RESUMO: O presente artigo tem como objetivo geral, a elaboração de uma análise crítica e construtiva sobre Direito Constitucional, buscando fazer um breve estudo a respeito da judicialização da saúde, repartição de competências no âmbito do SUS e o quadro de insegurança jurídica gerado por entendimentos divergentes. O tema 793 do STF que fixou a tese da responsabilidade solidária dos entes federados na assistência à saúde, também determinou que competia à autoridade judicial direcionar o cumprimento da obrigação conforme as regras de repartição de competências, bem como o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. Ocorre que referido direcionamento tem gerado um quadro de insegurança jurídica sobre como a autoridade judicial procederá ao receber o pedido de medicamento ou tratamento, considerando que a decisão pode acarretar ou não, o declínio da competência uma vez que a maioria da população não detém conhecimento sobre o ente responsável pelo financiamento, nem mesmo sobre a situação na ANVISA, SUS, Rename ou Portarias do Ministério da Saúde para que haja a inclusão no polo passivo. Por outro lado, a solidariedade mencionada incentiva a judicialização contra qualquer um dos entes, podendo significar um atraso na satisfação das demandas que costumam ser urgentes.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à saúde; Judicialização da saúde; SUS; Tema 793 STF.
I – INTRODUÇÃO
O direito à saúde está assegurado constitucionalmente como direito social (art. 6º, CF) e internacionalmente através dos protocolos dos quais o Brasil é signatário como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas e o Protocolo de “San Salvador”, este último garante que toda pessoa tem direito ao mais alto nível de bem‑estar físico, mental e social (art. 10).
Para efetivação desse direito a própria Constituição Federal determina que é um dever do Estado, e que deve ser garantido através de políticas sociais e econômicas que constituem um sistema único, o conhecido SUS, cujo acesso deve ser universal e igualitário. O princípio da universalidade significa que o direito deve ser assegurado a todos os residentes no país, enquanto o princípio da igualdade requer que todos os indivíduos tenham acesso ao sistema de saúde de acordo com suas necessidades, sem qualquer tipo de discriminação.
A Lei do SUS (Lei nº 8.080/90) dispõe no art. 4º que o sistema compreende todo o conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, já no art. 6º, I, “d”, inclui a execução de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, impulsionando mais um princípio norteador, o da integralidade de assistência, também previsto no art. 7º, II.
Ocorre que apesar de toda essa previsão constitucional e infralegal, o acesso ao SUS ainda é limitado, não só por razões orçamentárias e lotações, mas por condicionar o fornecimento de medicamentos e tratamentos à previsão em diretrizes terapêuticas pré-definidas em protocolo clínicos e em tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único de Saúde – SUS. Na falta de protocolos, condiciona-se a dispensação à previsão em tabelas elaboradas pelos gestores estaduais e municipais. Desta forma, o critério necessidade não basta para inscrição dos medicamentos e tratamentos nas tabelas.
Essas condicionantes há muitos anos vem sendo motivo de judicialização do acesso à saúde, uma vez que os profissionais de saúde, no exercício de sua autonomia profissional, prescrevem tratamentos e medicamentos de forma individualizada, atendendo as particularidades e necessidades daquela pessoa em conformidade com o que o mercado oferece, buscando o melhor caminho para a cura, no entanto, na maioria das vezes não estão previstos nas tabelas e protocolos do SUS, sendo motivo de recusa e, portanto, mitigando o princípio da igualdade.
Diante do aumento de casos de judicialização da saúde e da necessidade de definição da competência, o Tema 793 do STF fixou a tese da responsabilidade solidária dos entes federados, de maneira que todos são responsáveis pelo acesso à saúde e, assim, a ação poderia ser interposta contra os três entes ou qualquer um deles, ficando a cargo do magistrado direcionar o cumprimento e ressarcimento de acordo com as regras de repartição de competência.
Ocorre que são diversas as situações submetidas à justiça todos os dias, gerando decisões conflitantes diante da interpretação feita do Tema e trazendo um quadro de insegurança jurídica aos jurisdicionados. A situação mais comum é a de medicamentos registrados na ANVISA mas não incorporados ao SUS. Há decisões incluindo a União no polo passivo e declinando competência para Justiça Federal, por entender que a não incorporação ao SUS é temática de interesse do ente federal, outras extinguindo o processo sem resolução do mérito devido à falta da inclusão da União pela parte, e outras mantendo na Justiça Estadual e submetidas à morosidade pelos infinitos recursos interpostos pelas Procuradorias Estaduais, sem levar em consideração que as demandas de saúde são urgentes.
Atualmente estão pendentes de julgamento o IAC nº 14 do STJ e o Tema 1.234 do STF, os quais colocam em discussão esse problema.
II – O TEMA 1.234 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O IAC 14 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Em sessão realizada no dia 23/05/2019, o Supremo Tribunal Federal fixou a Tese nº 793, com repercussão geral, a qual destaca a responsabilidade solidária entre os entes federativos em matéria de saúde, nos seguintes termos:
"Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro"
A responsabilidade solidária implica a possibilidade, no caso, de quaisquer dos entes federativos ou todos, de figurar no polo passivo da demanda e prestar a assistência à saúde pleiteada. Apesar disso, sabe-se que nas hipóteses de medicamentos sem registro na ANVISA as ações necessariamente devem ser propostas em face da União, nos termos do Tema 500 do STF.
Ocorre que surgem dúvidas quanto às outras hipóteses ainda não definidas, e o enunciado do Tema 793 do STF possibilita diversas interpretações e posicionamentos, impulsionando a prolação de decisões judiciais em diversos sentidos e trazendo um quadro de insegurança jurídica, uma vez que as pessoas ingressam com a demanda de saúde mas não sabem o que vai acontecer.
Em uma rápida pesquisa nos sites de jurisprudência é possível ver decisões de vários tribunais nas quais a temática é fornecimento de medicamento com registro na AVISA, mas não incorporado ao SUS, nas quais o processo é extinto por falta de inclusão da União no polo passivo, em outros a União é incluída de ofício e o processo vai para a Justiça Federal, em outros permanece na Justiça Estadual, isso com base no entendimento do magistrado sobre o Tema 793 e o interesse ou não do ente federal sobre a inclusão do medicamento no SUS.
Sobre o assunto, destaque-se a fala do Ministro Marco Aurélio na sessão do julgamento dos embargos de declaração que definiu o tema, que reflete bem a atual situação da judicialização da saúde:
[...] Estou convencido de que, a cada dia que passa, a prestação jurisdicional fica mais complexa e, em vez de os pronunciamentos do Supremo servirem de norte à primeira instância – e a instância verdadeiramente revisora, o Tribunal de Justiça ou o Regional Federal –, acabam, de duas, uma: ou não sendo considerados ou, considerados, acabam confundindo e dificultando ainda mais a vida do jurisdicionado, a vida do cidadão, principalmente do que precisa – e essa necessidade urge – de um medicamento. [...] [1]
Além da insegurança jurídica proporcionada ao jurisdicionado, que já sofre pela doença que lhe acomete, é necessário destacar a morosidade desses processos pelo número de recursos interpostos destas decisões. Ora, se por um lado a Procuradoria Estadual ou Municipal quer que a União arque com o financiamento do medicamento, por outro lado a Defensoria Pública e as partes querem que o ente federado mais próximo e acessível o forneça, em decorrência da solidariedade. A frieza deste debate, muitas vezes amparados sequer por uma tutela de urgência, traz consequência irreparáveis.
Diante da urgência em resolver essa questão de “saúde pública”, uma vez que as demandas são inúmeras, o STJ admitiu o Incidente de Assunção de Competência nº 14, enquanto o STF reconheceu a repercussão geral do Tema nº 1.234[2], ambos ainda pendentes de julgamento.
No Incidente de Assunção de Competência nº 14 do STJ, aguarda-se o julgamento da seguinte questão:
Tratando-se de medicamento não incluído nas políticas públicas, mas devidamente registrado na ANVISA, analisar se compete ao autor a faculdade de eleger contra quem pretende demandar, em face da responsabilidade solidária dos entes federados na prestação de saúde, e, em consequência, examinar se é indevida a inclusão da União no polo passivo da demanda, seja por ato de ofício, seja por intimação da parte para emendar a inicial, sem prévia consulta à Justiça Federal.[3]
Nos autos desse IAC restou deliberado, após questão de ordem, que até o julgamento definitivo do incidente o Juiz estadual deverá abster-se de praticar qualquer ato judicial de declinação de competência nas ações que versem sobre tema, de modo que o processo deve prosseguir na jurisdição estadual.
O Tema 1.234, teve a repercussão geral reconhecida por unanimidade no dia 9 de setembro de 2022. A matéria em discussão assim foi resumida pela Corte Superior: Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, mas não padronizados no Sistema Único de Saúde – SUS, conforme ementa a seguir:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS REGISTRADOS NA AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA, MAS NÃO PADRONIZADOS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE - SUS. INTERESSE PROCESSUAL DA UNIÃO. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERADOS. COMPETÊNCIA PARA PROCESSAMENTO DA CAUSA. MULTIPLICIDADE DE RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. PAPEL UNIFORMIZADOR DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.[4]
Com o julgamento dos temas, será possível definir a competência para julgamento das demandas de medicamentos não incorporados aos SUS e com registro na ANVISA. Destaque-se a importância da observância da determinação feita nos autos do IAC nº 14, nos termos do art. 927[5] do CPC, de abstenção da justiça estadual de declinar a competência, permanecendo o processo na instância até o julgamento de mérito da questão afetada.
Urge a necessidade de padronizar a jurisprudência nessas situações, nos termos do art. 926[6] do CPC, portanto, a manutenção do processo na instância em que se encontra, até a definição, proporciona segurança às pessoas e facilita a vinculação dos julgamentos dos recursos interpostos.
IV – CONCLUSÃO
A judicialização da saúde é a maneira mais eficaz encontrada hoje pela população para fazer valer o seu direito fundamental diante da negativa de fornecimento do medicamento ou tratamento. Cabe à justiça, diante das particularidades e do debate que evolui no decorrer dos tempos, primar pela celeridade e salvaguarda dos direitos de maneira ampla, tanto para que aquela pessoa tenha o acesso ao tratamento de saúde, como para que esse tratamento seja fornecido tempestivamente, sem maiores danos, inclusive o emocional.
A divergência de decisões judiciais não pode continuar diante de determinações e orientações dos Tribunais Superiores como o IAC 14 do STJ e do Tema 1.234 do STF, nem mesmo para fomentar o debate através de Reclamações. O direito à saúde, quando devidamente demonstrado, deve ser fornecido, sob pena de perder a eficácia, e não ficar associado à questões meramente processuais e burocráticas.
O fato de um medicamento estar registrado na ANVISA e não incorporado ao SUS limita o acesso à saúde, e o poder público, bem como o judiciário devem buscar soluções eficazes não só para promover esse acesso, mas também para que esses problemas sejam dirimidos no âmbito administrativo, como a provocação e o incentivo à uma incorporação mais rápida.
Atualmente a incorporação de medicamentos ao SUS através da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) leva no mínimo 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias e, a partir do momento em que é aprovada, tem mais 180 dias para a oferta ser viabilizada[7], ou seja, o caminho mais rápido é a judicialização.
Apesar de “mais rápido”, tem se tornado moroso pelas discussões sobre competência e pelo “jogo” de transferência dessas obrigações, trazendo insegurança jurídica e desincentivando a judicialização.
Cabe, neste momento, diante da pendência de análise pelo STF e STJ, seguir a orientação de abstenção de declínio para que as pessoas possam, enfim, sem mais barreiras, ter acesso à um sistema único de saúde universal, igualitário e integral.
V - REFERÊNCIAS:
BRASIL, República Federativa do Brasil. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. EMB. DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 855.178 SERGIPE. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342892719&ext=.pdf>. Acesso em 01 fev. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1.234. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353401700&ext=.pdf>. Acesso em 01 fev 2023.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. IAC 14. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=I&cod_tema_inicial=14&cod_tema_final=14>. Acesso em 01 fev 2023.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE 1366243 RG, Rel. Ministro Presidente, Tribunal Pleno, DJe 13.9.2022. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353401700&ext=.pdf>. Acesso em 01 fev 2023.
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. EMB. DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 855.178 SERGIPE. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15342892719&ext=.pdf>. Acesso em 01 fev. 2023.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1.234. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353401700&ext=.pdf>. Acesso em 01 fev 2023.
[3] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. IAC 14. Disponível em: < https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=I&cod_tema_inicial=14&cod_tema_final=14>. Acesso em 01 fev 2023.
[4] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE 1366243 RG, Rel. Ministro Presidente, Tribunal Pleno, DJe 13.9.2022. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15353401700&ext=.pdf>. Acesso em 01 fev 2023.
[5] Art. 927: Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
[6] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
[7] BRASIL, República Federativa do Brasil. Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras providências.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL, pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOURA, CARLA GIOVANNA ALMEIDA. Judicialização da saúde e o atual quadro de insegurança jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2023, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /61102/judicializao-da-sade-e-o-atual-quadro-de-insegurana-jurdica. Acesso em: 29 dez 2024.
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