Acórdão: Apelação Cível n. 2004.036079-5, de Anchieta.
Relator: Des. Salete Silva Sommariva.
Data da decisão: 14.11.2006.
Publicação: DJSC Eletrônico n. 119, edição de 08.01.2007, p. 28.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – MANUTENÇÃO DE POSSE – SERVIDÃO NÃO APARENTE – INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 415 DO STF – INEXISTÊNCIA DE ATO CONSTITUTIVO E REGISTRO EM CARTÓRIO – SERVIDÃO INEXISTENTE – TERRENO ACIDENTADO, MAS COM SAÍDA PARA A VIA PÚBLICA – ENCRAVAMENTO INOCORRENTE – PASSAGEM FORÇADA NÃO CONFIGURADA – UTILIZAÇÃO DE ATRAVESSADOURO POR MERA TOLERÂNCIA DO PROPRIETÁRIO – INEXISTÊNCIA DE POSSE – ART. 1.208, CC – AUSÊNCIA DE REQUISITO INDISPENSÁVEL À MANUTENÇÃO.
Não se tratando de servidão tornada aparente pela natureza das obras nela realizadas, ao seu reconhecimento e conseqüente proteção possessória não se aplica o disposto na Súmula 415 do Supremo Tribunal Federal, sendo indispensável a existência de ato constitutivo registrado em cartório.
Havendo outro acesso à via pública que não compromete a utilização do imóvel, porquanto tão dificultoso quanto o caminho habitualmente utilizado, o prédio não pode ser considerado encravado, impossibilitando, por conseguinte, o reconhecimento da passagem forçada.
Assim, não estando demonstrada a existência da servidão, tampouco da passagem forçada – atos que, em tese, atestariam a posse daqueles que se aproveitam do atravessadouro –, inarredável a conclusão de que a utilização do acesso decorre da tolerância dos proprietários, inviabilizando, nos termos do art. 1.208 do Código Civil, a proteção possessória.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível n. 2004.036079-5, da comarca de Anchieta, em que são apelantes LINO JACINTO LAZZARI e OUTRO e apelados JOÃO STOCCO e OUTRO.
ACORDAM, em Terceira Câmara Civil, por votação unânime, negar provimento à apelação.
Custas na forma da lei.
I - RELATÓRIO:
Na comarca de Anchieta, LINO JACINTO LÁZZARI e TEREZINHA LÁZZARI ajuizaram ação de reintegração de posse em face de JOÃO STOCCO e GEMA STOCCO, ao argumento de que, em abril de 2003, a servidão de passagem existente no terreno dos demandados e que dá acesso ao seu imóvel foi obstruída mediante a colocação de um palanque com portão, destruição das cercas marginais e preparação do terreno para a construção de uma galpão. Requereram, por tal motivo, a concessão de medida liminar e, ao final, a manutenção definitiva na posse da servidão que dá acesso ao seu imóvel (fls. 02/07).
Em audiência de justificação prévia (fl. 36), após a inquirição de duas testemunhas arroladas pelos autores (fls. 37/38), a liminar manutenitória foi deferida, determinando-se, em conseqüência, que os réus se abstivessem de impedir o uso do acesso, sob pena de multa diária no valor de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais).
Devidamente citados e intimados acerca da decisão liminar, os demandados ofereceram resposta sob a forma de contestação, aduzindo, em síntese, que a servidão de passagem mostrada nas fotografias nada mais é do que uma via utilizada pelos próprios réus para acessar a sua lavoura. Salientaram que a alegada servidão é apenas a continuação de uma invernada existente apenas no imóvel dos autores, o qual, por ser cortado por uma via pública, não pode ser considerado encravado. Encerraram asseverando que a alegada servidão encontra-se abandonada há mais de 08 (oito) anos, não tendo o autor LINO LÁZZARI, na condição de Chefe de Obras do Município, disponibilizado qualquer máquina municipal para arrumá-la. Pugnaram, por tais motivos, pela improcedência do pedido inicial e conseqüente revogação da liminar deferida (fls. 41/49).
Em réplica, os autores se limitaram a impugnar os termos da peça de resposta, requerendo a realização de prova pericial e oitiva de testemunhas (fls. 63/64).
No ato de fl. 80, foram ouvidas quatro testemunhas arroladas pelos autores e cinco pelos réus, após o que foi indeferida a realização da prova pericial, determinando-se a expedição de ofícios à FATMA e ao IBAMA para esclarecer dúvidas pendentes sobre o encravamento do imóvel e a possibilidade de abertura de outra passagem pelo terreno dos autores sem dano considerável ao meio ambiente.
Após a apresentação do parecer de fls. 99/100, foi realizada inspeção judicial no imóvel, lavrando-se o termo de fls. 107/108.
Por intermédio da sentença de fls. 109/116, a juíza a quo julgou improcedente o pedido inicialmente formulado, tornando sem efeito a liminar concedida e condenando os autores ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios arbitrados em R$ 1.000,00 (um mil reais).
Inconformados, os demandantes interpuseram apelação, asseverando que, ao contrário do que ficou consignado na sentença, o imóvel de sua propriedade é encravado, porquanto impossível acessá-lo por outro local que não seja a servidão indicada nas fotografias que acompanham a inicial. Informaram que a servidão é indispensável ao transporte de alimento para o gado e implementos para banhá-los o qual é realizado através de trator com “carretinha”. Salientaram que o péssimo estado da servidão deve-se ao fato de os réus terem impedido o acesso de veículos ao local. Requereram, com base nisso, o provimento do apelo para, reformando a sentença hostilizada, tornar definitiva a liminar concedida (fls. 118/122).
Os réus apresentaram seus contra-substratos recursais às fls. 129/133, pugnando pelo desprovimento do recurso e conseqüente manutenção do decisum vergastado.
II - VOTO:
Estão presentes os pressupostos de admissibilidade do recurso, ensejando, pois, decisão de mérito a seu respeito.
Do que se infere dos autos, os apelantes pretendem ver reformado o pronunciamento de primeiro grau por intermédio do qual foi julgada improcedente a tutela possessória do caminho que atravessa as terras pertencentes aos apelados (lote n. 304), embasando sua pretensão na existência de uma servidão de passagem neste local, bem como no encravamento de seu imóvel, fazendo-se necessária a passagem forçada por sobre o terreno dos recorridos.
Nenhuma das situações, todavia, restou evidenciada nos autos, impondo-se a manutenção da sentença hostilizada.
Aprioristicamente, a leitura do caderno processual revela inexistir controvérsia acerca do fato de que os apelantes se valiam da passagem havida dentro do terreno dos recorridos para chegar ao seu imóvel, de modo que a existência, ou não, de posse fica condicionada à aferição da natureza jurídica do instituto sob enfoque. Ou seja, o reconhecimento da posse e a sua conseqüente manutenção, caso comprovada a turbação, depende do enquadramento do caminho utilizado pelos recorrentes como servidão, passagem forçada ou ato de mera tolerância ou permissão.
Acerca da distinção entre servidão e passagem forçada, SILVIO RODRIGUES assevera o seguinte:
“A passagem forçada é direito de vizinhança, enquanto a servidão de caminho, porventura concedida pelo proprietário do fundo serviente ao dono do prédio dominante, constitui direito real sobre coisa alheia.
No primeiro caso surge uma limitação ao direito de propriedade, decorrente da lei e imposta no interesse social, para evitar que um prédio fique inexplorado ou sem possibilidade de ser usado, em face de ser impossível o acesso a ele. No outro, na hipótese de servidão, a limitação à plenitude do domínio decorre da vontade das partes, e não da lei, e visa aumentar as comodidades do prédio dominante em detrimento do serviente.
É verdade que em geral os direito de vizinhança são recíprocos, o que não parece ocorrer na passagem forçada. Aliás, ESPÍNDOLA, apoiado em JOSSERAND, mostra que alguns direitos de vizinhança se apresentam como verdadeiras servidões legais de interesse privado, e exemplifica, justamente, com a passagem forçada. Aí existe um prédio dominante e outro serviente.
Isso, entretanto, não extingue a idéia de reciprocidade, nem tira da passagem forçada a natureza de direito de vizinhança. A reciprocidade no direito de vizinhança significa que há uma perspectiva legal de obter determinada vantagem, desde que o prédio se encontre em determinada situação e vice-versa. O prédio encravado pode obter saída para a via pública, da mesma maneira que deve dar ao seu vizinho se este estiver encravado.
A servidão, genericamente, só se constitui após a inscrição no Registro de Imóveis (CC, art. 1.227), enquanto a passagem forçada prescinde do registro. Aliás, PONTES DE MIRANDA entende que, se houve registro, há servidão, e não passagem forçada.” (Direito civil – direito das coisas. 28.ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, vol. 5, 2003, p. 140/141)
In casu sub examine, a despeito de ter sido mencionado na peça de intróito que a pretensão manutenitória se refere a uma “servidão” localizada no terreno dos réus, a análise dos documentos entranhados ao presente cartapácio revela que de servidão, o atravessadouro mencionado na inicial, não se trata. Isto porque, consistindo-se em direito real sobre a coisa, a constituição da servidão deve observar a forma solene, consoante determinam o art. 1.227 e o art. 1.378, ambos, do Código Civil. Senão, vejamos:
“Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (art. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.”
“Art. 1.378. A servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e grava o prédio serviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subseqüente registro no Cartório de Registro de Imóveis.”
A exegese dos dispositivos supramencionados deve ser realizada sistematicamente ao que dispõe o art. 108 do Código Civil de modo a dispensar a escritura pública nos casos em que a servidão tiver valor inferior a 30 (trinta) salários mínimos. Todavia, à míngua de prova dando conta de que o atravessadouro reclamado tem valor menor do que o limite legal – ônus que competia aos autores na forma do art. 333, inciso I do Código de Processo Civil –, deve ser aplicada a regra geral, exigindo-se, para o reconhecimento da servidão, o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Se assim o é, inexistindo ato de constituição registrado em cartório, o atravessadouro descrito na petição inicial não pode ser considerado servidão.
Desse entendimento, aliás, não destoa a doutrina de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, verbis:
“As servidões podem constituir-se entre vivos ou causa mortis. No primeiro caso, deve o ato revestir a forma pública se o valor exceder o limite legal, ou por instrumento particular em caso contrário (Código Civil, art. 108).
No segundo, a vontade criadora está condicionada à observância dos requisitos sem os quais o testamento não é válido.
(...)
O ato constitutivo deve ser levado a registro. Sendo não aparente, somente se adquire pelo registro do título (conforme enunciava o art. 697 do Código Civil de 1916), ou pela sua inscrição (Regulamento dos Registros Públicos, Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 167, nº I, alínea 6). Nesta diversidade pronunciam-se os civilistas e tratadistas do Registro público, sustentando que a referência às servidões não aparentes na forma excludente do dispositivo legal revogado tem apenas o sentido de acentuar que estas não se adquirem por usucapião. Mas que, tanto a servidão não aparente quanto à aparente, aplicam-se as regras comuns do Registro de Imóveis, uma vez que a sua constituição é sempre uma alienação parcial do direito de propriedade (v. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 167, nº 6)”. (Instituições de direito civil – direitos reais. 18.ed., Rio de Janeiro: Forense, vol. IV, 2004, p. 280).
Outrossim, inviável a aplicação da Súmula 415 do Supremo Tribunal Federal à espécie, porquanto as fotografias de fls. 13/19 dão conta de que o caminho utilizado pelos apelantes e cuja manutenção de posse nestes autos se pretende é bastante dificultoso, inclusive dando sinais de que a sua utilização é deveras esporádica, pois, além da ausência de obras de conservação, há grande quantidade de mato e pedras em toda a sua extensão. Ou seja, não pode ser considerada uma servidão aparente.
Não sendo possível o enquadramento do caminho utilizado pelos autores como servidão, porquanto, como já dito, inexistente ato de constituição, cumpre averiguar se o atravessadouro em questão constitui passagem forçada.
Neste vértice, o art. 1.285, caput do Código Civil disciplina o instituo da passagem forçada, dispondo que “o dono do prédio que não tiver acesso à via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário”.
Referido instituto constitui limitação legal do direito de propriedade, decorrente das relações de vizinhança, que se impõe em favor de uma situação prevista em lei, ou seja, encravamento do prédio. Esse direito é assegurado ao proprietário sem acesso para a via pública, fonte ou porto, tendo por fundamento, a um só tempo, a solidariedade que deve presidir as relações de vizinhança e a necessidade econômica de se aproveitar devidamente o prédio encravado. O interesse social exige se estabeleça passagem para que o imóvel não se torne improdutivo.
Sendo assim, ainda que esta Câmara já tenha se posicionado no sentido de ser dispensável o encravamento absoluto do imóvel ao reconhecimento da passagem forçada (vide AC n. 2004.020961-4, de Palmitos, Rel. Des. Sérgio Izidoro Heil, j. em 04.05.2006), vê-se com clareza que, sob o fundamento de se tratar de passagem forçada, o pedido de manutenção de posse não poderá prosperar, conquanto, a despeito da inconclusividade do parecer técnico de fls. 99/100, o termo de vistoria de fls. 107/108 deixa evidente a existência de outras saídas para a via pública com condições de utilização semelhantes a passagem descrita na inicial.
A propósito, colhe-se do escólio jurisprudencial desta Corte:
“(...) DIREITO À PASSAGEM FORÇADA. ENCRAVAMENTO INEXISTENTE. NÃO RECONHECIMENTO.
Existindo outro acesso à via pública, ainda que mais incômodo do que aquele que atravessa as terras lindeiras, inviável o reconhecimento do direito à passagem forçada.” (AC n. 1999.001592-0, de Criciúma, Rel. Desª Maria do Rocio Luz Santa Ritta, j. em 31.08.2005)
Desta maneira, existindo outro acesso à via pública, ainda que mais desconfortável em relação àquele que atravessa as terras dos apelados, inviável o reconhecimento ao direito à passagem forçada.
Desta forma, não se caracterizando como servidão, tampouco como passagem forçada o caminho existente no terreno dos recorridos, presume-se que a sua utilização como acesso às terras dos apelantes se dava mediante permissão dos proprietários que, por mera liberalidade, toleravam a situação. Ocorre que, de conformidade com o disposto no art. 1.208 do Código Civil, atos dessa natureza não induzem posse, inviabilizando, por conseguinte, a almejada tutela possessória, uma vez que ninguém pode ser manutenido naquilo que não detém.
A esse respeito, o nosso tribunal já deixou assentado o seguinte:
"POSSESSÓRIA - REINTEGRAÇÃO DE POSSE - CAMINHO POR PROPRIEDADE VIZINHA - AUSÊNCIA DE ENCRAVAMENTO LEGAL - FALTA DE ACESSO AOS FUNDOS DO IMÓVEL DOS AUTORES - PROVA COLIDENTE - SITUAÇÃO, ADEMAIS, PROVOCADA - SERVIDÃO INEXISTENTE - MERA TOLERÂNCIA DO PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL QUE SE QUER SERVIENTE - AMPARO POSSESSÓRIO NEGADO - DECISUM CONFIRMADO - INSURGÊNCIA RECURSAL DESPROVIDA.
- A prova acerca da existência de servidão ou de passagem forçada somente autorizará o amparo possessório, na hipótese de obstaculização do respectivo uso, se dela exsurgir o convencimento da efetiva restrição a ser arcada pela propriedade lindeira. Acaso não produzida prova desse quilate, a servidão ou a passagem forçada impõem-se tidas como inexistentes, uma vez que elas não se presumem. Inversamente, a presunção legal é a total autonomia e desoneração do imóvel que se quer serviente.
- Evidenciando os autos que a utilização, pelos clamantes da proteção interdital, de estrada que passa pelo imóvel vizinho, expressa tão-somente mera tolerância dos proprietários deste, com essa utilização vinculando-se à permissão dos mesmos, gerado não estará qualquer direito em prol dos invocantes da tutela possessória. Nesse contexto, desimportando o tempo pelo qual tal via vem sendo utilizada, ao seu proprietário é facultado fechá-la a qualquer instante, sem que isso implique em qualquer agressão à posse do utilizante.” (AC n. 88.085517-1 (50.084), de Timbó, Rel. Des. Trindade dos Santos).
Destarte, não comprovada a posse dos apelantes sobre o atravessadouro localizado nas terras dos recorridos, uma vez que a sua utilização se dava por mera tolerância dos proprietários do imóvel, declara-se não preenchido o requisito do art. 928, inciso I do Código de Processo Civil, motivo pelo qual nega-se provimento ao apelo, mantendo-se incólume a sentença hostilizada.
III - DECISÃO:
Nos termos do voto da relatora, decide a Câmara, à unanimidade, negar provimento ao recurso.
Participaram do julgamento os Exmos. Srs. Desembargadores Fernando Carioni e Marcus Tulio Sartorato.
Florianópolis, 14 de novembro de 2006.
Fernando Carioni
PRESIDENTE COM VOTO
Salete Silva Sommariva
RELATORA
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