RESUMO: O presente artigo aborda a definição de pluralismo jurídico e levanta algumas das principais críticas entre a coexistência dos diversos sistemas e o direito Estatal, bem como aponta diversos conflitos que podem surgir no seio social multicultural quando do reconhecimento desses diversos sistemas jurídicos no que se refere à justiça, caso não haja uma certa convergência moral entre os povos. O artigo propõe com base na filosofia de Platão uma a possibilidade de definição comum de justiça, capaz de harmonizar as diversas concepções existentes e a partir daí consagra o resgate do reconhecimento dos diversos sistemas jurídicos para uma coexistência organizada como meio de garantir às sociedades a aplicação do direito de modo mais equânime e justo.
Palavras chave: pluralismos jurídicos, direito, harmonia, justiça, equidade.
ABSTRACT: This article addresses the definition of legal pluralism and raises some of the main criticisms between the coexistence of different systems and State law, as well as pointing out several conflicts that may arise within multicultural society when recognizing these different legal systems with regard to justice, if there is not a certain moral convergence between peoples.The article proposes, based on Plato's philosophy, a possibility of a common definition of justice, capable of harmonizing the different existing conceptions and from there consecrating the rescue of the recognition of the different legal systems for an organized coexistence as a means of guaranteeing societies the application of law in a more equitable and fair way.
Keywords: legal pluralisms, law, harmony, justice, equity.
1.INTRODUÇÃO
A busca pela compreensão da justiça é uma jornada que atravessa séculos e abrange uma variedade de pensadores e correntes filosóficas. Neste contexto, a presente pesquisa propõe uma análise das noções de justiça presentes no pensamento de Platão, notório filósofo grego cujas contribuições filosóficas continuam a ressoar nas discussões contemporâneas sobre ética e direito. Entrelaçando-se com esse diálogo, exploraremos as implicações dos pluralismos jurídicos na concepção moderna de justiça.
1.1 PLATÃO E AS FUNDAMENTAÇÕES DA JUSTIÇA
Platão, discípulo de Sócrates, dedicou extensa reflexão à justiça em suas obras, destacando-se principalmente em "A República". Na busca pela harmonia e ordem na cidade ideal, Platão delineia a teoria das três partes da alma – razão, espírito e apetite – conectando-as à estrutura da cidade justa. Para Platão, a justiça não é apenas a ausência de conflitos, mas a disposição harmônica e equitativa dos elementos da alma e da cidade.
A teoria das Ideias de Platão também desempenha um papel crucial na sua concepção de justiça. A ideia do Bem é central, sendo o paradigma que guia a ação justa. A harmonia social está intrinsecamente ligada à participação consciente na realização do Bem, e é nesse contexto que Platão formula sua visão de justiça como equilíbrio e ordem.
Ao saltarmos para o cenário jurídico moderno, deparamo-nos com a complexidade dos pluralismos jurídicos, uma realidade onde diferentes sistemas normativos coexistem em uma mesma sociedade. Essa diversidade normativa, muitas vezes associada a contextos culturais, étnicos e religiosos, questiona as noções tradicionais de uma justiça universal e homogênea.
Os pluralismos jurídicos têm sido objeto de discussões fervorosas nas áreas de filosofia política e teoria do direito. A aceitação e acomodação dessas diversidades normativas apresentam desafios significativos, mas também oportunidades para a construção de sociedades mais inclusivas e respeitosas.
1.2 OBJETIVOS DA PESQUISA
O objetivo central desta pesquisa é explorar como as noções de justiça delineadas por Platão podem dialogar e, de certa forma, serem reinterpretadas à luz dos pluralismos jurídicos contemporâneos. Como a visão platônica da harmonia na cidade justa se relaciona com a diversidade de sistemas normativos presentes em sociedades pluralistas? Como podemos reconciliar as ideias de uma justiça transcendental, proposta por Platão, com as demandas de justiça contextualizada em ambientes culturalmente diversos?
A partir destas indagações, delinearemos uma análise crítica, apoiada em referências filosóficas e jurídicas, visando lançar luz sobre os desafios e possíveis soluções no encontro entre as concepções antigas de justiça e a realidade contemporânea dos pluralismos jurídicos. Ao fazê-lo, aspiramos contribuir para a compreensão mais profunda e contextualizada da justiça em sociedades diversas e em constante transformação.
2.PLURALISMOS JURÍDICOS: CONCEITO E DESAFIOS
Primeiramente é necessário elucidar o óbvio: somos “povos”, exatamente assim, no plural, “povos”. E como povos somos diversos, em todos os aspectos possíveis, não existe e jamais existiu a mínima possibilidade de nos padronizar, a história nos mostra que não há molduras que possam prever as dinâmicas sociais.
Toda construção que objetivou unificar nossas formas de relacionamento e nosso modo de viver, no máximo alcançou como resultado, uma mínima organização social, entretanto, década após década essas construções sistemáticas se revelaram ineficientes pelo fato de minimizarem a relevância da dinâmica social. Foram diversas tentativas de regular as ações humanas e impedir a criatividade para que o poder e a dominação continuassem nas mãos de poucos.
Mas, organização social não é sinônimo de representatividade, e por essa razão as crises sociais se desencadeiam de maneira agressiva e caminham na contramão do que parece ser o grande objetivo, o de dominar povos.
O pluralismo jurídico exalta e reconhece o inevitável, não existe apenas uma única fonte de direitos. E isso é de uma obviedade tão grande, que existe a necessidade de continuarmos discutindo essa temática no século XXI. Quantos séculos serão necessários para que a humanidade aceite e respeite a sua condição plural?
O direito nasce como um mecanismo dentro das sociedades que objetiva alcançar resultados de ordem, justiça e harmonia entre os membros da sociedade.
Mas a pressão existente dentro dos grupos sociais para que seus interesses sejam atendidos supera qualquer tentativa de padronização, os povos falam, lutam, resistem e constroem, queiram ou não queiram os poderosos. E aqui se revela o pluralismo jurídico, pois é através desses movimentos que o Estado se vê obrigado a aceitar que não é o único poder que existe capaz de criar ou extinguir direitos, ele próprio é uma construção nascida dos povos, seu próprio poder emana do povo, ao menos é assim que deveria ser.
O pluralismo jurídico refere-se à coexistência de diferentes sistemas jurídicos dentro de uma mesma sociedade. Em contextos de pluralismo jurídico, além do sistema legal formal estabelecido pelo Estado, há reconhecimento de sistemas normativos informais, como costumes locais, tradições comunitárias e outras práticas normativas. Cada comunidade ou grupo pode seguir normas e regras específicas que, embora não sejam parte do sistema legal oficial, desempenham um papel na regulação do comportamento.
Essa diversidade de fontes normativas pode criar situações complexas, especialmente quando há conflitos entre os diferentes sistemas jurídicos. O pluralismo jurídico desafia a ideia de uma única fonte de autoridade legal e destaca a necessidade de abordagens flexíveis para a resolução de disputas e a promoção da justiça em contextos culturalmente diversos.
Desta forma, afirma Wolkmer (2018, p. 74-75) que:
A proposta de um pluralismo normativo (designado comunitário, participativo) configurado através de um espaço público aberto e partilhado democraticamente, privilegiando a participação direta da sociabilidade excluída e subalterna na regulação das principais instituições da sociedade, e permitindo que o processo histórico seja dirigido pela vontade e sob o controle das bases comunitárias. Esta tendência reitera-se, antes de mais, na certa propensão para ver o Direito como um fenómeno resultante das relações sociais e das valorações desejadas, para verificar como se pode estabelecer uma outra legalidade a partir da multiplicidade de fontes normativas que não são necessariamente estatais, para evidenciar uma legitimidade baseada nas “justas” exigências fundamentais da sociabilidade insurgente e, finalmente, abordando a instituição da sociedade como uma estrutura descentralizada, pluralista e participativa.
Aceitar o pluralismo jurídico pode ser benéfico por diversas razões, como promover a diversidade cultural, preservando a diversidade e as tradições de diferentes comunidades dentro de uma sociedade. Incluindo os povos através da participação de grupos que podem ter sistemas jurídicos próprios, permitindo que eles contribuam para a elaboração das normas que os afetam.
O pluralismo também possibilita uma adaptação mais eficaz às mudanças sociais, culturais e econômicas, respondendo de maneira mais ágil às necessidades da comunidade, além de promover a solução de conflitos de maneira mais eficaz dentro de comunidades específicas, proporcionando uma abordagem mais contextualizada e sensível contribuindo para uma justiça mais inclusiva, reconhecendo e respeitando as diversas perspectivas sobre o que é justo em diferentes contextos culturais e sociais.
Ao reconhecer e aceitar os sistemas jurídicos diversos, pode-se promover a coesão social, construindo pontes entre diferentes grupos e evitando tensões resultantes de imposições normativas unilaterais.
Reconhecer o pluralismo como realidade patente, é aceitar as condições impostas pelas dinâmicas sociais, é preservar a história, é assegurar representatividade, é cultivar a evolução, é finalmente entender que a diversidade e a criatividade é a base que constrói e reconstrói a espécie humana, Wolkmer assevera que:
O reconhecimento do pluralismo na perspectiva da alteridade e da emancipação revela o locus de coexistência para uma compreensão crescente de elementos multiculturais criativos, diferenciados e participativos. Em uma sociedade composta por comunidades e culturas diversas, o pluralismo fundado numa democracia expressa o reconhecimento dos valores coletivos materializados na dimensão cultural de cada grupo e de cada comunidade. (Wolkmer, 2018)
O direito é a própria sociedade, ele é o meio de alcançar a finalidade última que consiste em assegurar que todos tenham condições de se desenvolver como pessoas, somente assim os povos são capazes de contribuir para a continuidade da vida, de maneira menos danosa possível.
O pluralismo, portanto, reconhece as diversidades, e redefine o lugar de poder na sociedade, é a expressão dos povos, pauta-se na tolerância, na autonomia e o seu embate é contra o estatismo e o individualismo.
O grande problema pauta-se na discussão das possibilidades que conduz ao reconhecimento da justa satisfação das necessidades dos povos. Em outras palavras, uma grande problematização da temática pluralista é em atender as necessidades dos povos de maneira justa, considerando a diversidade no modo de ser e no modo de pensar.
Direcionar os interesses plurais a fim de que os resultados tragam de fato benefícios à sociedade como um todo é o grande desafio que queremos levantar, principalmente quando as sociedades não mais se reconhecem como integrantes de um grupo. As pessoas não se reconhecem como iguais, mesmo que apesar das desigualdades existentes, exista algo que as unifica: a condição humana. Esta que se encontra em estado degenerativo.
Em resumo, aceitar o pluralismo jurídico é reconhecer a complexidade e a riqueza das sociedades, promovendo uma abordagem mais holística e adaptável para a regulação social. Isso pode contribuir para uma convivência mais harmoniosa em sociedades culturalmente diversas.
Porém, ainda que reconheçamos a existência e o valor do pluralismo, nos caberá como sociedade, convergir sobre um lugar comum civilizatório, para que esse seja o ponto de partida rumo a uma sociedade minimamente satisfeita.
3.CONFLITOS NORMATIVOS ENTRE SISTEMAS JURÍDICOS E OS PROBLEMAS DE JUSTIÇA
Diversos são os problemas que podem surgir entre os sistemas normativos, todavia, o que nos interessa é ressaltar os conflitos que podem surgir na busca pela justiça, considerando que esses diversos sistemas podem ter princípios e valores distintos.
A falta de harmonização pode levar a decisões contraditórias e principalmente injustas, podemos evidenciar esses fatos com uma breve análise sobre o artigo The heterogeneous state and legal pluralism in Mozambique. Law & Society Review (Santos, 2006, p. 44-47), de Boaventura de Sousa Santos, onde o autor relatou o caso do pluralismo jurídico existente na África.
Relembra Boaventura que como a África passou por diversos processos de transformação considerando a globalização neoliberal originada no Ocidente os estados que emergiram dos processos de independência tornaram-se estados desenvolvimentistas. Porém com existiam enormes diferenças entre eles, acima de tudo a diferença entre aqueles que adotaram o caminho capitalista e aqueles que adotaram o caminho socialista em direção ao desenvolvimento.
O novo modelo de desenvolvimento da África pressupunha um Estado suficientemente forte e eficiente para garantir uma regulação eficaz da economia e a estabilidade das expectativas dos agentes económicos e dos atores sociais em geral. Os novos Estados que emergiram do colonialismo português em meados da década de 1970, após décadas de lutas de libertação, sofreram drasticamente as consequências da nova crise global. Imposições que segundo Boaventura, afetaram profundamente as tarefas mais básicas do estado representando um “Um Palimpsesto de Culturas Políticas e Jurídicas”
Portanto, o Estado-nação africano perdeu a centralidade e o domínio dos países emergentes.
Boaventura (2006) ilustra esses fatos com o caso de Moçambique, onde o estado acabou se tornando o grande problema da sociedade, por ser classificado como predatório e ineficiente e assim acabou sendo reduzido ao mínimo.
Sobre o caso de Moçambique, Boaventura assinala que a heterogeneidade da ação estatal reflete-se ela própria na ruptura total da já instável unidade do direito estatal, com a consequente surgimento de diferentes políticas e estilos de legalidade estatal, cada um deles que opera com relativa autonomia. Em casos extremos, tal autonomia pode levar à formação de múltiplos microestados existentes dentro do mesmo estado.
Ele chamou essa nova formação política de “estado heterogêneo”. Que se caracteriza pela coexistência descontrolada de culturas políticas e lógicas regulatórias totalmente diferentes.
E ainda asseverou que, sob pressões muitas vezes contraditórias, os diferentes sectores da ação estatal estão assumindo lógicas de desenvolvimento tão diferentes e ritmos, causando desconexões e incongruências, que às vezes não é mais possível identificar um padrão coerente de estado ação, isto é, um padrão comum a todos os setores estatais ou campos de atuação estatal.
Boaventura nos mostra que o que existe em Moçambique é um pluralismo extremamente complexo e também desordenado, que demonstra uma espécie de anarquia jurídica, os problemas jurídicos e políticos são “resolvidos” sem nenhum tipo de padrão.
A grande questão que fica, é como harmonizar as divergências entre os valores que regem as pessoas que vivem em um mesmo ambiente somada a diversidade jurídica quando o assunto é a busca pela justiça.
Se o direito é uma construção do homem político, do ser social, e considerando, mais uma vez que são diversos os interesses existentes entre os cidadãos, é natural que as divergências e os desencontros entre esses interesses se colidam, afinal o que é que o direito irá tutelar, quais parâmetros serão utilizados, qual interesse de maior relevância?
Claramente, se faz necessário pactos para que haja civilidade na vivência entre as pessoas e justiça no direito. Deste modo, questiona-se: é possível aplicar o pluralismo jurídico de modo a harmonizar os interesses e assim ser construir um direito mais justo?
Essa dúvida é incomoda porque sem resolvê-la, jamais será possível conviver em um ambiente plural e harmônico, ou seja, nunca será possível distribuir o direito equanimente, muito pelo contrário, o pluralismo jurídico que atua em desarmonia com os valores da comunidade, por conseguinte em desarmonia com os demais sistemas normativos poderá desencadear muito mais problemas sociais, conflitos e injustiças como demonstrou-se tais possibilidades na ilustração de Boaventura (2006).
Resta claro que no contexto do pluralismo, alcançar justiça envolve reconciliar e integrar sistemas jurídicos, considerando a diversidade cultural, social e étnica. Para tanto parece ser necessária uma abordagem flexível do próprio significado de justiça, no sentido de compreender que diversas comunidades podem ter concepções distintas e ainda assim conviverem. O maior desafio, parece estar em estabelecer um equilíbrio para que seja promovida a coesão social e sem que ao mesmo tempo seja desrespeitada a autonomia dos sistemas e as necessidades divergentes.
Deste modo, nos próximos capítulos será apresentada uma reflexão sobre a possível harmonização da noção do justo advinda de Platão para que seja aberto diálogos no contexto pluralista sobre a integração equilibrada e ordenada de diferentes sistemas de valores e normas capazes de promover uma convivência percebida como equitativa e aceitável por toda a comunidade.
4.A JUSTIÇA EM PLATÃO
No diálogo mais extenso construído por Platão, a obra “República”, composta por dez livros escritos na forma de uma narrativa indireta, é possível evidenciar a utopia platônica, uma idealização de um projeto político que abrange uma complexidade de temas que irão se condensar ao longo do diálogo, o tema que nos interessa precipuamente é o tema da justiça.
Na obra em questão, Sócrates, o personagem principal, narra o que havia acontecido com ele no dia anterior. Ele inicia o diálogo dizendo que desceu ao Pireu para as festividades de uma deusa, essa deusa é Ártemis. Quando já estava indo embora ele é convidado por um amigo a ir à casa de um outro amigo. Então Sócrates inicia um diálogo com o seu anfitrião que é um estrangeiro em sua fase final da vida, já bem estabelecido em Atenas. Justamente por esse motivo Sócrates começa a conversar com ele acerca dos bens e dos males da velhice.
Esse amigo lhe afirma estar muito bem, e que essa fase da vida era muito boa porque nos livra das paixões e, portanto, era possível dedicar tempo ao estudo da filosofia, além disso, ele diz a Sócrates que pelo fato de ter adquirido dinheiro seria possível restituir ou reparar as injustiças que ele cometeu ao longo de sua vida.
Sócrates questiona ao amigo, se o que faria uma vida boa seria adquirir muito dinheiro. Já que ganhar dinheiro permitiria reparar os danos e realizar restituições, poderia então, ser esse o significado da vida boa? Seria isso que tornaria a vida justa ou a vida justa antecederia qualquer outra forma de vida, e a justiça seria a finalidade última da existência?
Para Platão, justiça possuía um significado amplo, como uma síntese de todas as virtudes, justiça consistia em viver de maneira adequada e virtuosa.
Essas questões são justamente os fios condutores que guiarão todo o diálogo da obra, a grande questão discutida é sobre a ideia e a definição de justiça.
Platão buscou então, definir o que seria a justiça e quais seriam as dificuldades para se definir esse conceito, e assim desenvolveu o diálogo.
A primeira definição de justiça apresentada na obra é realizada pelo personagem denominado Céfalo, o anfitrião, para ele, a justiça seria dar a cada um aquilo que lhe pertence.
Durante o diálogo, Sócrates aceita num primeiro momento essa definição, mas questiona e a refuta,
O que digo é o seguinte: na hipótese de alguém receber para guardar a arma de fogo de um amigo que se encontre são do juízo, e este, depois com manifesta perturbação de espírito exigir que lhe restitua, todo mundo concordará que não se deve devolve-la e que não andaria direito quem lhe fizesse a vontade ou tudo contasse a um indivíduo em semelhantes condições. (Platão, 2000, p. 427-347)
Céfalo então lhe responderá que nesse caso não seria justo.
Portanto, a justiça não poderia necessariamente em todos os casos ser definida como “dar a cada um o que lhe é próprio”, então Céfalo constatará dificuldade e se retirará deixando a discussão com o seu filho, Polemarco.
Polemarco é a personagem quem dará a segunda definição de justiça na obra, para ele, justiça seria fazer bem aos amigos e mal aos inimigos.
Sócrates mais uma vez refutará essa definição argumentando que fazer o mal nunca seria compatível com a ideia de justiça.
Platão estabelece, portanto, uma ideia positiva sobre justiça, e assim sendo, para ele, fazer o mal seria incompatível com essa ideia, logo aquela definição restaria insuficiente.
Ao longo do diálogo aparece um outro personagem, esse personagem se chama Trasímaco, o qual oferecerá uma terceira definição de justiça, argumentando que a justiça seria a conveniência do mais forte, ou seja, a justiça seria uma produção que não seria um bem em si mesmo, seria simplesmente uma conveniência com uma utilidade que o mais forte faz valer conforme a ocasião.
Para tentar aprofundar o diálogo, Sócrates oferecerá o exemplo de alguém que seria um homem muito forte, um lutador de pancrácio, e aqui cumpre dizer, para fins de compreensão da linha de pensamento, que existia um mito de que os lutadores de pancrácio eram capazes de se alimentar com um boi inteiro por dia.
Então Sócrates concluirá, que se a justiça fosse a utilidade e a conveniência do mais forte então para sermos justos, bastaria que devorássemos um boi por dia.
Trasímaco então, complementará a sua definição de justiça afirmando que ela não seria apenas a conveniência do mais forte, mas a máxima conveniência seria ser injusto, mas parecer justo, porque a vida do injusto vale mais a pena do que a do justo, porque o justo só se dava mal, e o injusto e sempre era bem sucedido. Trasímaco continuará dizendo que em todas as artes, ou seja, em todas as atividades humanas, o que as pessoas buscam é a utilidade, e dará o exemplo de um médico que cuida do paciente porque ele deseja lucrar, ele, o médico não estaria preocupado com a saúde, portanto ele visaria a sua utilidade.
Sócrates refutará os argumentos apontando que cada arte visa uma finalidade própria e, portanto, a arte da medicina visaria à saúde, sendo assim, o bem seria justamente a realização de uma finalidade que já estria inscrita na própria noção da arte, a arte de lucrar seria outra arte. Portanto essa definição de justiça também estaria equivocada.
Sócrates, continuará a investigação na intenção de definir a justiça, porém o diálogo passa a ser realizado com outros dois personagens, Glauco e Adimanto.
Adimanto oferecerá uma nova provocação à Sócrates fazendo uma apologia da injustiça concordando com Trasímaco e Glauco vai defender essa mesma tese dizendo que é isso que a experiência nos mostra, que bastará olharmos e veremos que aquelas pessoas que agem segundo a sua própria conveniência sem nenhum critério sempre são mais bem sucedidas, e ainda acrescentará uma segunda questão, dizendo que na verdade nós por natureza não seríamos justos e tenderíamos a agir conforme a nossa própria conveniência ou a nossa utilidade, que só poderíamos ser justos e virtuosos se fossemos coagidos por medo de sermos punidos.
Nessa oportunidade Glaucon iniciará a narração do primeiro mito da República que se trata da história do anel de Giges, e concluirá que se todos nós possuíssemos o poder do anel de Giges agiremos da mesma maneira, ou seja de uma maneira tirânica, injusta, e questionará Sócrates sobre essa posição.
Sócrates responderá apontando que seria necessário ler em letras grandes para tentar posteriormente entender as letras pequenas, ou seja, para tentarmos definir o que é a justiça na alma de um indivíduo seria necessário ampliar o espectro e tentar definir justiça num plano maior num plano mais amplo, esse plano vai ser justamente o plano da cidade ideal.
Inicia-se portanto, a gênese da cidade, que se dá pelo fato de que as pessoas vão se agregar para satisfazer as suas necessidades básicas por uma série de mediações e juntos, os três personagens (Socrates, Adimanto e Glauco) vão chegar a três categorias na cidade: A primeira classe seria a classe dos artesãos e dos comerciantes, a segunda classe a dos guerreiros que defendem a cidade e uma outra classe , seria a classe daqueles que serão chamados de guardiões que são justamente a classe governante da cidade.
A primeira grande discussão será acerca da educação nessa cidade a educação terá dois pilares: a ginástica e a música, que diz respeito às musas que não se tratava apenas do canto e da harmonia, tratavam-se, sobretudo da poesia (a poesia era uma base educacional na época de Platão, era pela poesia que as crianças aprendiam a ler e também por ela eles aprendiam os mais diversos mitos que faziam parte da tradição de uma determinada cidade ou região).
A definição oferecida por Platão, surgirá somente no livro 4 da obra, para ele, Justiça seria a harmonia entre as partes da cidade cada qual compreendendo a sua função.
A função de cada cidadão seria dada pela aptidão de cada indivíduo ao exercer as suas tarefas na cidade. Assim também aconteceria na alma do cidadão, porque a nossa alma assim como a cidade estaria dividida em 3 partes: uma parte racional, uma parte apetitiva ou responsável pelo desejo pelas emoções e uma parte que ele chamou de ímpeto essa seria a parte responsável pelas nossas ações.
A justiça na alma seria, portanto, a harmonia entre essas partes, uma alma harmoniosa seria aquela em que a razão cumpria bem a função de comando de coordenação e de educação das outras partes, sobretudo da parte desejante, afetiva.
Os interlocutores, Adimanto e Glauco, vão dizer que muitas coisas ficaram para trás e assim, aparecerão três grandes dificuldades que deverão ser resolvidas em relação a essa cidade ideal, são as três ondas que irão ser transpostas ao longo do diálogo, a primeira onda dirá a respeito da comunhão de bens entre aqueles que governariam a cidade, a segunda onda dirá a respeito da capacidade ou a igualdade entre os homens e as mulheres no que diz respeito tanto ao governo da cidade quanto à guerra e a terceira dificuldade (a mais famosa e a que mais nos interessa para proposta deste trabalho) dirá a respeito da tese de que a cidade não será justa enquanto os reis não forem filósofos ou os filósofos não forem reis.
Aqui se inicia o problema que é o da educação do governante, aquele que possuir aptidão para governar deverá receber uma educação adequada para isso, e essa educação só poderá ser uma educação filosófica porque, segundo Platão, somente a educação filosófica poderá capacitar o governante a contemplar a ideia do bem, que é a ideia máxima existente no plano das ideias.
4.1 NOÇÃO DE JUSTIÇA EM PLATÃO COMO PROPOSTA HARMONIZADORA
Para Platão, a justiça é fundamentalmente uma proposta harmonizadora na sociedade, ela emerge quando cada indivíduo desempenha seu papel apropriadamente, contribuindo para o bem comum.
A harmonia ocorre quando há uma estrutura ordenada na sociedade, ele traz um conceito intrinsecamente ligado à ideia de cada parte cumprir seu propósito designado, buscando a harmonia e a estabilidade social.
Se trouxermos essa ideia para os dias atuais, poderemos observar que nossos governantes muitas vezes não cumprem exatamente o propósito para o qual foram designados, e assim como os governantes, o próprio povo deixa de cumprir o seu papel de cidadão.
Isso pode ocorrer quando a sociedade enfrenta divisões profundas, polarização extrema ou quando os interesses individuais prevalecem sobre os interesses coletivos. O que resulta em uma falta de coesão social e colaboração, levando a decisões e políticas que favorecem apenas determinados grupos, em detrimento do benefício geral.
A perda da noção do bem comum pode contribuir para a desigualdade, injustiça e fragmentação social, tornando desafiador alcançar objetivos compartilhados que promovam o bem-estar de toda a comunidade.
A sociedade está fragmentada, porque o homem não possui interesses comuns, não se percebe como um elo da corrente. Existe uma grande desconexão entre os homens que não tem lhes permitido compreender a sociedade em que vivemos. Tudo isso pode ser derivado de diversos fatores, como o avanço rápido da tecnologia, que ressignificou diversos conceitos, as mudanças sociais e culturais ou até mesmo a falta de diálogo, todos esses fatores podem ter resultado nessa dispersão do senso de humanidade.
Como falar em bem comum? Como poderemos encontrar coesão social e atingir justiça?
Hoje nossos princípios constitucionais beiram a utopia. Justiça, equidade, dignidade da pessoa humana, legalidade, proporcionalidade, não se fundam em mais nenhuma base ética, não existe a ideia de bem comum, e com isso, nosso sistema legal não possui integridade, porque a nossa sociedade está em crise de civilidade.
Todos estão correndo sem direção alguma, contemplando o bem individual, nossos fundamentos essenciais civilizatórios precisam urgentemente serem repensados.
E a justiça só poderá ser atingida quando cada cidadão souber exatamente qual é o papel que desempenha na sociedade, só haverá harmonia quando os indivíduos que compõem a sociedade compreenderem a sua responsabilidade perante os demais, quando o cidadão tiver a consciência de que seus atos impactam no funcionamento do todo.
Platão estava certo ao dizer que justiça é a harmonia entre as partes da cidade cada qual compreendendo a sua função. Só haverá justiça quando todas as pessoas da sociedade tiverem as suas necessidades minimamente atendidas, quando o negro finalmente for tratado de maneira equânime ao branco, quando a mulher não for diminuída perante o gênero masculino, quando as minorias não forem mais massacradas e tratadas como subespécie, quando o político compreender que cada centavo apropriado desonestamente fará falta na distribuição das riquezas, e quando nós, cidadãos pararmos de culpar os outros por nosso próprio egoísmo e ignorância. Quando cada um dos cidadãos compreender qual é o seu papel dentro da sociedade que compõe, e for capaz de harmonizar todas as suas partes interiores, aí sim a sociedade compreenderá o que significa bem comum e estabelecerá uma comunidade regida sistemas normativos plurais e harmônicos entre si.
4.2 UM DIREITO MAIS JUSTO COMO RESULTADO DA HARMONIZAÇÃO DE SISTEMAS NORMATIVOS
A busca humana objetiva um bem, esse bem talvez seja a sobrevivência, neste contexto, minimizar os danos da existência para que o homem sobreviva de maneira digna pode ser considerado um dos principais objetivos do direito.
A justiça, pode ser compreendida como a divisão equitativa de atividades sociais, recursos, oportunidades e encargos. Ou seja, para haver justiça, todos os cidadãos devem ser tratados como pessoas humanas, os recursos da sociedade, as oportunidades, e os encargos advindos dela devem ser distribuídos de maneira equitativa, cada parte da sociedade exercendo a sua função objetivando a evolução do todo.
Para que possamos construir, ou reconstruir nossas bases éticas será necessário convergirmos sobre pontos em comum, ainda que este seja apenas um lugar comum retórico.
Construir a ideia de bem comum impõe esforços para promover através do diálogo, a compreensão mútua e a colaboração em busca de objetivos que beneficiem a sociedade como um todo.
Precisamos reordenar a nossa sociedade, ressignificar nossas bases, repensar a sociedade compreendendo toda a diversidade existente, somente assim poderemos convergir sobre os valores que consideramos importantes de serem protegidos, e esses valores não podem mais serem tratados como imutáveis e passiveis de serem previstos.
A Justiça é uma construção que não pode ser engessada em um sistema rígido, porque ainda que compreendamos que justiça se equivale a realizar nossas funções como membro de um grupo social para proteger o bem comum, essas funções se alteram na medida em que a dinâmica social se movimenta.
Dentro do contexto do pluralismo jurídico, essas mudanças podem ser absorvidas, sem que exterminemos a cultura, e a diversidade. A sociedade pode alcançar representatividade constante já que o direito poderá caminhar ao lado das mudanças e se adequar às necessidades das comunidades.
O pluralismo jurídico pode desempenhar um papel significativo na harmonização social, desde que seja gerenciado de maneira eficaz e equitativa. Um sistema jurídico pluralista bem administrado pode oferecer mecanismos eficazes de resolução de conflitos, por considerar as diversas perspectivas e valores presentes na sociedade. Isso contribui para a harmonia social, evitando tensões decorrentes de divergências normativas.
Um sistema jurídico plural reconhece e respeita a diversidade dos diversos sistemas normativos em uma sociedade, o que é fundamental para criar um ambiente onde diferentes comunidades onde todos os grupos se sintam representados e respeitados, já que é permitida a inclusão ativa de comunidades na definição de suas normas.
A proposta pluralista é rica no contexto da cidadania ativa, pois promove um senso de participação e pertencimento, contribuindo mais uma vez para a harmonização social ao dar voz às diferentes identidades culturais e sociais.
Ao invés de criar divisões, um sistema jurídico pluralista bem gerenciado pode construir pontes entre diferentes comunidades, promovendo a compreensão mútua e facilitando a coexistência pacífica. E ao mesmo tempo em que respeita a diversidade, o pluralismo jurídico pode contribuir para a consolidação de valores compartilhados essenciais para a harmonização social, como justiça, equidade e respeito mútuo.
Portanto, o pluralismo jurídico, quando abordado de maneira cuidadosa e inclusiva, pode ser uma ferramenta valiosa para a promoção da harmonização social em sociedades culturalmente diversas.
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, convergir sobre um ponto em comum entre os homens, para que nos sirva de base para construção de todos os outros valores, é o ponto chave para a convivência equitativa e inclusiva nas comunidades diversificadas, acreditamos que esse ponto em comum seja a noção comum de justiça, ela é quem poderá nortear todas as outras atividades humanas.
Harmonizar as noções do justo no contexto do pluralismo jurídico é uma empreitada complexa, porém crucial, a coexistência de sistemas jurídicos múltiplos demanda abordagens que reconheçam a riqueza da diversidade cultural, mas também busquem pontos de convergência para uma compreensão compartilhada de justiça.
Ao enfrentar esse desafio, é imperativo desenvolver mecanismos eficazes de mediação, respeitar a autonomia de cada sistema jurídico e, ao mesmo tempo, buscar a consolidação de valores fundamentais que transcendam as diferenças.
A participação ativa dos cidadãos é crucial para garantir que essas estratégias sejam representativas e reflitam as aspirações coletivas.
Em última análise, a harmonização da noção do justo como base para o pluralismo jurídico não é uma questão normativa, mas uma busca pela construção da noção de ser humano e de ser cidadão. É uma busca para construir-se, equilibrando as partes que compõem a consciência de cada um, cumprindo a função de civilidade, compreendo as nossas responsabilidades e conhecendo os direitos, os valores e obrigações pactuadas pela sociedade.
Essa jornada exige um comprometimento contínuo com o diálogo, a adaptação flexível e a promoção de princípios e valores compartilhados, e assim a sociedade seguirá pavimentando o caminho para uma: “cidade justa e harmoniosa”.
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VÁZQUEZ, Correas O. El pluralismo jurídico. Un desafío al Estado contemporáneo. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, 41(168). http://revistas.unam.mx/index.php/rmspys/article/download/49392/44434
Professora de Direito; Assessora Jurídica na Prefeitura Municipal de Toledo –Mg; Bacharela em Direito, Especialista em Direito Público, Mestranda em Direito .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LETICIA REGINA ANÉZIO, . Reflexões sobre a harmonização das noções do justo nos pluralismos jurídicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 fev 2024, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /64694/reflexes-sobre-a-harmonizao-das-noes-do-justo-nos-pluralismos-jurdicos. Acesso em: 29 dez 2024.
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