Resumo: Este artigo analisa criticamente as concepções de interpretação jurídica propostas por Hans Kelsen e Herbert Hart, influentes teóricos do Direito do século XX. Após a apresentação das concepções kelseniana e hartiana sobre interpretação das normas jurídicas, levando-se em consideração sobretudo o problema da objetividade, defende-se a superioridade da visão de Hart. Argumenta-se que a concepção hartiana foge do modelo de indeterminação total da linguagem sugerido por Kelsen e estabelece padrões mínimos de objetividade, muito mais próximos da nossa prática jurídica, impondo limites à discricionaridade judicial. Conclui-se que a concepção defendida por Hart inaugura um novo capítulo nos estudos da interpretação jurídica.
Palavras-chave: Interpretação jurídica. Objetividade. Hans Kelsen. Herbert Hart.
Abstract: This paper analyzes the conceptions of legal interpretation proposed by Hans Kelsen and Herbert Hart, two of the most influential legal scholars from the last century. After presenting Kelsen’s and Hart's conceptions on the interpretation of legal norms, focusing on the problem of objectivity, the superiority of Hart's view is defended. It is argued that Hart’s conception, unlike Kelsen’s one, fits better our legal practice. It escapes the model of total indeterminacy of our language suggested by Kelsen, and establishes minimum standards of objectivity, imposing limits on judicial discretion. It is concluded that the conception proposed by Herbert Hart opens a new chapter in the studies of legal interpretation.
Keywords: Legal interpretation. Objectivity. Hans Kelsen. Herbert Hart.
Sumário: Introdução. 1. Hans Kelsen: interpretação e a Teoria Pura do Direito. 2. A “virada metodológica” hartiana: textura aberta e indeterminação relativa. 3. Análise crítica. Conclusão. Referências.
Introdução
É comum escutar, no cotidiano forense, a afirmação de que o Supremo Tribunal Federal “pode errar, mas tem o direito de errar por último”. Tal expressão remonta a Rui Barbosa, na época senador da República, em aparte feito ao seu então colega Pinheiro Machado[1]. Com ela, reforça-se uma ideia importante para o ordenamento e a prática jurídica, correspondente à definitividade da jurisdição. Mas como devemos entender o “erro” judicial? Considerando a interpretação de normas jurídicas feita pelos juízes, eventual “erro” deverá ser considerado como questão de ordem subjetiva e incerta (afinal, juristas divergem honestamente sobre qual a melhor interpretação das normas em casos concretos), ou seria possível identificar algumas situações nas quais, objetivamente, algumas interpretações são equivocadas?
É esta última pergunta que informa o objetivo geral deste trabalho, que parte da análise das concepções de interpretação propostas por dois dos mais influentes teóricos do Direito no século XX: Hans Kelsen e Herbert L. A. Hart. Argumenta-se, acompanhando a tese de Ronaldo Porto Macedo Junior, que a concepção de Hart é o “ovo da serpente” na Teoria do Direito (MACEDO JUNIOR, 2013, p. 52) – é ela que, em certa medida, introduz a objetividade na interpretação do Direito e que, em última análise, abre espaço para muitas críticas posteriores que seriam dirigidas ao positivismo jurídico (em especial as desenvolvidas por Ronald Dworkin)[2].
Para os fins deste trabalho, a objetividade diz respeito à possibilidade de se alcançar uma interpretação correta. A questão é saber se podemos, de fato, identificar decisões judiciais certas ou erradas, e a partir de quais critérios. Defende-se que é neste ponto que reside a principal distinção entre os modelos de interpretação propostos por Kelsen e Hart. Se para Kelsen a discricionariedade do aplicador do Direito é total, enquanto ato de vontade, Hart assevera que a textura aberta da linguagem, considerando regras jurídicas, implica não apenas em uma zona de indeterminação, mas, sobretudo, na possibilidade de identificar casos que efetivamente se enquadrem ou não nos termos constantes na norma. Isso significa que, para Hart, somos capazes de afirmar que os juízes podem errar, objetivamente, ao aplicar o Direito.
O trabalho está dividido em três partes. Em um primeiro momento, é apresentada a concepção kelseniana de interpretação jurídica, atentando para seus pressupostos metodológicos – que estão diretamente relacionados à sua visão relativista do fenômeno moral. Posteriormente, analisa-se a concepção hartiana, centrando-se no conceito de textura aberta e em suas consequências práticas. Ao final, são apresentadas algumas reflexões sobre o tema, apresentando-se as razões pelas quais se entende que a posição de Hart é superior à de Kelsen.
1.Hans Kelsen: interpretação e a Teoria Pura do Direito
Analisar a concepção kelseniana de interpretação jurídica envolve, preliminarmente, compreender alguns dos seus pressupostos metodológicos – notadamente a sua ideia de pureza metodológica. Como sustenta Mario Losano, Kelsen é herdeiro direto de uma perspectiva metodológica que buscava a ausência de juízos de valor nas ciências, sobretudo nas ciências sociais (LOSANO, 1998, p. X). Esta ideia se encontra presente já em Max Weber: em síntese, significa que a preocupação do cientista social deve ser em descrever um dado objeto do conhecimento, sem avaliá-lo. Assim, um sociólogo de linha weberiana preocupa-se em observar a realidade social e em descrever as realidades que constatar, sem emitir juízo de valor sobre o que observa – sem estabelecer se as ações humanas observadas são “boas” ou “ruins”, “certas” ou “erradas”, “justas” ou “injustas”. Isso se assemelha à tarefa dos que se dedicam às ciências naturais, que observam os fenômenos da natureza e buscam identificar sua lógica. Logo, a primeira distinção que devemos ter em mente é entre descrever e avaliar, e a obra de Kelsen se propõe uma descrição do Direito. Em última análise, Kelsen também é um dos teóricos que busca superar a crença típica do século XIX fundada no “progresso” humano (LOSANO, 1998, p. XII).
Contudo, há uma diferença fundamental entre o trabalho de um sociólogo e o empreendido por Kelsen. Enquanto o sociólogo tem como preocupação questões do mundo do “ser”, daquilo que “realmente” ocorre na sociedade (as ações sociais, coletivas e suas consequências), o objeto de estudo de Kelsen são as normas jurídicas. Em linhas gerais, pode-se afirmar que uma norma corresponde a um guia para a ação humana: a norma estabelece o que deve ou não deve ser feito. Isso significa que as regras jurídicas e sua normatividade se inserem em um plano distinto daquilo que efetivamente ocorre: são abstrações, integrando o chamado mundo do “dever-ser”. Desse modo, ao contrário do sociólogo ou do cientista natural que descrevem regularidades no comportamento social ou na natureza, Kelsen está preocupado em descrever a normatividade do Direito.
Além da rejeição dos juízos de valor e da preocupação com a normatividade jurídica, a perspectiva metodológica de Hans Kelsen encontra seus pressupostos na escola neokantiana. A ideia central é de que o objeto da ciência é determinado pelo método, pelo modo de observar e compreender as coisas (LOSANO, 1998, p. XIII). Este ponto fica mais claro quando recorremos à Kant e percebemos que, para ele, não são os objetos do mundo que conformam nossa mente, mas é nossa mente que confere sentido às coisas do mundo (i.e., é a nossa razão pura que nos permite conhecer as coisas do mundo, aprioristicamente, compreendendo-as e as dotando de sentido). Tal fato permite ao teórico estabelecer os pressupostos da sua análise de determinado objeto – o teórico formula uma questão, um problema, e então cria a estrutura teórica (essencialmente formal) para analisá-la.
Isso significa, em última análise, que Kelsen “escolhe” seu objeto de estudo. Sua intenção não é tratar o Direito em sua totalidade; ele busca apenas compreender e descrever a natureza das normas jurídicas. Sua preocupação é em responder à questão “o que é o Direito”, e não como ele “deveria ser” (o que envolve avaliá-lo) ou como ele é efetivamente aplicado (o que envolve a análise do comportamento dos indivíduos submetidos às regras jurídicas e que, consequentemente, seria objeto de estudo sociológico, do plano do “ser”). Seu objeto de estudo, portanto, é circunstancial. Kelsen analisa o funcionamento do Direito Positivo, enquanto um conjunto de regras postas (positivadas) por uma autoridade em um dado território. Deste modo, opera com inúmeros conceitos para compreender a natureza destas regras: dever, obrigação, direito objetivo, direito subjetivo etc. Tais conceitos são pormenorizadamente estudados sua principal obra, a Teoria Pura do Direito[3].
Tendo em mente a preocupação metodológica de Kelsen, fica claro porque a questão da interpretação do Direito, enquanto último capítulo da Teoria Pura do Direito, foi contemplada apenas na segunda edição desta obra e após pressão de críticos. Para Kelsen, a interpretação está diretamente ligada à aplicação do Direito, não constituindo uma preocupação direta do seu cientista. Contudo, isso não impede que a interpretação seja vista enquanto um ato de conhecimento, competindo ao teórico identificar as diversas possibilidades interpretativas das normas jurídicas. Neste sentido, como afirma Kelsen, a interpretação enquanto ato de conhecimento delimita a extensão do Direito, estabelecendo a “moldura” a partir da qual se pode decidir de diferentes maneiras[4].
Mas a interpretação não se limita apenas um ato de conhecimento. Por estar diretamente ligada à aplicação do Direito, ela também constitui um ato de vontade. Se a função do teórico ou cientista do Direito é apenas conhecê-lo, caberá ao juiz ou qualquer outro órgão competente a aplicá-lo escolher uma dentre as diferentes interpretações, decidindo qual deve prevalecer no caso concreto[5]. Desde modo, os juízes primeiro conhecem o Direito (a interpretação como ato de conhecimento) e, posteriormente, escolhem dentre as interpretações encontradas (a interpretação como ato de vontade). Enquanto ato de vontade, a interpretação é vista por Kelsen como um ato político, e a possibilidade de escolha garante aos juízes e demais operadores o que se denomina interpretação autêntica: eles são capazes de, decidindo discricionariamente, criar o Direito. Esta é uma forma de compreender como as decisões do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, constituiriam o Direito[6].
A grande questão, entretanto, está na indeterminação natural das palavras e expressões que compõe as regras e normas jurídicas[7]. Isso não significa apenas que, uma vez estabelecida a “moldura” do Direito, diferentes interpretações são possíveis; estabelecer a própria moldura também é uma questão de interpretação e, consequentemente, alguns compreenderão a moldura do Direito de modo mais amplo ou mais restrito do que outros. Daí se tem que, para Kelsen, não há que se falar em objetividade na interpretação jurídica:
Apesar de todos os esforços da jurisprudência tradicional, não se conseguiu até hoje decidir o conflito entre vontade e expressão a favor de uma ou de outra, por uma forma objetivamente válida. Todos os métodos de interpretação até o presente elaborados conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto. (...) Com efeito, a necessidade de uma interpretação resulta justamente do fato de a norma a aplicar ou o sistema das normas deixarem várias possibilidades em aberto, ou seja, não conterem ainda qualquer decisão sobre a questão de saber qual dos interesses em jogo é o de maior valor, mas deixarem antes esta decisão, a determinação da posição relativa dos interesses, a um ato de produção normativa que ainda vai ser posto – à sentença judicial, por exemplo (KELSEN, 1998, p. 248).
Logo, tem-se que para Kelsen a interpretação autêntica, enquanto ato de vontade consubstanciada, por exemplo, na sentença judicial, pode colocar fim a um conflito de interesses; contudo, isso não significa que a escolha realizada seja objetivamente correta ou incorreta. A busca pela objetividade pela teoria da interpretação não passaria de um empreendimento metafísico inalcançável[8].
2. A “virada metodológica” hartiana: textura aberta e indeterminação relativa
Em sua obra mais conhecida, O Conceito de Direito, Herbert Hart segue o exemplo de outros juristas e parte da célebre questão: “o que é Direito?”. Entretanto, rapidamente percebe a impossibilidade de se alcançar uma definição de Direito da mesma forma como definimos termos como “elefante” e “triângulo” (HART, 1994, p. 19). O conceito de Direito admite inúmeras concepções, o que explica as inúmeras controvérsias sobre seu sentido. Assim, o empreendimento hartiano pode ser visto como uma concepção do conceito de Direito, sem cair no equívoco de definições fechadas e universais.
Ao longo de sua obra, Hart trabalha questões que gravitam em torno do seu problema principal, sobre o que é o Direito – o que torna possível afirmar que, assim como em Kelsen, o empreendimento de Hart é descritivo. Estas questões, em síntese, versam sobre a obrigatoriedade do Direito, sobre as distinções e relações entre o Direito e outros sistemas normativos e, por fim, sobre a natureza das regras em geral. Todas estas questões são tratadas pormenorizadamente ao longo de seu livro; mas, para os fins do presente trabalho, merece especial atenção o capítulo VII, no qual Hart apresenta importantes considerações sobre o funcionamento da nossa linguagem, e em particular da linguagem jurídica, que são determinantes para sua concepção de interpretação.
Hart afirma que uma das características da nossa linguagem à sua textura aberta: dentre as palavras e expressões que utilizamos, somos capazes de identificar casos centrais ou paradigmáticos e casos periféricos ou fronteiriços (HART, 1994, p. 139-141)[9]. Assim, por exemplo, com relação à expressão “careca”, somos capazes de identificar alguns casos paradigmáticos de alguém que efetivamente seja careca (i.e., que não tenha um fio de cabelo na cabeça, como é o caso do Foucault), e casos paradigmáticos de alguém que não é careca (e.g., um vocalista da banda Sepultura). Mas além destes casos paradigmáticos somos capazes de encontrar alguns diversos casos capazes de suscitar dúvidas (e.g., alguém que tenha certa quantidade de cabelo aqui e acolá, que para alguns pode ser visto como “careca”, mas para outros não).
Pode-se sustentar, portanto, que nossa linguagem é marcada por sua indeterminação relativa. Isso fica evidente quando tentamos regulamentar nossas condutas por meio de diferentes padrões, como é o caso das regras jurídicas. Hart dirá que a é resultado de duas “desvantagens” inerentes à nossa condição humana: a primeira diz respeito à nossa relativa ignorância dos fatos, e a segunda à nossa relativa indeterminação das finalidades (HART, 1994, p. 141).
Não é preciso ir muito longe para notar que que a textura aberta, enquanto elemento natural da nossa linguagem, se aplica também às regras jurídicas. O exemplo mencionado por Hart diz respeito a uma regra que proíba veículos em um parque[10]. Assim, se alguém transita um fusquinha no parque, certamente infringirá a regra, pois um carro é caso paradigmático daquilo que denominamos “veículo”. Outras coisas, como uma bola de futebol, certamente não constituem “veículos” e, portanto, não infringem a regra em questão. Disso se segue que o responsável por aplicar a regra pode acertar ou errar quando se deparar com estes casos paradigmáticos.
Nota-se como tais casos constituem verdadeiros critérios de objetividade que inexistiam, por exemplo, na análise kelseniana de interpretação. Logo, de acordo com Hart, o aplicador da norma erra ao deixar de aplicar a sanção quando alguém dirige um fusquinha pelo parque, da mesma forma como erra, objetivamente, se considera uma bola de futebol um veículo e aplica a penalidade. Kelsen, como visto, não admite a existência de posições “certas” ou “erradas” na aplicação das regras jurídicas, pois parte da ideia de que as palavras e expressões que utilizamos no Direito são marcadas pela indeterminação.
Na posição hartiana, a indeterminação só existe quando estamos diante dos casos periféricos ou fronteiriços. Trata-se daqueles casos em que pode haver controvérsia quanto ao fato de se encaixarem ou não no conceito em questão. Podemos imaginar se um patinete infringe ou não a norma que proíbe veículos no parque: afinal, um patinete seria ou não seria um veículo? Nestes casos, há quem diga que um patinete é um veículo, pois ajuda na locomoção e tem rodas; mas há também aqueles que podem discordar, sustentando que, para ser um veículo, o objeto em questão precisa ter um motor. Em casos assim é que seria possível falar em indeterminação, hipótese na qual o aplicador do Direito seria livre para decidir, discricionariamente. Logo, o aplicador poderá considerar que um patinete é um veículo e aplicar a multa, ainda que muitos entendam que um patinete não seja veículo e, consequentemente, possam criticar sua decisão. Por se tratar de caso no qual, efetivamente, há indeterminação, Hart dirá que inexiste uma resposta certa e prévia, do ponto de vista jurídico, que informe a tomada de decisão. É somente a partir da decisão do aplicador da regra que, para fins jurídicos, o patinete passa a ser um veículo – o Direito não exige, a priori, uma ou outra decisão, ao contrário do que acontece no caso do fusquinha ou da bola de futebol.
Há, portanto, espaço para a objetividade na interpretação do Direito e que não é determinada metafisicamente. Para Hart, somos capazes de encontrar a objetividade em nossas próprias práticas, considerando a determinação de muitas regras que adotamos corriqueiramente (MACEDO JUNIOR, 2013, p. 137). Ao analisarmos a textura aberta da nossa linguagem, constatamos que existem “núcleos de significado” que são compartilhados socialmente e que são imprescindíveis para manter a própria inteligibilidade do sistema jurídico. Este fato fica claro quando Hart distingue um jogo competitivo baseado em regras, como o futebol, de um eventual jogo no qual prevalece a discricionariedade do marcador de pontos:
Podemos distinguir um jogo normal de um jogo de “discricionariedade do marcador” simplesmente porque a regra de pontuação, embora tenha, como outras regras, a sua área de textura aberta em que o marcador deve exercer uma escolha, possui contudo um núcleo de significado estabelecido. É deste núcleo que o marcador não é livre de afastar-se e que, enquanto se mantém, constitui o padrão de pontuação correcta e incorrecta, quer para o jogador, ao fazer as suas declarações não-oficiais quanto ao resultado, quer para o marcador nas suas determinações oficiais. É isto que torna verdadeiro dizer que as determinações do marcador não são infalíveis, embora sejam definitivas. O mesmo é verdade quanto ao direito (HART, 1994, p. 157-158).
A analogia com o Direito é clara: o Direito é constituído por padrões que garantem sua própria inteligibilidade. Os juízes e demais operadores do Direito estão restritos a tais padrões, pois do contrário estariam fazendo outra coisa – e não aplicando o Direito. É neste sentido que se pode sustentar a existência de determinação e, portanto, da objetividade na interpretação jurídica. Esta seria uma possível explicação hartiana da ideia de que “o Supremo pode errar, mas tem o direito de errar por último”.
3.Análise crítica
Pode-se sustentar que o modelo de interpretação das regras jurídicas proposto por Hart é superior ao de Kelsen na medida em que corresponde a uma visão mais ajustada e coerente das nossas práticas jurídicas. Afinal, para compreender a obrigatoriedade e normatividade das regras jurídicas, devemos recorrer às nossas práticas e, quando o fazemos, percebemos que elas refletem uma série de convenções linguísticas e sociais. Em outras palavras, diferentemente de Kelsen, Hart preocupa-se em explicar o Direito e seus enunciados a partir da análise linguística. Percebe-se claramente as influências de Wittgenstein e John Langshaw Austin em seu pensamento. Assim, como sugere Katya Kozicki,
Inegável neste autor é a influência que ele recebeu da chamada escola da Filosofia da Linguagem Ordinária (...). A linguagem – enquanto instrumento de mediação da relação sujeito-sujeito – serve à compreensão do universo discursivo a partir do momento em que explicita as diversas possibilidades do agente no processo comunicacional. Transplantada para o universo jurídico, a linguagem na qual se manifesta o processo discursivo do direito deve ser apreendida no contexto das suas práticas sociais geradoras. Isto implica que a compreensão do direito não pode estar dissociada daquela linguagem que lhe serve de enunciado. (KOZICKI, 2014, p. 86).
Percebe-se, portanto, que Hart foge do ceticismo kelseniano ao adotar uma compreensão do fenômeno jurídico que toma como base nossas próprias práticas linguísticas, sociais e jurídicas. Não há que se falar, pura e simplesmente, em “indeterminação da linguagem” e, consequentemente, na ausência de objetividade das regras e normas do Direito. Antes o contrário: como afirma expressamente Hart[11], uma parcela significativa das nossas práticas é marcada por regras determinadas, sendo a discricionariedade judicial um fenômeno não tão frequente quanto se imagina. Pode-se pensar, por exemplo, na regra do art. 1.864, II, do Código Civil, que exige a presença e assinatura de duas testemunhas para a validade do testamento público – se consta apenas uma testemunha, o testamento deverá ser considerado inválido.
Logo, Hart possui uma visão muito mais refinada não apenas da ideia de interpretação, mas, sobretudo, da própria noção de objetividade. Partindo de pressupostos que podem ser atribuídos à filosofia da linguagem wittgensteiniana, Hart encontra em nossas próprias práticas sociais (ou, como diria Wittgenstein, em nossa “forma de vida”) a única objetividade possível. Não há que se falar em uma “única resposta correta”, enquanto fundamento último ou metafísico da atividade interpretativa: este tipo de empreendimento não possui qualquer sentido ou fundamento. Assim, como sustenta Ronaldo Porto Macedo Junior,
A única objetividade possível (e que “faz sentido usar”) é aquela que reconhece que as proposições jurídicas têm por “base” um conjunto de regras sociais que são aceitas em nossa “forma de vida”. A palavra “base está entre aspas em razão da impossibilidade de se pensar nela como um fundamento metafísico. A base aqui indica a prática com a qual se inicia a regra, não o seu fundamento último. A pergunta pelo fundamento último, na verdade, não faz sentido algum. Ela não passa de mais um enfeitiçamento que a linguagem própria de uma concepção absoluta nos faz crer e nos treina repetir. A única base que podemos imaginar para a nossa linguagem são nossas práticas, nossa forma de vida (MACEDO JUNIOR, 2013, p. 137).
Tem-se que, ao invés de assumir uma perspectiva limitada da ideia de objetividade, Hart a considera um dos elementos que compõe nossas práticas linguísticas e sociais. Sua concepção de objetividade é distinta daquela que Kelsen ou outros positivistas “pré-virada linguística” adotavam[12]. De fato, se observarmos nossas práticas jurídicas, percebemos que juristas, advogados e juízes defendem suas posições como corretas, e não como “mais uma possível interpretação” de regras ou normas jurídicas. A objetividade reside na própria prática do Direito, o que não se confunde com a busca por uma interpretação metafísica ou absolutamente justa.
Por certo, Hart inaugura apenas uma nova etapa na agenda de debates em Teoria do Direito. Suas ideias foram e continuam sendo alvo de inúmeras críticas, dentre as quais, no campo específico da interpretação jurídica, se destacam as apresentadas por Ronald Dworkin[13] e Lon Fuller[14]. Ainda assim, restam claros os méritos da sua teoria da interpretação do Direito e os ganhos que ela representa frente à concepção adotada por Hans Kelsen.
Conclusão
Delimitar o conteúdo e eventuais limites das normas que compõem o ordenamento jurídico faz parte do dia a dia do jurista, pouco importando sua área de estudos e de atuação. Não sem razão, a interpretação jurídica é um dos temas clássicos da Teoria e da Filosofia do Direito, ocupando espaços importantes ao longo das obras de diferentes autores.
Neste campo, merecem destaque Hans Kelsen e Herbert Hart. Ambos são, ainda hoje, influentes autores na reflexão teórica do fenômeno jurídico. Suas contribuições moldaram gerações de juristas, em particular os que se associam à corrente do positivismo jurídico.
Contudo, ainda que Kelsen e Hart tenham interesses metodológicos semelhantes, alinhando-se ao positivismo, há importantes distinções entre ambos. Uma delas é a que diz respeito à objetividade na interpretação jurídica. De um lado, como visto, Kelsen defende a indeterminação total de nossa linguagem, o que abre espaço para compreender a interpretação das normas jurídicas como ato de vontade. Isso faz com que juízes tenham “a última palavra” sobre o que é o Direito, cindindo-se o “conhecimento” do Direito de sua “aplicação”. O jurista pode, enquanto ato de conhecimento, identificar as diferentes interpretações possíveis da norma; contudo, é o juiz que, em um ato de vontade, será responsável pela sua aplicação no caso concreto. Neste contexto, juízes podem errar, mas não se poderia afirmar que estão “objetivamente errados”, já que cada indivíduo pode ter uma interpretação distinta daquilo que exige uma regra jurídica.
Hart, por sua vez, traz ao Direito a noção de textura aberta da linguagem, o que sugere a indeterminação na linguagem jurídica. Mas tal indeterminação é relativa: é possível identificar casos paradigmáticos de aplicação ou não de uma norma jurídica, como visto no caso da regra que proíbe veículos no parque: um fusquinha é claramente um veículo, ao passo em que uma bola de futebol certamente não é. Mas e se estivermos diante de um patinete? Neste caso, adentraríamos uma “zona cinzenta”, de clara indeterminação, quando vislumbramos situações nas quais pode haver efetiva discordância entre os intérpretes da regra jurídica. É neste ponto que Hart admitiria espaço para a discricionariedade do julgador.
Defendeu-se nesse trabalho que a concepção proposta por Hart é superior à de Kelsen, pois está mais atenta às complexidades que marcam nossas práticas jurídicas. Consequentemente, é uma explicação superior do próprio fenômeno jurídico. Vale a pena retomar o exemplo da regra que proíbe veículos no parque: para Kelsen, compete ao aplicador da regra decidir se um fusquinha transitando pelo parque a infringe ou não, em verdadeiro ato de vontade, não sendo possível vislumbrar, de antemão, qual a decisão correta para o caso. Hart, por sua vez, diria que o aplicador tem o dever de aplicar a penalidade, pois um fusquinha é, certamente, um veículo – trata-se de um caso paradigmático daquilo que, em nossa linguagem e em nossos usos e costumes, consideramos um veículo. Nisso reside a objetividade na interpretação e aplicação de regras jurídicas: na possibilidade de afirmar que algumas interpretações possam ser substantivamente certas ou erradas, o que não se confunde com considerações pessoais, subjetivas ou “metafísicas”, como diria Kelsen, quanto à correção da interpretação. E é neste ponto que, ao superar Kelsen, Hart abriu espaço para novos debates no campo da interpretação no Direito.
Referências
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BIX, Brian. H. L. A. Hart and the “open texture” of language, em Law and Philosophy, vol. 10, nº. 1, 1991.
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Estados Unidos: Harvard University Press, 1978
______. Law’s empire. Estados Unidos: The Belknap Press of Harvard University Press, 1986.
FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, vol. 71, no. 4 (1958), pp. 630-672. Disponível em: <http://www.jstor.org/discover/1338226?sid=21105052623121&uid=2&uid=3739560&uid=4&uid=3739256>. Acesso em: 09 fev. 2023.
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. de João Baptista Machado. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KOZICKI, Katya. Herbert Hart e o positivismo jurídico: textura aberta do direito e discricionariedade judicial. Curitiba: Juruá, 2014.
LOSANO, Mário. Introdução em KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. de João Baptista Machado. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. VII-XXXIII.
MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013.
SCHAUER, Frederick. On the open texture of law (set. 2011). Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1926855>. Acesso em: 09 fev. 2023.
[1] “Em todas as organizações políticas ou judiciais há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar. A alguém, Senhores, nas cousas deste mundo, se há de admitir o direito de errar por último. (...) O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade. Isto é humano” (BARBOSA, 1974, p. 259).
[2] “O ‘ovo da serpente’ metodológico da teoria do direito na segunda metade do século XX foi introduzido por H. L. A. Hart. Evidentemente, antes dele as preocupações com a metodologia do estudo do direito já eram patentes e essenciais nas obras de outros autores. (...) Contudo, é somente com a publicação de O conceito de direito, de H. L. A. Hart, em 1961, que o debate metodológico jurídico se reacende em novas bases, em especial no universo intelectual anglo-saxão, tornando-se um verdadeiro ponto de inflexão teórica, tanto para o positivismo jurídico como para seus críticos” (MACEDO JUNIOR, 2013, p. 52).
[3] Deve-se perceber que a pretensão de “pureza” é da teoria, e não do Direito em si. Kelsen sabe que o Direito é um fenômeno complexo em sua totalidade, que sofre influência de questões morais, éticas e políticas. Reforça-se, contudo, que sua preocupação metodológica é com a natureza das normas jurídicas, e não com o que elas “deveriam ser” ou como são aplicadas na prática. Estas são questões que envolvem outros estudos e campos do saber, que para Kelsen seriam complementares e não-excludentes dos seus estudos sobre o Direito Positivo.
[4] “Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral” (KELSEN, 1998, p. 247).
[5] “Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito, devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva” (KELSEN, 1998, p. 249).
[6] “Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação, especialmente da interpretação levada a cabo pela ciência jurídica. A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito” (KELSEN, 1998, p. 249).
[7] “Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como ‘correta’ – desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica” (KELSEN, 1998, p. 248).
[8] “A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a ‘justeza’ (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo” (KELSEN, 1998, p. 247-248).
[9] É importante ressaltar que a ideia de textura aberta encontra suas origens na obra de Friedrich Waismann, como sugerem Frederick Schauer (2011, p. 1)) e Brian Bix (1991, p. 51).
[10] “Quanto nos atrevemos suficientemente a cunhar certa regra geral de conduta (por ex., uma regra de que nenhum veículo pode ser levado para um parque), a linguagem usada neste contexto estabelece as condições necessárias que qualquer coisa deve satisfazer para se achar dentro do seu âmbito de aplicação, e certamente podem apresentar-se ao nosso espírito exemplos claros do que cai certamente dentro do seu âmbito. São os casos paradigmáticos ou claros (o automóvel, o autocarro, o motociclo); e a nossa finalidade ao legislar é até determinada, porque fizemos certa escolha. Resolvemos deste o início a questão de que a paz e a tranquilidade no parque devem ser mantidas à custa, em qualquer caso, da exclusão destas coisas. Por outro lado, até que tenhamos posto a finalidade geral da paz no parque em confronto com aqueles casos que não encaramos inicialmente ou não podíamos encarar (talvez um automóvel de brinquedo, movido eletricamente), a nossa finalidade é, nessa direção, indeterminada” (HART, 1994, p. 141-142).
[11] “Seja como for, a vida do direito traduz-se em larga medida na orientação, quer das autoridades, quer dos indivíduos privados, através de regras determinadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso. Este facto saliente da vida social continua a ser verdadeiro, mesmo que possam surgir incertezas relativamente à aplicabilidade de qualquer regra (quer escrita, quer comunicada por precedente) a um caso concreto. Aqui, na franja das regras e no campo deixado em aberto pela teoria dos precedentes, os tribunais preenchem uma função criadora de regras que os organismos administrativos executam de forma centralizada na elaboração de padrões variáveis” (HART, 1994, p. 148-149).
[12] Como sustenta Ronaldo Porto Macedo Junior, “H. L. A. Hart romperá exatamente com essa concepção de objetividade baseada numa ‘concepção absoluta do mundo’ pressuposta nos trabalhos de Kelsen e outros positivistas metodológicos como Alf Ross, Axel Hägerstrom, Karl Olivecrona e Norberto Bobbio, ao afirmar que o fenômeno da normatividade do direito exige uma nova e distinta compreensão da objetividade e da própria intencionalidade do agente nas práticas jurídicas significativas” (MACEDO JUNIOR, 2013, p. 60-61).
[13] O debate entre Hart e Dworkin é bem conhecido. Ele teve início com um artigo de Dworkin, Modelo de Regras I, originalmente publicado em 1967 pela University of Chicago Law Review e posteriormente incluído na obra Taking Rights Seriously (DWORKIN, 1978). O debate, que tem forte cunho metodológico, foi aprofundado a partir da publicação de O Império do Direito (DWORKIN, 1986), onde Dworkin analisa a (im)possibilidade de se elaborar uma teoria puramente descritiva do Direito, a separabilidade entre Direito e Moral e as controvérsias jurídicas (MACEDO JUNIOR, 2013, p. 179-180). No que diz respeito especificamente à interpretação jurídica, Dworkin ressalta a importância de princípios e valores para solucionar os chamados “casos difíceis” (hard cases), que seriam muito mais comuns do que pretendem positivistas como Hart.
[14] Lon Fuller critica a posição de Hart acerca da interpretação do Direito porque, em seu entender, ela levaria em consideração apenas questões semânticas e se esqueceria da ideia de função. Assim, tendo em vista a distinção hartiana entre casos paradigmáticos e fronteiriços na regra que proíbe veículos em um parque, Fuller questiona se um caminhão usado na Segunda Guerra Mundial, colocado como um memorial no parque, infringe a regra – já que um caminhão é, claramente, um veículo (FULLER, 1958, p. 663).
Doutor e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP - Largo de São Francisco. Bacharel em Direito pela PUCPR - Curitiba. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LAGO, Pablo Antonio. Interpretação Jurídica e Objetividade: os modelos teóricos de Hans Kelsen e Herbert Hart Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2023, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /61088/interpretao-jurdica-e-objetividade-os-modelos-tericos-de-hans-kelsen-e-herbert-hart. Acesso em: 29 dez 2024.
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