidade, não lhe cabendo emissão de simples parecer, a ponto de vir a concluir pela pecha de inconstitucionalidade. VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada.[15]
Já o Congresso Nacional, pouco mais de um mês depois da decisão do Supremo Tribunal Federal, manifestou-se em posição diametralmente oposta, definindo na EC 96/2017, que acrescenta o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal, que dentro do conceito de “crueldade” previsto no inciso VII do §1º do mesmo artigo não se enquadram as práticas desportivas que utilizem animais e configurem manifestações culturais:
§7º: Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.
É certo, como visto, que, em se tratando de reversão legislativa de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal por meio da edição de emendas constitucionais, a análise de sua validade jurídico-constitucional é diversa dos casos que envolvem lei ordinária.
Somente será possível a invalidação do ato legislativo do Congresso Nacional, nestes casos, nas restritas hipóteses de violação aos limites previstos no já mencionado artigo 60 e parágrafos da Constituição Federal.
Isso porque o Parlamento está a alterar o bloco de constitucionalidade no qual se baseou a Corte Suprema ao proferir a decisão em sede de ADI. Uma vez alterado o próprio parâmetro amparador da jurisprudência não há mais que se falar em necessidade de demonstração de superação da tese, pois não se trata mais de embasamento jurídico semelhante.
Não obstante, permanece um questionamento. Os princípios da proteção do meio ambiente e da liberdade das manifestações culturais continuam ambos presentes no texto constitucional. O Supremo Tribunal Federal entendeu pela prevalência do primeiro no caso concreto, enquanto para o Congresso Nacional o segundo deve preponderar. Contudo, qual entendimento deve prevalecer?
A resposta deve ser encontrada na já mencionada teoria do diálogo institucional, a qual busca, por meio do embate entre as instituições, não o enfraquecimento destas, mas o fortalecimento recíproco e a concretização da democracia.
Independentemente de a qual instituição seja atribuída a última palavra na interpretação constitucional, Parlamento ou Corte Constitucional, por ser aquela provisória e precária não será terminativa, pelo contrário, configurará o início ou mesmo a continuidade de uma nova rodada de diálogos entre os Poderes, o que acaba por fomentar a legitimidade democrática das instituições e das decisões por elas tomadas[16].
Fato é que a proteção dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal não deve ser realizada por apenas uma instituição. Uma postura adotada por qualquer delas deve ser interpretada como uma rodada procedimental em um debate interinstitucional amplo. Nas palavras conclusivas de Bernardo Gonçalves Fernandes:
Do exposto, percebe-se que a valorização dos diálogos constitucionais pode se fundamentar na ampliação da qualidade do debate a respeito dos direitos que possivelmente propicia a existência de um sistema em que tais questões não restem por ser resolvidas em apenas uma instituição. Isso porque cada instituição, como é o caso da Corte e dos Parlamentos, possuem dinâmicas diversas de funcionamento, embora discutam efetivamente sobre as mesmas temáticas constitucionais, o que acarreta no surgimento de perspectivas distintas quando da interação requerida. Em razão disso, quando interagem por meio de um diálogo institucional (constitucional), possibilitam o fornecimento mútuo de perspectivas distintas quanto às mesmas questões, exemplificadas, na espécie, pelo debate a respeito de direitos. Podem, reciprocamente, clarear “pontos cegos” das instituições com as quais interagem. Justamente por isso, a defesa aqui é a de qualquer tipo de diálogo (tese dos diálogos em sentido amplo) “possa funcionar” como fomentador (possibilitador) da defesa e do desenvolvimento de direitos.
No caso específico da vaquejada, a possibilidade de integração e de continuidade do diálogo foi aberta em virtude do ajuizamento da ADI 5728 que questiona a Emenda Constitucional 96/2017 sob o argumento de violação da cláusula pétrea consubstanciada no direito fundamental de proteção aos animais.
Resta-nos aguardar a decisão do Supremo Tribunal Federal para saber se ele modificará seu entendimento anterior baseando-se nos argumentos adicionais fornecidos pelo Congresso Nacional ou se manterá seu posicionamento, com a consequente declaração de inconstitucionalidade da EC 96/2017, dando ensejo a mais uma rodada de debates sobre o tema.
6.CONCLUSÃO
Diante de todos os argumentos esposados acima, é possível concluir que a razão pela qual o texto constitucional não estendeu ao Poder Legislativo os efeitos vinculantes das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade foi para manter aberta a permanente possibilidade de correções recíprocas no campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo.
É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma instituição, seja do Judiciário ou do Legislativo, a atribuição de dar a última palavra definitiva ou, noutros termos, o direito de errar por último.
Cada um dos intérpretes da Constituição deve estar aberto à interação e ao debate, podendo e devendo refletir sobre as ponderações e argumentos suplementares apresentados pelos demais, bem como debatidos pela opinião pública, para que a tarefa de interpretação do texto constitucional seja sempre evolutiva e busque a integração social e a realização dos anseios da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Dizer o Direito. Disponível em http://www.dizerodireito.com.br/2015/10/superacao-legislativa-da-jurisprudencia.html. Acesso em 21 de julho de 2017.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Dizer o Direito. Disponível em http://www.dizerodireito.com.br/2017/06/breves-comentarios-ec-962017-emenda-da_7.html. Acesso em 21 de julho de 2017.
DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 40ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
GONÇALVES, Eduardo. Site do Eduardo Gonçalves. Disponível em http://www.eduardorgoncalves.com.br/2017/02/vaquejada-reacao-legislativa-ativismo.html. Acesso em 21 de julho de 2017.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.
MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.
MENDES, Ferreira Gilmar; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
[1] Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão. Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
[2] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 374.
[3] Ibidem. p. 374.
[4] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Dizer O Direito. Disponível em http://www.dizerodireito.com.br/2015/10/superacao-legislativa-da-jurisprudencia.html. Acesso em 21 de julho de 2017.
[5] LENZA, Pedro, op. cit. p. 374.
[6] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. op. cit.
[7] LENZA, Pedro. op. cit. p. 374/375.
[8] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. op. cit.
[9] Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. § 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. § 2º A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. § 3º A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
[10] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1.601 apud HUBNER, Conrado Mendes. Direitos Fundamentais; Separação de Poderes e Deliberação. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011
[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5105/DF. Rel. Ministro Luiz Fux. Tribunal Pleno. Julgado em 01/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 15-03-2016 PUBLIC 16-03-2016. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10499116.
[12] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. op. cit.
[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5105/DF Rel. Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 01/10/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 15-03-2016 PUBLIC 16-03-2016. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10499116.
[14] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 4983, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 06/10/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-087 DIVULG 26-04-2017 PUBLIC 27-04-2017. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12798874
[15] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 4983, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 06/10/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-087 DIVULG 26-04-2017 PUBLIC 27-04-2017. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12798874
[16] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. op. cit., p. 1.605.
bacharel em direito pela UFMG e analista judiciário do TST
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, Izabela Tângari. Ativismo congressual no exercício da reversão legislativa: Limites e prerrogativas do Congresso Nacional na superação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2023, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/64293/ativismo-congressual-no-exerccio-da-reverso-legislativa-limites-e-prerrogativas-do-congresso-nacional-na-superao-da-jurisprudncia-do-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
Precisa estar logado para fazer comentários.