Resumo: Este artigo explora as múltiplas formas de violação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil, considerando o entrelaçamento entre racismo, sexismo e a histórica marginalização dessa população. A partir de uma análise interseccional, fundamentada em teóricas contemporâneas como Kimberlé Crenshaw, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, investiga-se a exclusão dessas mulheres em diversos âmbitos, com ênfase em questões como violência de gênero, racismo estrutural e barreiras no acesso à saúde e à justiça. O estudo também analisa os limites das políticas públicas atuais e sugere a necessidade de reformas profundas nas estruturas sociais e jurídicas para garantir efetivamente os direitos dessas mulheres. A metodologia aplicada baseia-se na pesquisa bibliográfica e documental, com enfoque em dados recentes de órgãos como o IBGE, IPEA e Ministério da Justiça.
Palavras-chave: Direitos Humanos, Mulheres Negras, Racismo, Interseccionalidade, Políticas Públicas, Violência de Gênero.
1. Introdução
A Constituição Federal de 1988 consagra a igualdade de todos perante a lei, assegurando direitos fundamentais sem distinção de qualquer natureza (BRASIL, 1988). No entanto, essa promessa constitucional de igualdade formal contrasta com a dura realidade vivida pelas mulheres negras e pardas no Brasil. Esse grupo, historicamente marginalizado, enfrenta não apenas as consequências do racismo estrutural, mas também as mazelas do sexismo, resultando em um conjunto complexo de opressões que afetam negativamente seu acesso aos direitos humanos mais básicos.
Este artigo tem como objetivo explorar as violações sistemáticas dos direitos humanos sofridas por mulheres negras e pardas no Brasil. Para tanto, adota-se uma perspectiva interseccional, conforme elaborada pela teórica Kimberlé Crenshaw (1989), que permite compreender como raça, gênero e classe social interagem para produzir formas de subordinação múltiplas e entrelaçadas. A interseccionalidade torna-se essencial para a análise da situação dessas mulheres, uma vez que suas experiências não podem ser adequadamente entendidas se os fatores de raça e gênero forem tratados de forma isolada.
A pesquisa que se segue está embasada em um estudo teórico e documental, com a utilização de fontes jurídicas, como a legislação brasileira e tratados internacionais de direitos humanos, bem como dados estatísticos atualizados que revelam a disparidade racial e de gênero no Brasil. Esse enfoque não se limita a uma revisão bibliográfica, mas visa contribuir para o avanço da doutrina jurídica e para o desenvolvimento de estratégias legais e políticas públicas mais eficazes na proteção dos direitos das mulheres negras e pardas.
2. Introdução ao Racismo Estrutural e Violência de Gênero no Contexto Brasileiro
Ao examinarmos a situação das mulheres negras e pardas no Brasil sob a ótica da interseccionalidade — conceito desenvolvido por Kimberlé Crenshaw (1989) —, percebemos que a combinação de raça e gênero potencializa as formas de opressão que estas mulheres enfrentam. A interseccionalidade demonstra como as opressões não atuam de maneira isolada, mas de forma entrelaçada, criando um ambiente de vulnerabilidade que coloca as mulheres negras em desvantagem tanto em termos de oportunidades econômicas quanto de acesso à justiça e à proteção social. A interseccionalidade é, assim, crucial para entender como as mulheres negras no Brasil sofrem formas agravadas de violência e exclusão em comparação a outros grupos, inclusive outras mulheres.
O racismo estrutural no Brasil, aliado à violência de gênero, estabelece um ciclo de violação dos direitos humanos dessas mulheres, que se manifesta em múltiplos níveis — da violência física à violência simbólica e psicológica, passando pela exclusão econômica e social. De acordo com dados recentes, fornecidos pelo Atlas da Violência 2022 (IPEA, 2022), a taxa de homicídios de mulheres negras continua significativamente superior à de mulheres brancas. Em 2021, 68,7% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras (IPEA, 2022). Esses números evidenciam que o racismo, combinado com o sexismo, configura um sistema de opressão que coloca as mulheres negras em uma situação de maior vulnerabilidade em todos os aspectos da vida social e privada.
2.1 A Violência de Gênero e a Vulnerabilidade Racial: Intersecções que Potencializam Opressões
O conceito de violência de gênero abrange uma gama de práticas que vão desde a violência física e psicológica até a violência sexual e a violência institucional. No Brasil, as mulheres negras são desproporcionalmente impactadas por todas essas formas de violência, um reflexo da histórica marginalização racial e da persistência de uma cultura patriarcal que subordina as mulheres, especialmente aquelas pertencentes a minorias étnicas.
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, as mulheres negras são as maiores vítimas de violência doméstica e feminicídio no país. Em 2021, aproximadamente 61% dos casos de feminicídio envolviam mulheres negras (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022). Esses números são representativos da realidade brasileira, onde as mulheres negras estão mais expostas à violência física e à letalidade, e menos protegidas pelo sistema de justiça, o que se traduz em uma violação sistemática dos direitos humanos.
Além disso, o estigma racial agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade dessas mulheres. A socióloga brasileira Lélia Gonzalez (1984) argumenta que a sociedade brasileira atribui às mulheres negras papéis subalternos, perpetuando imagens estereotipadas e desumanizantes que reforçam sua exclusão. Segundo Gonzalez, "o racismo e o sexismo no Brasil combinam-se para colocar a mulher negra em uma posição de extrema vulnerabilidade, tanto na esfera pública quanto na esfera privada" (GONZALEZ, 1984, p. 83).
Esse processo de estigmatização também se reflete no mercado de trabalho, onde as mulheres negras e pardas são frequentemente relegadas a empregos precarizados e mal remunerados. De acordo com dados do IBGE (2022), as mulheres negras ganham, em média, 44% do salário de um homem branco no Brasil. Essa desigualdade salarial se agrava pela falta de políticas públicas que promovam a inclusão efetiva dessas mulheres no mercado de trabalho, perpetuando um ciclo de pobreza que aumenta sua exposição à violência e à vulnerabilidade social.
2.2 Racismo Institucional e a Falta de Acesso à Justiça
O racismo institucional é uma das formas mais perniciosas de exclusão enfrentadas pelas mulheres negras no Brasil. Esse conceito refere-se à maneira como as instituições do Estado, incluindo o sistema judiciário e as forças de segurança pública, reproduzem e legitimam práticas discriminatórias que afetam negativamente os grupos racializados. No caso das mulheres negras, o racismo institucional se manifesta em uma série de práticas, desde a falta de proteção policial até a dificuldade de acesso a serviços de saúde e justiça.
Um estudo publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) revela que as mulheres negras têm menos probabilidade de denunciar crimes de violência doméstica, em grande parte devido à falta de confiança nas instituições policiais e judiciais. Isso se deve ao fato de que, historicamente, essas instituições têm demonstrado um tratamento diferenciado e discriminatório em relação às mulheres negras. Muitas vezes, essas mulheres enfrentam descrença ou desvalorização de seus relatos quando buscam proteção ou assistência legal. Essa descrença é fruto de uma estrutura racista que não apenas desumaniza as mulheres negras, mas também legitima a violência contra elas como algo "naturalizado".
As falhas do sistema de justiça também são evidenciadas na forma como o encarceramento em massa afeta as mulheres negras. Dados do Infopen Mulheres (2021), um relatório do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), apontam que a maioria das mulheres encarceradas no Brasil são negras, representando cerca de 62% da população prisional feminina. Muitas dessas mulheres são presas por crimes de baixo impacto, como tráfico de drogas, e raramente têm acesso a uma defesa legal adequada. Isso demonstra que o racismo institucional não apenas falha em proteger as mulheres negras, mas também as coloca em risco adicional de criminalização e encarceramento.
Angela Davis (2016) afirma que o encarceramento de mulheres negras é uma extensão das formas históricas de controle social impostas à população negra desde o período colonial. Para ela, "a prisão se tornou a nova forma de manter o controle sobre as mulheres negras, da mesma forma que o patriarcado e o racismo as controlaram no passado" (DAVIS, 2016, p. 123). Essa perspectiva é corroborada por estudiosas brasileiras como Sueli Carneiro, que aponta que o Estado brasileiro historicamente tem sido um dos principais agentes de violência contra as mulheres negras, seja pela omissão ou pela ação repressiva.
2.3 Violência Reprodutiva e Desigualdades na Saúde Pública
Um dos aspectos mais cruéis da violação dos direitos das mulheres negras e pardas no Brasil é a violência reprodutiva, que se manifesta na falta de acesso a serviços de saúde de qualidade e no tratamento desumanizante recebido por essas mulheres nos hospitais e centros de saúde. De acordo com o Relatório sobre Racismo Institucional na Saúde (Ministério da Saúde, 2021), as mulheres negras são as maiores vítimas de mortalidade materna no Brasil, com uma taxa de mortalidade que é quase três vezes maior do que a de mulheres brancas.
O racismo na saúde pública se manifesta não apenas na falta de acesso a cuidados médicos, mas também no tratamento desigual durante o parto e o pré-natal. Pesquisas indicam que as mulheres negras são mais propensas a sofrer violência obstétrica, que pode incluir o desrespeito, a recusa de anestesia ou a realização de procedimentos médicos sem consentimento. Esse tipo de violência é mais uma forma de racismo institucional, que não reconhece as mulheres negras como sujeitos plenos de direitos e dignos de tratamento humano.
A antropóloga brasileira Rosana Heringer (2003) afirma que "a violência reprodutiva contra as mulheres negras é uma manifestação da naturalização do racismo nas instituições de saúde, que tratam essas mulheres como inferiores e menos dignas de cuidados" (HERINGER, 2003, p. 45). Essa discriminação no sistema de saúde é uma violação direta dos direitos reprodutivos, que são garantidos por tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), ratificada pelo Brasil.
2.4 Impactos da Exclusão Econômica e Social: A Perpetuação da Pobreza e Vulnerabilidade
O impacto do racismo estrutural e da violência de gênero não se limita ao âmbito privado; ele também perpetua a exclusão econômica e social das mulheres negras e pardas. De acordo com o IBGE (2022), as mulheres negras são as que mais sofrem com o desemprego e o subemprego no Brasil, o que as coloca em uma posição de extrema vulnerabilidade econômica. Isso é agravado pela falta de políticas públicas que promovam a inclusão social e econômica dessas mulheres, perpetuando um ciclo de pobreza que afeta gerações inteiras.
A socióloga Djamila Ribeiro (2019) argumenta que "a desigualdade econômica que afeta as mulheres negras é uma consequência direta da forma como o racismo e o sexismo se entrelaçam nas estruturas sociais e econômicas do Brasil" (RIBEIRO, 2019, p. 89). Ribeiro defende que a única forma de romper esse ciclo de pobreza é por meio de políticas interseccionais que considerem as necessidades específicas das mulheres negras e pardas, promovendo não apenas a igualdade formal, mas a justiça substancial.
3. O Limite das Políticas Públicas e a Necessidade de Reformas Estruturais para a Proteção dos Direitos das Mulheres Negras e Pardas no Brasil
3.1 Introdução: A Importância de Políticas Públicas Interseccionais
No Brasil, as políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos das mulheres e a eliminação das desigualdades raciais e de gênero têm se mostrado insuficientes, especialmente quando analisadas a partir da perspectiva das mulheres negras e pardas. Apesar de avanços significativos na legislação e na implementação de programas sociais, o impacto dessas medidas sobre a população feminina negra é limitado devido à falta de uma abordagem interseccional, que considere as particularidades de raça, gênero e classe. Este capítulo analisa os limites dessas políticas, destacando a necessidade de reformas estruturais e a adoção de políticas interseccionais para a efetiva proteção dos direitos humanos das mulheres negras e pardas.
A ausência de uma abordagem interseccional nas políticas públicas brasileiras resulta na perpetuação de desigualdades que afetam desproporcionalmente as mulheres negras. Conforme argumenta Kimberlé Crenshaw (1989), a interseccionalidade é uma ferramenta essencial para compreender como diferentes sistemas de opressão — como o racismo e o sexismo — interagem para criar experiências únicas de discriminação. No caso das mulheres negras, essas experiências são agravadas pela forma como as políticas públicas têm sido desenhadas de maneira fragmentada, incapazes de enfrentar as estruturas de exclusão que atravessam tanto o campo social quanto o econômico.
Neste capítulo, serão discutidas as falhas das principais políticas públicas e os desafios que elas enfrentam, como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) e programas de inclusão social. A partir da análise desses exemplos, argumenta-se que, sem reformas profundas nas estruturas institucionais e no desenho das políticas, o Brasil continuará a falhar na promoção dos direitos das mulheres negras, perpetuando, assim, a exclusão e a violação de seus direitos humanos.
3.2 A Lei Maria da Penha e suas Limitações para as Mulheres Negras
A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, é um marco no combate à violência doméstica no Brasil, tendo sido reconhecida internacionalmente por sua abrangência e eficácia potencial. A lei estabelece mecanismos importantes para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e punir seus agressores, oferecendo medidas protetivas de urgência e prevendo a criação de juizados especiais para lidar com os casos de violência doméstica e familiar. Contudo, mesmo sendo considerada um avanço importante, sua implementação tem se mostrado insuficiente para as mulheres negras, que continuam a enfrentar barreiras institucionais e sociais no acesso à justiça.
Estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) indicam que as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil, representando mais de 60% dos casos de violência letal contra mulheres. Entretanto, paradoxalmente, são também as que menos acessam os mecanismos de proteção previstos pela Lei Maria da Penha. Essa discrepância reflete uma falha estrutural na forma como a lei é implementada, já que o racismo institucional nas forças de segurança e no sistema de justiça limita o acesso dessas mulheres aos recursos que poderiam protegê-las da violência.
Sueli Carneiro (2003), uma das maiores pensadoras sobre feminismo negro no Brasil, argumenta que a Lei Maria da Penha não reconhece plenamente as especificidades da violência que atinge as mulheres negras, pois ignora as camadas de opressão racial e de classe que agravam suas situações de vulnerabilidade. Para Carneiro, a proteção contra a violência de gênero, tal como prevista na lei, não aborda adequadamente o impacto do racismo estrutural, que marginaliza essas mulheres e impede que elas busquem proteção de maneira eficaz: “A mulher negra vive uma situação de dupla marginalização, que muitas vezes não é reconhecida pelos sistemas de proteção estatais” (CARNEIRO, 2003, p. 85).
A ausência de uma abordagem interseccional na aplicação da Lei Maria da Penha também se reflete no tratamento desigual dado às vítimas negras pela polícia e pelo judiciário. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, muitas mulheres negras que tentam denunciar agressões relatam descrença por parte das autoridades policiais, que tendem a desvalorizar suas queixas ou retardar o encaminhamento de medidas protetivas. Esse problema é uma manifestação clara do racismo institucional, que afeta a eficácia da lei e coloca as mulheres negras em risco adicional de violência.
Além disso, o acesso geográfico e econômico às redes de proteção previstas pela Lei Maria da Penha é outro obstáculo para as mulheres negras, especialmente aquelas que vivem em áreas periféricas e rurais. A falta de infraestrutura adequada e de serviços especializados nesses locais dificulta a obtenção de ajuda, perpetuando a situação de vulnerabilidade dessas mulheres. Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022) mostram que as mulheres negras são as que mais residem em regiões marginalizadas e, consequentemente, têm menos acesso a serviços essenciais, como delegacias da mulher e centros de acolhimento.
Esses fatores demonstram que, apesar de seus méritos, a Lei Maria da Penha ainda não oferece uma proteção eficaz e equitativa para as mulheres negras. Sem uma reforma que considere as desigualdades estruturais de raça e classe, a violência contra essas mulheres continuará a ser negligenciada.
3.3 A Lei de Cotas e os Desafios da Inclusão Racial no Ensino Superior
Outro exemplo de uma política pública importante, mas limitada em sua capacidade de transformar a realidade das mulheres negras, é a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012). A lei prevê a reserva de vagas em instituições federais de ensino superior para estudantes oriundos de escolas públicas, de baixa renda, negros, pardos e indígenas. Desde a sua promulgação, a Lei de Cotas tem sido fundamental para o aumento do número de estudantes negros nas universidades brasileiras. Segundo o Censo da Educação Superior de 2021, o número de estudantes negros matriculados em instituições de ensino superior públicas dobrou na última década (INEP, 2021).
No entanto, quando se observa a inserção das mulheres negras no contexto universitário, percebe-se que os desafios vão além do acesso à educação superior. Embora a Lei de Cotas tenha proporcionado maior inclusão, as mulheres negras ainda enfrentam dificuldades para permanecer e concluir seus estudos, muitas vezes devido à precariedade das condições econômicas e à falta de apoio acadêmico e psicológico nas universidades. Além disso, a discriminação racial e de gênero continua presente no ambiente acadêmico, o que impede essas estudantes de se sentirem plenamente integradas e seguras.
A filósofa e ativista Djamila Ribeiro (2019) argumenta que, para que a Lei de Cotas seja verdadeiramente eficaz, é necessário que ela seja acompanhada de políticas de permanência que garantam o sucesso acadêmico dos cotistas. "A permanência é tão importante quanto o acesso", afirma Ribeiro, destacando que as mulheres negras, em particular, precisam de suporte financeiro, psicológico e pedagógico para superar as barreiras estruturais que enfrentam (RIBEIRO, 2019, p. 92). Sem essas políticas complementares, a Lei de Cotas corre o risco de se tornar uma solução incompleta para a desigualdade racial no ensino superior.
Além disso, a inserção no mercado de trabalho após a graduação permanece um desafio para as mulheres negras, que continuam a enfrentar discriminação racial e de gênero. Segundo dados do IBGE (2022), mesmo após a conclusão do ensino superior, as mulheres negras têm menos chances de obter empregos formais e estão entre as mais afetadas pelo desemprego e subemprego. Isso demonstra que a Lei de Cotas, embora importante, não resolve por si só os problemas de desigualdade racial e de gênero, sendo necessário um esforço contínuo para combater o racismo estrutural no mercado de trabalho e promover oportunidades de inclusão social e econômica.
3.4 Políticas de Inclusão Social e os Limites do Assistencialismo
Outro aspecto importante a ser analisado são as políticas de inclusão social voltadas para a população negra e parda. No Brasil, programas como o Bolsa Família, agora substituído pelo Auxílio Brasil, desempenham um papel crucial na redução da pobreza e da desigualdade social. No entanto, esses programas, embora essenciais, não são suficientes para combater as estruturas de opressão que perpetuam a exclusão das mulheres negras.
Sabe-se que a maioria dos beneficiários desses programas são mulheres, muitas delas negras e chefes de família, o que evidencia a importância dessas iniciativas na garantia de um mínimo de subsistência. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2021), mais de 68% dos lares chefiados por mulheres negras dependem de programas de transferência de renda. Apesar disso, a dependência de programas assistenciais não resolve as desigualdades estruturais e, muitas vezes, reforça a precariedade dessas mulheres ao não oferecer mecanismos de inserção sustentável no mercado de trabalho formal e de superação da pobreza.
Estudos em políticas públicas, como os de Heloísa Buarque de Almeida (2017), indicam que o assistencialismo, sem o devido suporte de políticas de desenvolvimento econômico e educação, perpetua a dependência e não cria condições para que essas mulheres superem o ciclo da pobreza. "As políticas assistenciais são paliativas e, muitas vezes, servem para maquiar a desigualdade, sem atacar diretamente suas causas estruturais" (ALMEIDA, 2017, p. 77). Para enfrentar verdadeiramente as desigualdades que afetam as mulheres negras, é necessária a criação de políticas públicas que combinem inclusão social com oportunidades de educação, emprego e empreendedorismo.
A falta de investimentos em políticas de capacitação e inclusão econômica das mulheres negras é uma das principais falhas das políticas públicas brasileiras. Como argumenta Sueli Carneiro (2003), "o Brasil continua a tratar a pobreza como uma questão de caridade e não como um problema estrutural de injustiça social e racial" (CARNEIRO, 2003, p. 99). Para que o país avance na promoção dos direitos humanos das mulheres negras, é essencial adotar políticas de longo prazo que visem não apenas a distribuição de renda, mas a criação de oportunidades econômicas e sociais que lhes permitam superar a marginalização histórica.
3.5. A Necessidade de Reformas Estruturais e Políticas Interseccionais
As análises das políticas públicas discutidas neste capítulo — a Lei Maria da Penha, a Lei de Cotas e os programas de inclusão social — evidenciam que, embora esses instrumentos tenham trazido avanços significativos, eles falham em responder de maneira plena às necessidades das mulheres negras e pardas. Sem uma abordagem interseccional que reconheça as particularidades das experiências dessas mulheres, o impacto dessas políticas continuará limitado, perpetuando a exclusão social, econômica e a violência estrutural.
A adoção de políticas públicas interseccionais, conforme defendido por teóricas como Kimberlé Crenshaw (1989) e Sueli Carneiro (2003), é essencial para a promoção de uma justiça substancial. Isso significa que o Estado deve não apenas implementar leis e programas, mas também garantir que essas políticas sejam adequadas às realidades das mulheres negras, levando em consideração as camadas de opressão racial, de gênero e de classe que afetam suas vidas. As reformas necessárias devem, portanto, incluir a ampliação do acesso à justiça, a criação de políticas de permanência no ensino superior, a promoção da inclusão econômica e a reestruturação das políticas assistenciais, garantindo que essas mulheres tenham oportunidades reais de autonomia e de exercício pleno de seus direitos humanos.
4. Reformas Estruturais Necessárias para a Garantia dos Direitos Humanos das Mulheres Negras e Pardas no Brasil
4.1 Introdução: A Urgência de Reformas Estruturais no Sistema de Proteção aos Direitos Humanos
O Brasil possui um arcabouço legislativo robusto para a proteção dos direitos humanos, que inclui a Constituição Federal de 1988, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e a ratificação de tratados internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Contudo, como discutido ao longo deste trabalho, o impacto dessas normas sobre a realidade das mulheres negras e pardas tem sido limitado. A marginalização racial e de gênero, aliada às falhas na implementação de políticas públicas, exige não apenas ajustes pontuais, mas uma reformulação mais profunda das estruturas institucionais e sociais que perpetuam essas desigualdades.
Este capítulo examina as reformas estruturais que são indispensáveis para garantir a plena efetivação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil. Tais reformas devem abordar as diversas facetas da discriminação e exclusão social, econômica e política que afetam essas mulheres, assegurando a criação de um ambiente no qual elas possam exercer plenamente seus direitos. A proposta aqui não se limita à criação de novas leis, mas envolve a reestruturação do funcionamento do Estado, das instituições de justiça, do sistema de educação e do mercado de trabalho, levando em consideração as interseccionalidades de raça, gênero e classe.
Para embasar essa análise, utilizam-se dados de pesquisas acadêmicas, relatórios de organismos internacionais, como a ONU Mulheres e a Organização dos Estados Americanos (OEA), e estudos de ciências sociais. Argumenta-se que, sem uma reforma estrutural efetiva e uma abordagem interseccional, os direitos das mulheres negras continuarão a ser violados, mesmo em face de avanços legislativos.
4.2 Educação Antirracista e Igualdade de Oportunidades: A Base para Superar o Racismo Estrutural
A educação é uma das principais ferramentas para a transformação social e a erradicação do racismo estrutural. Embora o Brasil tenha implementado algumas iniciativas voltadas para a inclusão racial no ambiente educacional, como a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) e a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, a aplicação dessas políticas tem sido fragmentada e insuficiente para desconstruir o racismo no sistema educacional. De acordo com Sueli Carneiro (2003), "a educação é o espaço privilegiado de reprodução e combate das desigualdades raciais. Sem uma educação verdadeiramente antirracista, a discriminação continuará a ser reproduzida em todas as esferas da sociedade" (CARNEIRO, 2003, p. 105).
A inclusão de conteúdos que abordem a história e a cultura negra de maneira crítica e transformadora é essencial para romper com as estruturas de exclusão que têm historicamente marginalizado as mulheres negras no Brasil. No entanto, a simples existência de uma legislação que imponha a obrigatoriedade desse ensino não é suficiente para produzir mudanças concretas. Estudos como o de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2011) indicam que, nas escolas, a abordagem da história afro-brasileira e africana ainda é superficial e insuficientemente aplicada, perpetuando visões eurocêntricas e marginalizando as contribuições negras na formação do país. Para que essas leis sejam eficazes, é necessária uma maior capacitação de professores e uma reformulação dos currículos escolares, com o objetivo de promover uma educação antirracista que valorize as experiências e narrativas de mulheres negras.
Além disso, a Lei de Cotas, embora tenha ampliado o acesso ao ensino superior para estudantes negros, precisa ser acompanhada de políticas de permanência que assegurem a conclusão dos cursos por essas alunas. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2021) mostram que a evasão escolar entre estudantes cotistas negros é maior do que entre estudantes não cotistas. Isso se deve à combinação de fatores como a falta de recursos financeiros, discriminação racial e a ausência de programas de apoio pedagógico e psicológico. Para lidar com essa realidade, é urgente que sejam implementadas políticas de permanência mais robustas, que incluam auxílio financeiro, programas de tutoria e mentorias acadêmicas, além de espaços seguros para que as mulheres negras possam discutir suas experiências de racismo e violência de gênero dentro do ambiente universitário.
4.3 Reformas no Sistema de Justiça: Combate ao Racismo Institucional e à Desigualdade de Gênero
O sistema de justiça brasileiro tem sido historicamente um dos principais espaços de reprodução do racismo institucional. Como mencionado anteriormente, as mulheres negras enfrentam maiores dificuldades para acessar a justiça, tanto em relação à violência de gênero quanto em outras áreas. Uma reforma estrutural no sistema de justiça é, portanto, essencial para que os direitos dessas mulheres sejam protegidos de maneira efetiva. Isso implica, entre outras coisas, em um combate sistemático ao racismo institucional presente nas delegacias, nos tribunais e nas demais instituições responsáveis pela aplicação da lei.
Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2021), o número de magistrados e promotores negros no Brasil é extremamente baixo, especialmente quando se trata de mulheres negras. Esse dado demonstra como o racismo estrutural também está presente no próprio sistema de justiça, que se configura majoritariamente como um espaço de privilégio branco. A ausência de representatividade negra nas instituições judiciais contribui para a perpetuação de decisões judiciais enviesadas, que não levam em consideração as particularidades das experiências de discriminação racial e de gênero vividas por mulheres negras.
Para enfrentar esse desafio, uma reforma estrutural no sistema de justiça deveria incluir a implementação de cotas raciais para o ingresso de juízes e promotores, a fim de garantir maior representatividade nas decisões judiciais. Além disso, é fundamental que todos os operadores do direito recebam capacitação sobre racismo institucional e interseccionalidade. A ausência de formação adequada sobre esses temas faz com que muitas decisões judiciais sejam tomadas sem considerar as dinâmicas de opressão que afetam de maneira desproporcional as mulheres negras. Essa formação deve ser permanente e deve incluir discussões sobre as desigualdades de gênero e raça, bem como sobre os impactos dessas desigualdades na aplicação da justiça.
Outra medida necessária é a criação de defensores públicos especializados em casos de discriminação racial e violência de gênero. Mulheres negras que buscam justiça para casos de violência, como o feminicídio ou violência doméstica, muitas vezes encontram barreiras econômicas e sociais que dificultam o acesso a advogados competentes. A Defensoria Pública tem um papel fundamental em garantir que essas mulheres tenham acesso ao sistema de justiça de maneira plena e que seus casos sejam tratados com a devida seriedade.
Por fim, deve-se fortalecer o papel da Justiça Restaurativa como uma forma alternativa de resolução de conflitos, especialmente nos casos que envolvem violência de gênero e racismo. A Justiça Restaurativa foca na reparação dos danos causados à vítima, envolvendo a comunidade no processo de cura e restauração. Essa abordagem tem mostrado resultados positivos em outros países na promoção da justiça para grupos marginalizados, como as mulheres negras, ao invés de focar unicamente na punição, que nem sempre aborda as causas estruturais da violência.
4.4 Políticas de Saúde Pública: Enfrentando a Violência Reprodutiva e a Desigualdade no Acesso à Saúde
A saúde pública é outra área em que as mulheres negras enfrentam discriminação sistemática e violência institucional. A violência obstétrica, que afeta desproporcionalmente as mulheres negras no Brasil, é um exemplo claro de como o racismo estrutural está presente nas instituições de saúde. De acordo com o Relatório sobre Racismo e Saúde (Ministério da Saúde, 2021), as mulheres negras têm maior probabilidade de sofrer complicações no parto, ser submetidas a procedimentos sem consentimento e receber tratamento desumanizador em comparação com as mulheres brancas. Esse tipo de violência reprodutiva é uma violação direta dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos, conforme assegurados pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Para enfrentar essa realidade, são necessárias reformas no sistema de saúde que garantam o acesso das mulheres negras a cuidados de saúde de qualidade, respeitando sua autonomia e dignidade. Em primeiro lugar, é preciso capacitar os profissionais de saúde sobre racismo institucional e a importância de um atendimento humanizado e livre de preconceitos. Muitas vezes, o tratamento desigual oferecido às mulheres negras é justificado pela suposta “resiliência” dessas mulheres à dor ou pelo estereótipo da “mãe forte e resistente”, o que legitima a negligência no atendimento.
Em segundo lugar, deve-se garantir a ampliação do acesso das mulheres negras aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, com foco na prevenção de doenças e na promoção do bem-estar. Políticas como a ampliação da cobertura do pré-natal e o aumento da oferta de consultas especializadas para gestantes negras são essenciais para reduzir a taxa de mortalidade materna entre essas mulheres, que ainda é alarmante. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (2022), a mortalidade materna entre mulheres negras no Brasil é quase três vezes maior do que entre mulheres brancas, um dado que reflete a urgência de reformas estruturais no sistema de saúde.
Além disso, é fundamental promover campanhas de conscientização sobre os direitos reprodutivos e os direitos das mulheres negras à saúde de qualidade. Muitas mulheres negras não estão plenamente cientes dos seus direitos no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, o que contribui para que situações de violência obstétrica e outros abusos sejam subnotificadas. Campanhas educativas e o fortalecimento de grupos de apoio, como doulas comunitárias, são formas de ampliar o conhecimento e o empoderamento dessas mulheres, garantindo que elas tenham autonomia sobre seus corpos e suas decisões de saúde.
4.5 Reformas Econômicas e a Inclusão Sustentável no Mercado de Trabalho
A precarização do trabalho das mulheres negras é um dos maiores desafios para a garantia de seus direitos econômicos e sociais. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), as mulheres negras são as mais afetadas pelo desemprego, subemprego e informalidade no Brasil. Elas ocupam majoritariamente postos de trabalho informais e de baixa remuneração, como o trabalho doméstico, que historicamente é uma das principais ocupações das mulheres negras no país. Essa realidade reflete o legado da escravidão e a continuidade do racismo estrutural no mercado de trabalho.
Para garantir a inclusão sustentável das mulheres negras no mercado de trabalho, são necessárias reformas estruturais que promovam não apenas a inclusão formal, mas a valorização do trabalho dessas mulheres. A primeira medida necessária é a criação de políticas públicas que incentivem a formalização do trabalho informal, oferecendo benefícios sociais, como seguro-desemprego, previdência social e licença maternidade. Embora a Lei Complementar nº 150/2015 tenha estabelecido direitos trabalhistas para empregadas domésticas, muitas mulheres negras ainda trabalham sem contrato formal, o que as priva de direitos fundamentais.
Outra reforma necessária é a criação de programas de qualificação profissional e empreendedorismo para mulheres negras, com foco em áreas de alta demanda no mercado de trabalho. Esses programas devem ser acompanhados de políticas de incentivo ao microcrédito, que permita às mulheres negras desenvolverem pequenos negócios e empreendimentos. Dessa forma, a inclusão no mercado de trabalho não será apenas formal, mas também econômica, permitindo que essas mulheres atinjam maior autonomia financeira e superem o ciclo de pobreza que afeta tantas famílias negras no Brasil.
4.6. O Caminho para a Justiça Social e Racial no Brasil
As reformas estruturais discutidas neste capítulo são fundamentais para a efetivação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil. Desde a educação e o sistema de justiça até a saúde pública e o mercado de trabalho, as mulheres negras continuam a enfrentar barreiras que limitam seu pleno desenvolvimento e violam seus direitos. A adoção de políticas interseccionais e a reestruturação das instituições brasileiras são passos essenciais para garantir que essas mulheres possam viver com dignidade, autonomia e segurança.
Somente com uma transformação profunda das estruturas de poder, que leve em consideração as particularidades das mulheres negras, será possível romper com o ciclo de marginalização e exclusão. Isso exige não apenas vontade política, mas um compromisso da sociedade brasileira como um todo com a justiça social e racial, reconhecendo o legado histórico do racismo e do patriarcado e adotando medidas concretas para sua erradicação.
5. A Opressão das Mulheres Negras e Pardas nas Relações de Gênero com Homens Brancos e Negros no Brasil: Perspectiva Histórica, Sociológica e Jurídica
5.1 Introdução: A Complexidade das Relações de Gênero e Raça no Brasil
As mulheres negras e pardas no Brasil ocupam uma posição de subalternidade que é formada pela interseção entre racismo e sexismo, gerando uma dupla opressão. Esse contexto complexo afeta tanto suas interações com homens brancos quanto com homens negros. Historicamente, as relações de poder e gênero no Brasil foram moldadas pelo legado da colonização e da escravidão, resultando em um tratamento desigual dessas mulheres em várias esferas sociais, econômicas e políticas.
Neste capítulo, o objetivo é analisar como a opressão de gênero e raça se manifesta nas relações entre mulheres negras e pardas e homens brancos e negros, considerando as especificidades históricas, sociológicas e jurídicas. Esta análise permitirá compreender as múltiplas formas de violência e exclusão que essas mulheres enfrentam e as dinâmicas de poder que sustentam essas opressões nas relações de gênero.
5.2 O Legado Histórico da Escravidão e as Relações de Poder entre Mulheres Negras e Homens Brancos
A escravidão no Brasil foi um dos principais fatores que moldaram as relações raciais e de gênero no país. As mulheres negras e pardas foram submetidas a uma dupla exploração: enquanto trabalhavam como escravas, também eram sexualmente exploradas pelos senhores de engenho e outros homens brancos. Como argumenta a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva (1997), a sexualidade dessas mulheres foi cooptada pela lógica de dominação escravista, e elas foram objetificadas como propriedade sexual.
Além da violência física, essas mulheres eram frequentemente tratadas como "mucamas", desempenhando tanto o papel de trabalhadoras quanto de concubinas forçadas, sem qualquer proteção legal. Mesmo após a abolição da escravidão em 1888, essa dinâmica de exploração sexual continuou nas relações empregatícias, especialmente no trabalho doméstico. A falta de proteção jurídica e a desvalorização dessas mulheres continuaram a perpetuar a vulnerabilidade em suas interações com homens brancos.
Essa exploração sexual, marcada pelo racismo e pelo patriarcado, moldou as relações de gênero na sociedade brasileira, afetando profundamente a forma como as mulheres negras e pardas são vistas e tratadas até hoje. A fetichização de seus corpos continua sendo uma forma de violência simbólica, legitimada por um imaginário racial que reforça a objetificação dessas mulheres.
5.3 A Opressão nas Relações entre Mulheres Negras e Homens Negros: Patriarcado, Racismo e Tensionamentos
Nas relações entre homens e mulheres negros, as dinâmicas de opressão se manifestam de maneiras diferenciadas. Embora ambos os gêneros enfrentem a opressão racial, o patriarcado ainda estrutura as relações de gênero dentro da comunidade negra, resultando em tensões entre o desejo de resistência ao racismo e a reprodução de comportamentos patriarcais.
Lélia Gonzalez (1984) destaca que o patriarcado é uma das heranças coloniais que os homens negros, muitas vezes de maneira inconsciente, assimilam como uma forma de se afirmar em uma sociedade que os desumaniza. Esse comportamento resulta em uma reprodução da dominação masculina dentro das relações de gênero, exacerbando a opressão sofrida pelas mulheres negras, que já carregam o fardo do racismo estrutural.
A violência doméstica contra mulheres negras e pardas, por exemplo, é um reflexo direto dessa dinâmica, em que o racismo e o sexismo convergem para criar um ambiente de opressão constante. Estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) indicam que as mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no Brasil, muitas vezes em contextos de violência doméstica. A interseccionalidade entre raça e gênero torna essas mulheres mais vulneráveis, tanto em suas interações pessoais quanto nas relações com o sistema de justiça.
5.4 A Objetificação e Desumanização das Mulheres Negras e Pardas: Racismo e Sexismo no Imaginário Social
A objetificação das mulheres negras e pardas é uma das formas mais persistentes de opressão, tanto nas relações com homens brancos quanto com homens negros. A construção histórica da mulher negra como um "corpo disponível", hipersexualizado e desumanizado, remonta ao período colonial e se perpetua no imaginário social brasileiro.
Patricia Hill Collins (2000) destaca que a hipersexualização das mulheres negras reforça a sua desumanização, legitimando formas de exploração sexual e violência simbólica que afetam essas mulheres de maneira desproporcional. Essa representação é visível em diversos âmbitos, desde a cultura popular até as relações afetivas e sexuais, onde os corpos das mulheres negras e pardas são frequentemente fetichizados e tratados como meros objetos de prazer.
No contexto das relações com homens brancos, essa objetificação muitas vezes assume a forma de fetichismo racial, em que o corpo da mulher negra é visto como exótico e disponível. Já nas relações com homens negros, a dominação patriarcal também contribui para a desvalorização dessas mulheres, reforçando a ideia de que elas devem ser "fortes" e "resilientes", o que invisibiliza suas dores e suas vulnerabilidades.
A socióloga Sueli Carneiro (2003) argumenta que essa objetificação das mulheres negras é uma forma de controle social que perpetua sua subordinação. A reprodução desses estereótipos, tanto por homens brancos quanto por homens negros, legitima a violência e a marginalização dessas mulheres em diversas esferas da vida social.
5.5 A Resposta Jurídica à Desumanização das Mulheres Negras e Pardas: Avanços e Limitações
Do ponto de vista jurídico, o Brasil possui uma série de instrumentos legais que visam proteger os direitos das mulheres, como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) e a Lei de Injúria Racial (Lei 7.716/1989). No entanto, a aplicação dessas leis tem sido insuficiente para proteger efetivamente as mulheres negras e pardas, que enfrentam barreiras institucionais e culturais para acessar a justiça.
A falta de uma abordagem interseccional na aplicação dessas leis é uma das principais limitações do sistema jurídico brasileiro. Embora o racismo e o sexismo sejam reconhecidos como formas de discriminação, a interseção entre eles ainda é ignorada, o que resulta em uma proteção inadequada para as mulheres negras. De acordo com o Relatório Anual de Segurança Pública (2021), as mulheres negras são as que mais sofrem com a violência doméstica e o feminicídio, mas enfrentam maiores dificuldades para acessar os serviços de proteção.
Além disso, a desumanização simbólica e a objetificação sexual dessas mulheres são raramente reconhecidas como formas de violência no sistema jurídico. O racismo institucional presente nas delegacias e nos tribunais continua a perpetuar a exclusão dessas mulheres, que muitas vezes não têm suas denúncias levadas a sério ou são revitimizadas pelas autoridades. Isso demonstra a necessidade de uma reforma estrutural no sistema de justiça, que inclua a formação de operadores do direito sobre a interseccionalidade de raça e gênero.
5.6. A Complexidade das Opressões Múltiplas e o Caminho para a Transformação Social
As mulheres negras e pardas no Brasil enfrentam um nível de opressão único, marcado pela interseção entre racismo, patriarcado e classismo. Suas relações com homens brancos e negros são moldadas por dinâmicas históricas e sociais que reforçam a exploração, a objetificação e a violência. A desumanização dessas mulheres, tanto no âmbito das relações íntimas quanto no espaço público, reflete uma sociedade que ainda não superou suas raízes coloniais.
Embora o arcabouço jurídico brasileiro tenha avançado em termos de proteção dos direitos das mulheres e do combate ao racismo, a falta de uma abordagem interseccional impede que essas conquistas sejam plenamente eficazes para as mulheres negras e pardas. O caminho para a transformação social exige não apenas reformas jurídicas, mas também mudanças culturais profundas que desafiem os estereótipos raciais e de gênero que continuam a legitimar a opressão dessas mulheres.
A construção de um Brasil mais justo e igualitário passa pela desconstrução dessas formas de opressão múltipla, promovendo uma sociedade em que as mulheres negras e pardas possam exercer plenamente seus direitos e viver com dignidade, respeito e autonomia.
Considerações finais
Este artigo buscou evidenciar as múltiplas formas de violação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil, demonstrando como as interseções entre racismo e sexismo agravam a exclusão social e institucional dessas mulheres. Apesar dos avanços legislativos e das políticas públicas voltadas à promoção da igualdade, as mulheres negras continuam a enfrentar barreiras significativas em seu acesso à saúde, à justiça, à educação e ao trabalho.
A análise interseccional utilizada neste estudo permite compreender que as políticas públicas, quando desenhadas sem considerar as complexidades dessas interseções, tendem a falhar em garantir direitos substanciais. É necessário, portanto, repensar as estruturas jurídicas e sociais que sustentam essas desigualdades, promovendo reformas profundas que sejam capazes de enfrentar o racismo estrutural e a violência de gênero de maneira eficaz.
Somente com a adoção de políticas interseccionais e a redistribuição de recursos e poder será possível alcançar uma verdadeira igualdade de direitos e assegurar que as mulheres negras e pardas no Brasil sejam plenamente reconhecidas como sujeitos de direitos.
Referências
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen Livros, 2018.
ALMEIDA, Heloísa Buarque de. Políticas Públicas, Gênero e Raça: Repensando o Assistencialismo no Brasil. São Paulo: Contexto, 2017.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003.
COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment. New York: Routledge, 2000.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório sobre a Diversidade Racial no Judiciário Brasileiro. Brasília: CNJ, 2021.
CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, 1989.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
FERNANDES, Florestan. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo: Global Editora, 1978.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022.
GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz. Educação e Relações Raciais no Brasil: Reflexões e Propostas. São Paulo: UNESP, 2011.
GONZALEZ, Lélia. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.
IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2021. Brasília: IBGE, 2022.
INEP. Censo da Educação Superior 2021. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2021.
IPEA. Atlas da Violência 2022. Brasília: IPEA, 2022.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Relatório sobre Racismo e Saúde no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2021.
MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita Garibaldi, 1988.
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2002.
NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. O Império Luso-brasileiro e os Caminhos da Opulência: As Dinâmicas de Poder e Violência sobre as Mulheres Negras no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Relatório Anual sobre Saúde Materna no Brasil. Washington, DC: OPAS, 2022.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
OAB-RJ nº: 244531. Advogada. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Cursando mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Principais áreas de atuação: Direito Civil, Direito Previdenciário e do Consumidor. Eu também gosto de atuar em causas envolvendo minorias em outras áreas. Whatsapp: (21) 99794-2067
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIGUEIREDO, Helena Vaz de. A Cor Púrpura no Brasil: A Violação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras e Pardas e as Heranças de Opressão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov 2024, 05:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/67138/a-cor-prpura-no-brasil-a-violao-dos-direitos-humanos-das-mulheres-negras-e-pardas-e-as-heranas-de-opresso. Acesso em: 11 dez 2024.
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Andrea Kessler Gonçalves Volcov
Por: Lívia Batista Sales Carneiro
Precisa estar logado para fazer comentários.