Brasília, 3 a 11 de novembro de 2016 - Nº 846.
Este Informativo, elaborado a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário, contém resumos não-oficiais de decisões proferidas pelo Tribunal. A fidelidade de tais resumos ao conteúdo efetivo das decisões, embora seja uma das metas perseguidas neste trabalho, somente poderá ser aferida após a sua publicação no Diário da Justiça.
SUMÁRIO
Plenário
Réu em processo-crime e substituição presidencial
Crimes contra a humanidade e prescrição - 2
Repercussão Geral
Protesto de CDA e sanção política
Petrobras e imunidade
Imunidades tributárias e empresas optantes pelo SIMPLES
1ª Turma
Latrocínio: pluralidade de vítimas fatais e concurso formal
Repercussão Geral
Clipping do DJe
Transcrições
Trabalho escravo - Juiz absolutamente incompetente - Recebimento da denúncia que não interrompe a prescrição penal - Juiz natural - Função do Processo Penal (AP 635/GO)
PLENÁRIO
Réu em processo-crime e substituição presidencial
O Plenário iniciou julgamento de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) em que se discute a possibilidade de parlamentar réu em ação penal ocupar a presidência da Câmara dos Deputados.
O Colegiado, preliminarmente e por maioria, conheceu da ação constitucional, cujo pedido revela o fato de estar, à época, presidindo a Câmara dos Deputados parlamentar com denúncia recebida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), portanto réu em processo-crime. Segundo a inicial, esse seria um ato do poder público contrário à Constituição.
O deslinde acerca da discussão principal depende de interpretação do texto constitucional, tarefa do STF. Portanto, não cabe ao legislador positivo interpretar se é cabível réu em processo-crime na Suprema Corte ser presidente de uma das Casas do Congresso Nacional ou do STF, figurando na linha de substituição da presidência da República.
O ministro Celso de Mello salientou que a mera possibilidade de haver lesão a preceito fundamental basta para legitimar a utilização da ADPF por quem dispõe de legitimidade ativa para ajuizá-la. Ademais, no caso em tela, está presente o requisito da subsidiariedade. O tema tem relevo suficiente a permitir a instauração do processo objetivo.
Vencido, quanto à preliminar, o ministro Dias Toffoli, que julgava o pedido prejudicado. Para ele, não havia mais situação concreta, pois o parlamentar já teria sido afastado da presidência da Câmara, e a Corte não poderia funcionar como órgão consultivo.
No mérito, o ministro Marco Aurélio (relator), acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Celso de Mello, julgou o pedido procedente. Entendeu que os réus em processo-crime no STF não podem ocupar cargo cujas atribuições constitucionais incluam a substituição da presidência da República.
Para o relator, quando uma pessoa que reúne essas condições assume a presidência da República, gera-se um estado de grave perplexidade, a implicar desvio ético-jurídico. A teor do disposto no art. 86 da Constituição, admitida acusação contra o presidente da República, por 2/3 da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o STF, nas infrações comuns. Recebida a denúncia, é automática a suspensão das funções exercidas.
A impossibilidade de réu em processo-crime ocupar o aludido cargo é uma decorrência do sistema constitucional. Portanto, a linha de substituição do presidente e do vice-presidente da República deve ser composta de pessoas que não estejam na condição de réu.
Embora envolva cidadãos, a linha de substitutos do presidente da República diz respeito ao Legislativo e ao Judiciário, enfatizando a importância das Casas Legislativas e do STF.
O preceito constitucional é cogente e não contempla a substituição do titular de qualquer das presidências nem a possibilidade de, impedido o primeiro da ordem de substituição, vir a ser chamado o subsequente. Assim, está excluída a substituição do presidente da Câmara, do Senado, do STF, bem como passar-se ao segundo da cadeia de substitutos ante o fato de o primeiro, na ordem preferencial, ser réu.
Em seguida, o ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos.
ADPF 402/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 3.11.2016. (ADPF-402)
Crimes contra a humanidade e prescrição - 2
O Plenário, em conclusão e julgamento e por maioria, indeferiu pedido de extradição formulado pelo Governo da Argentina em desfavor de um nacional, ao qual imputada a suposta prática de delitos de lesa-humanidade. Ele é investigado por crimes correspondentes, no Código Penal brasileiro, aos de homicídio qualificado, sequestro e associação criminosa. Os delitos teriam sido cometidos quando o extraditando integrava o grupo terrorista “Triple A”, em atividade entre os anos 1973 e 1975, cujo objetivo era o sequestro e o assassinato de cidadãos argentinos contrários ao governo então vigente naquele país — v. Informativos 842 e 844.
O Colegiado considerou estar extinta a punibilidade dos crimes imputados ao extraditando, nos termos da legislação brasileira, e de não ter sido atendido, portanto, o requisito da dupla punibilidade.
Destacou a jurisprudência nesse sentido, e relembrou o art. 77, VI, do Estatuto do Estrangeiro e o art. III, “c”, do tratado de extradição entre Brasil e Argentina quanto à vedação do pleito extradicional quando extinta a punibilidade pela prescrição.
Apresentou também o posicionamento da Corte em casos semelhantes, nos quais o pedido de extradição teria sido deferido apenas quanto aos crimes reputados de natureza permanente e considerados não prescritos, em virtude da não cessação da permanência, situação diversa da ora analisada.
Relativamente à qualificação dos delitos imputados ao extraditando como de lesa-humanidade, entendeu que essa circunstância não afasta a aplicação da citada jurisprudência.
A Corte se referiu a fundamentos expostos na ADPF 153/DF, no sentido da não aplicação, no Brasil, da imprescritibilidade dos crimes dessa natureza, haja vista o País não ter subscrito a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, nem ter a ela aderido, e, ainda, em razão de somente lei interna poder dispor sobre prescritibilidade ou imprescritibilidade da pretensão estatal de punir.
Ponderou que, mesmo se houvesse norma de direito internacional de caráter cogente a estabelecer a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, ela não seria aplicável no Brasil, por não ter sido ainda reproduzida no direito interno. Portanto, o Estatuto de Roma, considerado norma de estatura supralegal ou constitucional, não elidiria a força normativa do art. 5º, XV, da Constituição da República, que veda a retroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o réu.
Em seguida, o Plenário afastou a ofensa ao art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Não ocorre, no caso, invocação de limitações de direito interno para justificar o inadimplemento do tratado de extradição entre Brasil e Argentina, mas simples incidência de limitação prevista nesse tratado.
Concluiu que, estando prescritos os crimes, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, eventual acolhimento do pedido extradicional ofenderia o próprio tratado de extradição, que demanda a observância do requisito da dupla punibilidade.
Vencidos os ministros Edson Fachin (relator), Roberto Barroso, Rosa Weber, que reajustou o voto, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia (presidente), todos pelo indeferimento do pedido. Em seguida, o Tribunal determinou a expedição de alvará de soltura em favor do extraditando.
Ext 1362/DF, rel. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Teori Zavascki, julgamento em 9.11.2016. (Ext-1362)
Parte 1:
Parte 2:
Protesto de CDA e sanção política
O protesto das Certidões de Dívida Ativa (CDA) constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política.
Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado em ação direta ajuizada contra o parágrafo único do art. 1º da Lei 9.492/1997, incluído pela Lei 12.767/2012 (“Parágrafo único. Incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as Certidões de Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas”).
O Tribunal afastou a alegação de inconstitucionalidade formal do dispositivo atacado. A requerente aduzia ter havido afronta ao devido processo legislativo e à separação de poderes, em virtude de ter sido inserido por emenda na Medida Provisória 577/2012, que versava sobre questões totalmente diversas, relativas ao serviço público de energia elétrica.
Observou que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 5.127 (DJE de 27.9.2016), entendeu que a prática de introduzir emendas sobre matérias estranhas às medidas provisórias, consolidada no Congresso Nacional, constitui costume contrário à Constituição.
Entretanto, diante dos consideráveis efeitos adversos que adviriam da declaração de inconstitucionalidade de todas as medidas provisórias já aprovadas, ou ainda em tramitação, com vício semelhante, e do fato de estar-se a afirmar um novo entendimento sobre a matéria, a Corte atribuiu eficácia “ex nunc” à decisão. Ficaram, assim, preservadas, até a data daquele julgamento, todas as leis oriundas de projetos de conversão de medidas provisórias com semelhante vício, já aprovadas ou em tramitação no Congresso Nacional, incluindo o dispositivo impugnado na presente ação direta.
No que se refere às impugnações materiais, a tese central defendida é a de que o protesto da Certidão de Dívida Ativa pelo fisco constitui “sanção política” – pois seria uma medida extrajudicial que restringe de forma desproporcional os direitos fundamentais dos contribuintes ao devido processo legal, à livre iniciativa e ao livre exercício profissional – imposta, de forma indireta, para pressioná-los a quitar seus débitos tributários.
Ponderou que, de acordo com a jurisprudência desta Corte sobre o tema, é possível concluir não bastar que uma medida coercitiva do recolhimento do crédito tributário restrinja direitos dos contribuintes devedores para que ela seja considerada uma sanção política. Exige-se, além disso, que tais restrições sejam reprovadas no exame de proporcionalidade e razoabilidade.
Afirmou que a utilização do instituto pela Fazenda Pública não viola o princípio do devido processo legal. Rememorou que, no regime jurídico atual, a execução fiscal constitui o mecanismo próprio de cobrança judicial da Dívida Ativa (Lei 6.830/1980, art. 38). No entanto, embora a Lei 6.830/1980 eleja o executivo fiscal como instrumento típico para a cobrança da Dívida Ativa em sede judicial, ela não exclui a possibilidade de instituição e manejo de mecanismos extrajudiciais de cobrança. Por sua vez, o protesto é justamente um instrumento extrajudicial que pode ser empregado para a cobrança de certidões de dívida, com expressa previsão legal, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.492/1997.
Segundo assentou, não há, assim, qualquer incompatibilidade entre ambos os instrumentos. Eles são até mesmo complementares. Frustrada a cobrança pela via do protesto, o executivo fiscal poderá ser normalmente ajuizado pelo fisco. E mais: em relação à cobrança de créditos de pequeno valor, o protesto será, muitas vezes, a única via possível. Diversas Fazendas optaram por autorizar o não ajuizamento de execuções fiscais nos casos em que o custo da cobrança judicial seja superior ao próprio valor do crédito. Mesmo na ausência de lei sobre o tema, alguns juízes e tribunais locais passaram a extinguir execuções fiscais por falta de interesse processual na hipótese.
Além disso, o protesto não impede o devedor de acessar o Poder Judiciário para discutir a validade do crédito tributário ou para sustar o protesto. Tampouco exclui a possibilidade de o protestado pleitear judicialmente uma indenização, caso o protesto seja indevido. Inexiste, assim, qualquer mácula à inafastabilidade do controle judicial. Por esses motivos, não se vislumbra fundamento constitucional ou legal que impeça o Poder Público de estabelecer, por via de lei, o protesto como modalidade extrajudicial e alternativa de cobrança de créditos tributários. Portanto, o protesto de Certidões da Dívida Ativa não importa em qualquer restrição ao devido processo legal.
Ademais, o protesto de Certidões de Dívida Ativa não representa um efetivo embaraço ao regular exercício das atividades empresariais e ao cumprimento dos objetos sociais dos administrados. Sua principal finalidade é dar ao mercado conhecimento a respeito da existência de débitos fiscais e permitir a sua cobrança extrajudicial. Desse modo, a medida não impacta diretamente a vida da empresa. Diversamente dos casos julgados por esta Corte em que se concluiu pela violação à livre iniciativa, o protesto não compromete a organização e a condução das atividades societárias – tal como ocorre nas hipóteses de interdição de estabelecimento, apreensão de mercadorias, restrições à expedição de notas fiscais e limitações à obtenção de registros ou à prática de atos necessários ao seu funcionamento – nem restringe, efetivamente, a livre iniciativa e a liberdade de exercício profissional. Quando muito, ele pode promover uma pequena restrição a tais direitos pela restrição creditícia, que, justamente por ser eventual e indireta, não atinge seus núcleos essenciais.
A última alegação da requerente é a de que o protesto de CDAs violaria o princípio da proporcionalidade, pois tal instrumento constituiria meio inadequado para alcançar as finalidades do instituto, e desnecessário, uma vez que o fisco teria meios especiais e menos gravosos para a satisfação do crédito tributário.
Em relação à adequação da medida, cabe verificar se o protesto de Certidões de Dívida Ativa é idôneo para atingir os fins pretendidos, isto é, se as restrições impostas aos direitos fundamentais dos devedores são aptas a promover os interesses contrapostos.
Com a edição da Lei 9.492/1997, registrou-se sensível ampliação do rol de títulos sujeitos a protesto, que passou a incluir, além dos cambiais, “títulos e outros documentos de dívida”. Hoje, portanto, podem ser protestados quaisquer títulos executivos, judiciais ou extrajudiciais, desde que dotados de liquidez, certeza e exigibilidade, nos termos do art. 783 do Código de Processo Civil de 2015.
A partir dessa alteração legislativa, o protesto passou também a desempenhar outras funções além da meramente probatória. De um lado, ele representa instrumento para constituir o devedor em mora e comprovar o descumprimento da obrigação. De outro, confere ampla publicidade ao inadimplemento e consiste em meio alternativo e extrajudicial para a cobrança da dívida.
Portanto, a remessa da Certidão da Dívida Ativa a protesto é medida plenamente adequada às novas finalidades do instituto. Ela confere maior publicidade ao descumprimento das obrigações tributárias e serve como importante mecanismo extrajudicial de cobrança, contribuindo para estimular a adimplência, incrementar a arrecadação e promover a justiça fiscal, impedindo que devedores contumazes possam extrair vantagens competitivas indevidas da sonegação de tributos. Por evidente, a origem cambiária do instituto não pode representar um óbice à evolução e à utilização do instituto em sua feição jurídica atual.
O protesto é, em regra, mecanismo que causa menor sacrifício ao contribuinte, se comparado aos demais instrumentos de cobrança disponíveis, em especial a Execução Fiscal. Por meio dele, exclui-se o risco de penhora de bens, rendas e faturamentos e de expropriação do patrimônio do devedor, assim como se dispensa o pagamento de diversos valores, como custas, honorários sucumbenciais, registro da distribuição da execução fiscal e se possibilita a redução do encargo legal.
Assim, o protesto de Certidões de Dívida Ativa proporciona ganhos que compensam largamente as leves e eventuais restrições aos direitos fundamentais dos devedores. Daí por que, além de adequada e necessária, a medida é também proporcional em sentido estrito. Ademais, não configura uma “sanção política”, já que não constitui medida coercitiva indireta que restrinja, de modo irrazoável ou desproporcional, direitos fundamentais dos contribuintes, com o objetivo de forçá-los a quitar seus débitos tributários. Tal instrumento de cobrança é, portanto, constitucional.
Por fim, em atenção aos princípios da impessoalidade e da isonomia, é recomendável a edição de regulamentação, por ato infralegal que explicite os parâmetros utilizados para a distinção a ser feita entre os administrados e as diversas situações de fato existentes.
A declaração de constitucionalidade do protesto de Certidões de Dívida Ativa pela Administração Tributária traz como contrapartida o dever de utilizá-lo de forma responsável e consentânea com os ditames constitucionais. Assim, nas hipóteses de má utilização do instrumento, permanecem os juízes de primeiro grau e os demais tribunais do País com a prerrogativa de promoverem a revisão de eventuais atos de protesto que, à luz do caso concreto, estejam em desacordo com a Constituição e com a legislação tributária, sem prejuízo do arbitramento de uma indenização compatível com o dano sofrido pelo administrado.
Vencidos os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que julgavam procedente o pedido. Pontuavam tratar-se de sanção política a afrontar a atividade econômica lícita, o devido processo legal e o direito de ampla defesa do contribuinte. Ressaltavam que o protesto seria um ato unilateral da administração, sem qualquer participação do contribuinte e teria como único objetivo constranger o devedor. Frisavam haver outros meios menos onerosos para a cobrança dos débitos. Ademais, no momento que a CDA fosse submetida a um protesto, o contribuinte sofreria cerceamento de crédito, o que restringiria suas atividades do dia a dia.
O ministro Marco Aurélio, além do aspecto material, reconhecia a inconstitucionalidade formal da norma em razão de ofensa ao devido processo legislativo, pois a emenda que resultou no dispositivo atacado não tinha pertinência com a matéria tratada na medida provisória. Além disso, não participou da fixação da tese.
ADI 5135/DF, rel. Min. Roberto Barroso, 3 e 9.11.2016. (ADI-5135)
Parte 1:
Parte 2:
Parte 3:
O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário em que se discute se a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal pode ser estendida a sociedade de economia mista arrendatária de terreno localizado em área portuária pertencente à União.
No caso, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo concluiu ser a Petróleo Brasileiro S.A. (PETROBRAS) parte legítima para figurar como devedora do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) incidente sobre imóvel localizado no Porto de Santos.
O ministro Marco Aurélio (relator) conheceu do recurso, mas a ele negou provimento. Para ele, a imunidade tributária recíproca de natureza subjetiva, que envolve pessoas jurídicas de direito público, não se estende para além das situações do art. 150, § 2º, da Constituição Federal. O relator declarou que tanto as sociedades de economia mista quanto as empresas públicas sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, por força do art. 173, § 2º, do Diploma Maior.
Ressaltou que o fato de o imóvel pertencente à União ser utilizado para a persecução de interesse público não atrai a imunidade quanto ao IPTU, haja vista que a recorrente é sociedade de economia mista com capital social negociado na bolsa de valores, ou seja, é pessoa jurídica de direito privado com claro objetivo de auferir lucro.
O ministro frisou, tendo em conta a limitação imposta pelo § 3º do art. 150 da Constituição, que, se as pessoas jurídicas de direito público que exploram atividade econômica não gozam da imunidade, as de direito privado também não poderiam fazê-lo.
Ademais, o reconhecimento da imunidade recíproca, no caso, implica violação ao princípio da livre concorrência estampado no art. 170 da Carta Magna, por conferir vantagem indevida a pessoa jurídica de direito privado, não existente para os concorrentes.
Por fim, à luz dos arts. 32 e 34 do Código Tributário Nacional (CTN), no sentido de que a hipótese de incidência do IPTU abrange não só a propriedade, mas também o domínio útil e a posse do imóvel, e de que o contribuinte do IPTU é tanto o proprietário do imóvel como o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título, o ministro Marco Aurélio concluiu não se poder falar em ausência de legitimidade da recorrente para figurar no polo passivo da relação jurídica tributária.
Em divergência, o ministro Edson Fachin deu provimento ao recurso, na linha da jurisprudência da Corte.
Explicou, inicialmente, que o IPTU é um imposto de natureza real e que, portanto, a natureza jurídica do bem público cedido onerosamente, ou seja, submetido, ou não, ao regime de arrendamento, não se altera. Dessa forma, aquele que o recebe como possuidor direto não é possuidor com “animus domini”.
O ministro Edson Fachin observou ser fato incontroverso nos autos que a União é proprietária do terreno localizado na área portuária do município de Santos e que isso atrai a incidência da imunidade recíproca com base no art. 150, VI, “a”, da CF.
Ao citar os arts. 1º, 2º e 4º da Lei 12.815/2013, que dispõe sobre a exploração direta e indireta pela União de portos e instalações portuárias e sobre as atividades desempenhadas pelos operadores portuários, afirmou que o contrato de arrendamento de área aeroportuária firmado entre a Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP) e a sociedade de economia mista exploradora de atividade econômica não torna o cessionário sujeito passivo de obrigação tributária referente ao IPTU ou converte o domínio patrimonial da estatalidade em regime atinente aos direitos reais de propriedade, pelo menos para fins tributários.
No que tange ao art. 34 do CTN, considerou a interpretação da jurisprudência e da doutrina pátrias no sentido de que a liberdade de conformação legislativa do ente tributante está adstrita à posse que, por si só, possa conduzir à propriedade, haja vista ser incompatível com a Constituição Federal a eleição de meros detentores de terras públicas como contribuintes de IPTU.
Por fim, sustentou inexistir concessão de benefício fiscal a pessoa jurídica de direito privado da Administração Pública Indireta não estendida às demais sociedades empresariais do setor privado. Esse raciocínio não se coaduna com o procedimento licitatório prévio e com os regimes diferenciados de exploração dos portos e do petróleo.
Em seguida, o ministro Roberto Barroso pediu vista dos autos.
RE 594015/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10.11.2016. (RE-594015)
Imunidades tributárias e empresas optantes pelo SIMPLES
O Plenário iniciou o julgamento de recurso extraordinário em que se discute o reconhecimento a contribuinte optante pelo Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (SIMPLES) das imunidades tributárias previstas nos artigos 149, § 2º, I e 153, § 3º, III, da Constituição Federal (CF).
O acórdão impugnado assentou a impropriedade de se conjugarem dois benefícios fiscais em tese incompatíveis, criando-se um sistema híbrido de tributação. Consignou, ainda, ser inviável individualizar a parcela referente a cada tributo no regime unificado de recolhimento.
O recorrente alega que as imunidades constituiriam vedações absolutas ao poder de tributar, não devendo ser limitadas pelo legislador infraconstitucional nem pelas autoridades tributárias. Sustenta que, a partir da vigência da Emenda Constitucional 33/2001, as receitas decorrentes de exportação teriam deixado de integrar a base de cálculo das contribuições sociais. Defende, ainda, ser incabível, nas imunidades objetivas, o estabelecimento de condicionantes fáticas para o implemento do benefício. Argumenta, por fim, que a tese adotada pelo Tribunal de origem restringiria a imunidade às empresas de médio e grande porte.
O ministro Marco Aurélio (relator) deu provimento ao recurso. Para ele, a imunidade tributária é garantia constitucional que afasta a incidência do tributo, ao passo que a isenção decorre de lei e torna o tributo inexigível, embora os elementos da obrigação tributária estejam configurados: a definição de espécie, o fato gerador, a base de cálculo e a definição de contribuinte.
Entendeu que o Tribunal de origem, ao reconhecer que a opção pelo SIMPLES impede a concessão de imunidades tributárias, introduziu exceção não prevista no texto constitucional (relativa à qualificação do contribuinte), colocando em segundo plano os objetivos previstos nos arts. 170, IX, e 179 da Constituição.
Asseverou que o tratamento mais favorável conferido às empresas optantes pelo SIMPLES pressupõe a existência de obrigação tributária. Inexistente a obrigação de pagar o tributo, em razão da imunidade, não se verifica o elemento básico para a observância da disciplina do SIMPLES.
Ademais, afirmou que, ao estabelecer as alíquotas devidas para os segmentos econômicos que optarem pelo regime diferenciado, a Lei 9.317/1996 especifica o percentual correspondente a cada tributo. Isso possibilita a verificação do alcance da imunidade tributária.
Sustentou que a opção pelo SIMPLES não afasta as imunidades previstas nos arts. 149, § 2º, I, e 153, § 3º, III, da Constituição, e que os institutos da imunidade e do sistema integrado de pagamentos de tributos são diversos, não se mesclam nem são passíveis de compensação.
O ministro Edson Fachin acompanhou em parte o relator. Pontuou que a não incidência estabelecida constitucionalmente não pode ser excepcionada por legislação infraconstitucional. No entanto, ressaltou que, conforme precedentes da Corte, a imunidade relativa a receitas de exportação não alcança as contribuições sobre o lucro e a folha de salários.
Em seguida, o ministro Luiz Fux pediu vista dos autos.
RE 598468/SC, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10.11.2016. (RE-598468)
PRIMEIRA TURMA
Latrocínio: pluralidade de vítimas fatais e concurso formal
A Primeira Turma iniciou julgamento de recurso ordinário em “habeas corpus” em que se pretende a desclassificação do delito de latrocínio para o de roubo, assim como a exclusão do concurso formal impróprio reconhecido quanto aos crimes de latrocínio.
No caso, o recorrente foi condenado a 42 anos de reclusão pela prática das condutas previstas nos arts. 148 (sequestro e cárcere privado), 157, § 3º, segunda parte (latrocínio), por duas vezes, e 211 (ocultação de cadáver) do Código Penal (CP/1940). Reconheceu-se, ainda, o concurso formal impróprio com relação aos crimes de latrocínio, considerada a existência de duas vítimas fatais.
A defesa pretende a desclassificação do delito de latrocínio para o de roubo, ante a ausência de provas de que o recorrente teria concorrido para a morte das vítimas, bem como em razão da participação de menor importância na prática delituosa. Pede, também, a exclusão do concurso formal de crimes, por entender ter havido apenas um latrocínio, não obstante a pluralidade de mortes. Requer, por fim, o reconhecimento do direito à progressão ao regime semiaberto.
O ministro Marco Aurélio (relator) deu parcial provimento ao recurso. Quanto à desclassificação pretendida, consignou que o Juízo sentenciante, em harmonia com o ordenamento jurídico, julgou ter o recorrente contribuído ativamente para a realização do delito, em unidade de desígnios e mediante divisão de tarefas, com pleno domínio do fato. Além disso, o agente teria assumido o risco de produzir resultado mais grave, ciente de que atuava em crime de roubo, no qual as vítimas foram mantidas em cárcere sob a mira de arma de fogo. Segundo o relator, aquele que se associa a comparsa para a prática de roubo, sobrevindo a morte da vítima, responde pelo crime de latrocínio, ainda que não tenha sido o autor do disparo fatal ou que sua participação se revele de menor importância.
No tocante ao reconhecimento de crime único, ponderou que latrocínio é delito complexo, cuja unidade não se altera em razão da existência de mais de uma vítima fatal. Acrescentou, por fim, que a pluralidade de vítimas é insuficiente para configurar o concurso de crimes, uma vez que, na espécie, o crime fim arquitetado foi o de roubo (CP/1940, art. 157, § 3º), e não o de duplo latrocínio.
O ministro Edson Fachin acompanhou o relator. Os ministros Roberto Barroso e Rosa Weber negaram provimento ao recurso, por entenderem que, diante da ocorrência de duplo homicídio, estaria configurado o concurso formal de crimes. Em seguida, o ministro Luiz Fux pediu vista dos autos.
RHC 133575/PR, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 8.11.2016. (RHC-133575)
Sessões |
Ordinárias |
Extraordinárias |
Julgamentos |
Julgamentos por meio eletrônico* |
Pleno |
09.11.2016 |
03 e 10.11.2016 |
6 |
63 |
1ª Turma |
08.11.2016 |
— |
47 |
81 |
2ª Turma |
— |
— |
— |
24 |
* Emenda Regimental /2016-STF. Sessão virtual de 04 a 10 de novembro de 2016.
R E P E R C U S S Ã O G E R A L
DJe de 3 a 11 de novembro de 2016
REPERCUSSÃO GERAL EM RE N. 971.959-RS
RELATOR: MIN. LUIZ FUX
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE FUGA DO LOCAL DO ACIDENTE. ARTIGO 305 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DO TIPO PENAL À LUZ DO ART. 5º, LXIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. RE Nº 971.959. TEMA Nº 907.
Decisão Publicada: 1
03 a 11 de novembro de 2016
EMB. DECL. NO RE N. 599.362-RJ
RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI
EMENTA: Embargos de declaração no recurso extraordinário. Artigo 146, III, c, da CF/88. Possibilidade de tributação do ato cooperativo. Cooperativa. Contribuição ao PIS. Receita ou faturamento. Incidência. Fixação de tese restrita ao caso concreto. Embargos acolhidos sem efeitos infringentes.
1. A norma do art. 146, III, c, da Constituição, que assegura o adequado tratamento tributário do ato cooperativo, é dirigida, objetivamente, ao ato cooperativo, e não, subjetivamente, à cooperativa.
2. O art. 146, III, c, da CF/88, não confere imunidade tributária, não outorga, por si só, direito subjetivo a isenções tributárias relativamente aos atos cooperativos, nem estabelece hipótese de não incidência de tributos, mas sim pressupõe a possibilidade de tributação do ato cooperativo, dispondo que lei complementar estabelecerá a forma adequada para tanto.
3. O tratamento tributário adequado ao ato cooperativo é uma questão política, devendo ser resolvido na esfera adequada e competente, ou seja, no Congresso Nacional.
4. No contexto das sociedades cooperativas, verifica-se a materialidade da contribuição ao PIS pela constatação da obtenção de receita ou faturamento pela cooperativa, consideradas suas atividades econômicas e seus objetos sociais, e não pelo fato de o ato do qual o faturamento se origina ser ou não qualificado como cooperativo.
5. Como, nos autos do RE nº 672.215/CE, Rel. Min. Roberto Barroso, o tema do adequado tratamento tributário do ato cooperativo será retomado, a fim de se dirimir controvérsia acerca da cobrança de contribuições sociais destinadas à Seguridade Social, incidentes, também, sobre outras materialidades, como o lucro, tendo como foco os conceitos constitucionais de “ato cooperativo”, “receita de atividade cooperativa” e “cooperado” e, ainda, a distinção entre “ato cooperado típico” e “ato cooperado atípico”, proponho a seguinte tese de repercussão geral para o tema 323, diante da preocupação externada por alguns Ministros no sentido de adotarmos, para o caso concreto, uma tese minimalista: “A receita ou o faturamento auferidos pelas Cooperativas de Trabalho decorrentes dos atos (negócios jurídicos) firmados com terceiros se inserem na materialidade da contribuição ao PIS/Pasep.”
6. Embargos de declaração acolhidos para prestar esses esclarecimentos, mas sem efeitos infringentes.
*noticiado no Informativo 835
HC N.131.771-RJ
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
MUNIÇÃO – PORTE – QUANTIDADE – TIPICIDADE. A configuração do crime previsto no artigo 14 da Lei nº 10.826/2003 independe da quantidade de munição portada pelo agente.
*noticiado no Informativo 844
MS N.33.406-DF
REDATOR P/ O ACÓRDÃO: MIN. ROBERTO BARROSO
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA QUE INVALIDOU CRITÉRIO ESTABELECIDO PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO PARA AFERIÇÃO DE TÍTULOS DE ESPECIALIZAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO VOLTADO À OUTORGA DE DELEGAÇÕES DE NOTAS E REGISTROS. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA.
1. A criação de critério ad hoc de contagem de títulos de pós-graduação, após a abertura da fase de títulos e da apresentação dos certificados pelos candidatos, constitui flagrante violação ao princípio da segurança jurídica e da impessoalidade.
2. Impossibilidade de aplicação retroativa da Resolução nº 187/2014 do CNJ ao presente concurso, em respeito à modulação dos efeitos efetuada pelo CNJ e aos precedentes desta Corte sobre a matéria.
3. Denegação da segurança, com revogação da liminar anteriormente deferida e prejuízo dos agravos regimentais.
*noticiado no Informativo 808
Pet N. 5.946-DF
REDATOR P/ O ACÓRDÃO: MIN. EDSON FACHIN
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM FACE DE DECISÃO MONOCRÁTICA DE RELATOR NO STF. PEDIDO DE COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL. AUXÍLIO DIRETO. PLEITO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PORTUGUÊS. TRATADO DE AUXÍLIO MÚTUO EM MATÉRIA PENAL. DECRETO 1.320/94. OITIVA DE PRESO. CUSTÓDIA PARA FINS DE EXTRADIÇÃO SUBMETIDA AO STF. COMPETÊNCIA. CARTA ROGATÓRIA E EXEQUATUR NO STJ. DESNECESSIDADE. AGRAVO PROVIDO.
1. O pedido de cooperação jurídica internacional, na modalidade de auxílio direto, possui natureza distinta da carta rogatória. Nos moldes do disposto nos arts. 28, 33, caput, e 40, todos do Código de Processo Civil, caberá auxílio direto quando “a medida não decorrer diretamente de decisão de autoridade jurisdicional estrangeira”, enquanto necessitará de carta rogatória quando for o caso de cumprir decisão jurisdicional estrangeira.
2. Formulado pedido de assistência direta pelo Ministério Público português ao Parquet brasileiro, com base em tratado internacional de mútua cooperação em matéria penal, firmado entre Brasil e Portugal – Decreto 1.320/1994 –, o cumprimento em território pátrio depende de mero juízo de delibação, sendo desnecessária a atuação homologatória em exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça.
3. Encontrando-se o preso sob a custódia do Supremo Tribunal Federal, para fins de extradição, a esta Corte deve ser dirigida a comunicação de que o custodiado será ouvido em razão de pedido de cooperação formulado pela autoridade central portuguesa e encaminhado ao Ministério Público brasileiro.
4. Agravo regimental provido.
*noticiado no Informativo 835
MED. CAUT. EM ADI N. 5.394-DF
RELATOR: MIN. TEORI ZAVASCKI
EMENTA: CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. ART. 28, § 12, DA LEI FEDERAL 9.504/97 (LEI DAS ELEIÇÕES). PRESTAÇÃO DE CONTAS. DOAÇÕES DE PARTIDOS PARA CANDIDATOS. DISPENSA DA IDENTIFICAÇÃO DOS PARTICULARES RESPONSÁVEIS PELA DOAÇÃO AO PARTIDO. MEDIDA ANTAGÔNICA À POLÍTICA PÚBLICA DE TRANSPARÊNCIA. APARENTE AFRONTA AO BLOCO DE PRINCÍPIOS DE SUSTENTAÇÃO DO SISTEMA DEMOCRÁTICO DE REPRESENTAÇÃO POPULAR. CAUTELAR CONCEDIDA.
1. Os dados relativos aos doadores de campanha interessa não apenas às instâncias estatais de controle da regularidade do processo eleitoral, mas à sociedade como um todo, e sua divulgação é indispensável para habilitar o eleitor a fazer uma prognose mais realista da confiabilidade das promessas de campanha de candidatos e partidos.
2. O esclarecimento público da realidade do financiamento de campanhas (a) qualifica o exercício da cidadania, permitindo uma decisão de voto melhor informada; (b) capacita a sociedade civil, inclusive os partidos e candidatos que concorrem entre si, a cooperar com as instâncias estatais na verificação da legitimidade do processo eleitoral, fortalecendo o controle social sobre a atividade político-partidária; e (c) propicia o aperfeiçoamento da própria política legislativa de combate à corrupção eleitoral, ajudando a denunciar as fragilidades do modelo e a inspirar propostas de correção futuras.
3. Sem as informações necessárias, dentre elas a identificação dos particulares que contribuíram originariamente para legendas e candidatos, o processo de prestação de contas perde sua capacidade de documentar “a real movimentação financeira, os dispêndios e recursos aplicados nas campanhas eleitorais” (art. 34, caput, da Lei 9.096/95), obstruindo o cumprimento, pela Justiça Eleitoral, da relevantíssima competência estabelecida no art. 17, III, da CF.
4. Medida cautelar deferida para suspender, até o julgamento final desta ação, com eficácia ex tunc, a expressão “sem individualização dos doadores”, constante da parte final do § 12 do art. 28 da Lei federal 9.504/97, acrescentado pela Lei 13.165/15.
*noticiado no Informativo 807
Acórdãos Publicados: 548
TRANSCRIÇÕES
Com a finalidade de proporcionar aos leitores do INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da comunidade jurídica.
Trabalho escravo - Juiz absolutamente incompetente - Recebimento da denúncia que não interrompe a prescrição penal - Juiz natural - Função do Processo Penal (Transcrições)
AP 635/GO*
RELATOR: Ministro Celso de Mello
EMENTA: TRABALHO ESCRAVO (CP, ART. 149). DENÚNCIA OFERECIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. PEÇA ACUSATÓRIA RECEBIDA PELO JUIZ DE DIREITO DA COMARCA. AUTORIDADES LOCAIS ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTES. NULIDADE RADICAL DOS ATOS PROCESSUAIS POR ELAS PRATICADOS. AUSÊNCIA DE EFICÁCIA INTERRUPTIVA DA PRESCRIÇÃO PENAL EM VIRTUDE DE O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA HAVER RESULTADO DE DELIBERAÇÃO PROFERIDA POR JUIZ INCOMPETENTE “RATIONE MATERIAE”. NÃO INCIDÊNCIA DO ART. 117, N. I, DO CÓDIGO PENAL, QUANDO A DECISÃO QUE RECEBE A DENÚNCIA EMANA DE AUTORIDADE JUDICIÁRIA ABSOLUTAMENTE INCOMPETENTE. MAGISTÉRIO JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A ESSE RESPEITO. DOUTRINA. COMPETÊNCIA PENAL, NO CASO, DA JUSTIÇA FEDERAL (CF, ART. 109, VI). PRECEDENTES (STF). A IMPORTÂNCIA POLÍTICO-JURÍDICA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL (CF, art. 5º, LIII). DOUTRINA. PRECEDENTES. INVALIDAÇÃO DOS ATOS DE PERSECUÇÃO PENAL DESDE A DENÚNCIA, INCLUSIVE. CONSEQUENTE NULIDADE DO ATO DECISÓRIO QUE RECEBEU A DENÚNCIA. POSSIBILIDADE DE RENOVAÇÃO DOS ATOS PROCESSUAIS, DESTA VEZ PERANTE O STF, POR TRATAR-SE DE IMPUTADO COM PRERROGATIVA DE FORO (CF, ART. 102, n. I, “c”). INOCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE, DE PRESCRIÇÃO PENAL. PEDIDO DEFERIDO EM PARTE.
DECISÃO: Trata-se de ação penal ajuizada contra o Deputado Federal Paulo Roberto Gomes Mansur, vulgo “Beto Mansur”, e outros corréus, denunciados pela suposta prática de atos caracterizadores do crime tipificado no art. 149 do Código Penal (fls. 02/15, vol. 01).
Registre-se que a denúncia contra os acusados, formulada pelo Promotor de Justiça local, foi recebida pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara da comarca de Porangatu/GO, em 27/09/2006 (fls. 393, vol. 02), quando o réu Paulo Roberto Gomes Mansur ainda não ostentava a condição de parlamentar federal, eis que a sua diplomação somente ocorreu em 19/12/2006 (fls. 506, vol. 03).
Cumpre destacar, por necessário, que, acolhendo a promoção do Ministério Público Federal, determinei, nos autos do Inq 2.496/GO (que se transformou na presente ação penal), o desmembramento desta causa em relação aos denunciados que não possuíam prerrogativa de foro (fls. 572/576) perante o STF, subsistindo a competência penal originária desta Suprema Corte unicamente quanto ao Deputado Federal “Beto Mansur”.
Em manifestação nos presentes autos, o réu “Beto Mansur” requereu “(…) a nulidade dos atos processuais desde o oferecimento da denúncia”, com a consequente extinção do procedimento penal contra ele instaurado, fazendo-o com apoio nas razões a seguir expostas (fls. 588/598):
“1.1. A acusação. Denúncia. Oferecimento pelo d. MPGO. Competência do MPF. Recebimento pela Justiça Goiana. Competência Federal. Nulidade.
O ora requerido foi denunciado pela suposta prática do delito previsto no art. 149 do Código Penal Brasileiro, qualificado na forma do § 2º e em continuação.
A sua citação para a demanda ocorreu em 2007, conforme fls. 51, por ordem do Juízo de Direito da comarca de Porangatu, Estado de Goiás, que houvera recebido a denúncia, oferecida pela Promotoria de Justiça dessa mesma localidade.
Sucede, todavia, que a competência, em casos de acusação de redução de trabalhador à condição análoga à de escravo, é da Justiça Federal, conforme decidido por este Excelso Colegiado:
…...................................................................................................
Assim sendo, o ato de oferecimento e assim também o de recebimento da denúncia ocorreram em foro absolutamente incompetente, sendo inviável que surtam qualquer tipo de efeito.
A declaração de nulidade desse ato se impõe, nos termos da jurisprudência desta Suprema Corte:
…...................................................................................................
Há, como mencionado nos julgados acima, precedente desta d. Relatoria sobre a matéria:
…...................................................................................................
Por todas essas razões, (i) mostra-se nula a denúncia, pois emanada de sede incompetente, (ii) o seu recebimento, pela mesma razão, e (iii) a citação, também pelo mesmo motivo.
Esse quadro impõe, por via de consequência, que, em questão de ordem, (i) seja o feito anulado desde o oferecimento da exordial, o que importa em sua extinção, ou, pelo menos, (ii) notifique-se explicitamente a denúncia e renove-se a citação, a fim de que seja apresentada a resposta de que cuida o art. 4º da Lei nº 8.038/90, antes de se proceder ao recebimento da inicial acusatória.” (grifei)
O Ministério Público Federal, em parecer elaborado pela ilustre Subprocuradora-Geral da República Dra. CLÁUDIA SAMPAIO MARQUES, aprovado pelo eminente Chefe da Instituição, manifestou-se pela rejeição da questão prévia suscitada pelo réu e pela “continuidade do trâmite processual, com a oitiva das testemunhas de acusação e defesa e o posterior interrogatório do acusado, na forma do art. 400 do Código de Processo Penal” (fls. 618/623).
Sendo esse o contexto, passo à apreciação da questão prévia, suscitada a fls. 588/596, pertinente à alegada incompetência absoluta da autoridade judiciária estadual que recebeu a denúncia oferecida pelo Ministério Público local (fls. 393), eis que – segundo sustenta o réu em questão – “a competência, em casos de acusação de redução à condição análoga à de escravo, é da Justiça Federal” (fls. 589, vol. 03).
Impõe-se definir determinadas premissas que reputo essenciais ao exame da questão prévia arguida pelo acusado, para efeito de adequada apreciação do tema pertinente à alegada falta de competência do Poder Judiciário estadual para processar e julgar o delito previsto no art. 149 do Código Penal.
O processo penal condenatório, como sabemos, delineia-se como estrutura jurídico-formal em cujo âmbito o Estado desempenha a sua atividade persecutória. Nele, antagonizam-se exigências contrastantes, que exprimem situação de tensão dialética configurada pelo conflito entre a pretensão punitiva deduzida pelo Estado e o desejo de preservação da liberdade individual manifestado pelo réu.
Essa relação de conflituosidade (ou de polaridade conflitante) que opõe o Estado ao indivíduo revela-se, por isso mesmo, nota essencial e típica das ações penais, públicas ou privadas, tendentes à obtenção de provimentos jurisdicionais de caráter condenatório.
O litígio penal já existe desde o momento da prática do ato infracional, não obstante ainda desvestido, nesse momento pré-processual, de estritas formas de ordem ritual. O exercício estatal da função persecutória – mesmo na fase administrativa de sua atuação – traduz situação dotada de potencialidade lesiva ao “status libertatis” do indivíduo, que é submetido, pelo poder do Estado, a investigação policial ou a processo judicial.
A persecução penal, cuja instauração é justificada pela prática de ato supostamente criminoso, não se projeta nem se exterioriza como manifestação de absolutismo estatal. De exercício indeclinável, a “persecutio criminis” sofre os condicionamentos que lhe impõe o ordenamento jurídico. A tutela da liberdade, nesse contexto, representa insuperável limitação constitucional ao poder persecutório do Estado, mesmo porque – ninguém o ignora – o processo penal qualifica-se como instrumento de salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais daquele que é submetido, por iniciativa do Estado, a atos de persecução penal cuja prática somente se legitima dentro de um círculo intransponível e predeterminado pelas restrições fixadas pela própria Constituição da República, tal como tem entendido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS
– A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do ‘jus libertatis’ titularizado pelo réu.
A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu.
O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória –, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público.
A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A cláusula ‘nulla poena sine judicio’ exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.”
(HC 73.338/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Insinua-se, bem por isso, neste ponto, a questão da competência na exata medida em que o respeito ao exercício legítimo das atribuições jurisdicionais condiciona a própria validade da relação processual penal. Na realidade, a competência inclui-se entre os pressupostos processuais objetivos. Constitui ela requisito mínimo para a válida instauração – e ulterior desenvolvimento – da relação processual penal, como assinala, com extrema propriedade, o eminente e saudoso Professor e Desembargador JOSÉ FREDERICO MARQUES em monografia clássica sobre a competência jurisdicional em matéria penal (“Da Competência em Matéria Penal”, p. 306, 1953, Saraiva):
“A competência é um pressuposto processual para a validez da relação jurídica que existe no processo, incluindo-se assim entre aqueles pressupostos que se referem às condições necessárias para que possa existir um pronunciamento jurisdicional sobre a procedência da acusação, ou sobre o mérito da causa penal deduzida em juízo. Isto quer dizer que, faltando ao juiz penal competência para decidir ‘hic et nunc’ uma lide penal, a relação processual, embora existente, é defeituosa ou nula, tornando desta forma inadmissível a apreciação final sobre o mérito da ’res in judicio deducta’. A incompetência, como lembra PONTES DE MIRANDA, não obsta à formação da relação jurídico-processual: esta existe; ‘posto que seja nula’.” (grifei)
O relevo jurídico-processual da competência, sob os aspectos referidos, mostra-se inquestionável, eis que a incompetência absoluta do órgão judiciário afeta e infirma a validade da própria relação processual penal.
A questão suscitada nestes autos concerne à definição dos órgãos competentes para o oferecimento e o recebimento da denúncia contra Paulo Roberto Gomes Mansur, Deputado Federal. Cuida-se, pois, de saber a quem pertence essa competência penal: se à Justiça estadual ou, como pretende o réu, à Justiça Federal.
Posta a questão nesses termos, entendo assistir plena razão ao réu, eis que o Plenário desta Suprema Corte, ao julgar o RE 398.041/PA, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, firmou orientação que autoriza o acolhimento, na espécie, nos termos postulados pelo acusado (fls. 587/614), de sua pretensão de “nulidade dos atos processuais desde o oferecimento da denúncia”, inclusive:
“DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES. ART. 109, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO.
A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano.
A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho.
Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho.
Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga à de escravo) se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI, da Constituição) para processá-lo e julgá-lo.
Recurso extraordinário conhecido e provido.” (grifei)
Cumpre ressaltar, por necessário, que esse entendimento – que reconhece a competência penal da Justiça Federal para processar e julgar, com apoio no art. 109, inciso VI, da Constituição da República, o crime tipificado no art. 149 do CP – vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte a propósito da mesma questão prévia suscitada nestes autos (ACO 1.869/PA, Rel. Min. ROBERTO BARROSO – ARE 696.763/TO, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 91.959/TO, Rel. Min. EROS GRAU – RE 428.863-AgR/SC, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – RE 466.428/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES – RE 466.429/TO, Rel. Min. AYRES BRITTO – RE 480.139/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES – RE 499.143/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RE 508.717/PA, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RE 538.541/PA, Rel. Min. EROS GRAU – RE 541.627/PA, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RE 543.249/PA, Rel. Min. GILMAR MENDES – RE 555.565-AgR/PA, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RE 587.530-AgR/SC, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, v.g.):
“Recurso extraordinário. Constitucional. Penal. Processual Penal. Competência. Redução a condição análoga à de escravo. Conduta tipificada no art. 149 do Código Penal. Crime contra a organização do trabalho. Competência da Justiça Federal. Artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal. Conhecimento e provimento do recurso.
1. O bem jurídico objeto de tutela pelo art. 149 do Código Penal vai além da liberdade individual, já que a prática da conduta em questão acaba por vilipendiar outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente como a dignidade da pessoa humana, os direitos trabalhistas e previdenciários, indistintamente considerados.
2. A referida conduta acaba por frustrar os direitos assegurados pela lei trabalhista, atingindo, sobremodo, a organização do trabalho, que visa exatamente a consubstanciar o sistema social trazido pela Constituição Federal em seus arts. 7º e 8º, em conjunto com os postulados do art. 5º, cujo escopo, evidentemente, é proteger o trabalhador em todos os sentidos, evitando a usurpação de sua força de trabalho de forma vil.
3. É dever do Estado (‘lato sensu’) proteger a atividade laboral do trabalhador por meio de sua organização social e trabalhista, bem como zelar pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III).”
(RE 459.510/MT, Red. p/ o acórdão Min. DIAS TOFFOLI – grifei)
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CRIME CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
O Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a competência para julgar os crimes contra a organização do trabalho é da Justiça Federal.
Agravo regimental a que se nega provimento.”
(RE 511.849-AgR/PA, Rel. Min. ROBERTO BARROSO – grifei)
O exame da denúncia evidencia que, no caso ora em análise, 52 (cinquenta e dois) trabalhadores foram alegadamente submetidos a uma extensa, desgastante e exaustiva jornada de trabalho, exercendo, diariamente, de domingo a domingo, sem descanso semanal remunerado de 24 horas, as suas atividades, que se prolongavam das 07 às 17h00 (de segunda-feira a sábado) e das 07 às 15h00 (aos domingos).
Demais disso, a peça acusatória relata que as vítimas que não pudessem trabalhar por motivo de doença ou em razão de chuva forte “tinham que pagar a comida consumida ao preço de R$ 5,00 cada refeição”, além do fato de que, em virtude de “autêntica servidão por débito”, os trabalhadores tinham cerceada a sua liberdade de locomoção física em consequência do “sistema de endividamento do barracão”.
Consta da denúncia, ainda, “que a situação degradante imposta pelos denunciados aos empregados existia tanto no local de trabalho, como nos dormitórios e na alimentação, sem as mínimas condições de higiene”, cabendo acentuar, de outro lado, nos termos da acusação penal, que não eram sequer fornecidos aos trabalhadores rurais equipamentos de proteção individual (EPI) nem água potável.
Todos esses aspectos realçados na denúncia do Ministério Público põem em evidência a alegada transgressão não só aos valores estruturantes da organização do trabalho, mas, sobretudo, às normas de proteção individual dos 52 (cinquenta e dois) trabalhadores rurais arrolados como vítimas diretas da ação alegadamente predatória e criminosa imputada ao réu e aos demais acusados, o que torna legítima a incidência, na espécie, na linha do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, da regra de competência inscrita no art. 109, VI, da Constituição da República.
Tenho para mim, desse modo, presentes as circunstâncias narradas na peça acusatória e a orientação jurisprudencial prevalecente nesta Corte, que a denúncia oferecida pelo Promotor de Justiça, de um lado, e o seu recebimento pelo Juiz de Direito da comarca de Porangatu/GO, de outro, quanto a Paulo Roberto Gomes Mansur (que, então, ainda não havia sido diplomado Deputado Federal), emanaram de autoridades absolutamente incompetentes “ratione materiae”, o que justifica, no caso, o reconhecimento da invalidade dos atos processuais que essas autoridades locais praticaram, vícios esses que se estendem, até mesmo, aos próprios efeitos jurídicos deles resultantes, pois, como se sabe, “O recebimento da denúncia, quando efetuado por órgão judiciário absolutamente incompetente, não se reveste de eficácia interruptiva da prescrição penal, eis que decisão nula não pode gerar a consequência jurídica a que se refere o art. 117, I, do Código Penal” (RTJ 180/846-847, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).
Cumpre rememorar, nesse mesmo sentido, que o Plenário desta Suprema Corte, em recentíssima decisão, ao examinar recurso ordinário criminal que versava matéria assemelhada à ora debatida nesta sede processual (RC 1.472/MG), deu-lhe provimento, cabendo transcrever, no ponto, ante a pertinência de seu conteúdo, fragmento do voto que o eminente Ministro DIAS TOFFOLI, Relator, proferiu no julgamento em referência:
“Uma vez reconhecida a nulidade, seria o caso de determinar-se a remessa dos autos à Justiça Comum estadual.
Ocorre que, nulo, ‘ab initio’, o processo, diante da incompetência constitucional da Justiça Federal, o recebimento da denúncia não teve o condão de interromper o curso do prazo prescricional.
Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal,
‘I. Competência: incompetência da Justiça Federal, declarada em apelação: consequente nulidade ‘ex radice’ do processo, desde a denúncia, inclusive.
Declarada em apelação a incompetência da Justiça Federal, por ser o caso de competência da Justiça Estadual, não se circunscreve a nulidade à sentença: cuidando-se da chamada competência de atribuições, de matriz constitucional, sua falta acarreta a nulidade ‘ex radice’ do processo, seja por carência absoluta de jurisdição do órgão judiciário que presidiu os atos instrutórios, seja pela decorrente ilegitimidade ‘ad causam’ do Ministério Público estadual.
A decisão do T.F.R., que se limitara a declarar anulada a sentença do Juiz Federal, não vinculou a Justiça Estadual, à qual se devolveu integralmente a competência para decidir o caso, inclusive no tocante à ilegitimidade da Procuradoria da República e consequente inaptidão da denúncia, sequer ratificada pelo Ministério Público local.
II. Prescrição: não a interromperam o recebimento da denúncia e a sentença condenatória da Justiça Federal, dada a sua incompetência, nem a sentença condenatória da Justiça Estadual, porque proferida em processo nulo ‘ex radice’, desde a denúncia, inclusive’ (HC nº 68.269/DF, Primeira Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 9/8/91).” (grifei)
Se assim é, torna-se evidente que o recebimento da denúncia por parte de órgão judiciário absolutamente incompetente (como sucedeu no caso) não se reveste de validade jurídica, mostrando-se, em consequência, insuscetível de gerar o efeito interruptivo da prescrição penal a que refere o art. 117, I, do CP.
Como se sabe, a eficácia interruptiva da prescrição penal somente ocorre quando o ato de que deriva reveste-se de validade jurídica, consoante tem reconhecido a jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 628/292 – RT 684/382, v.g.) e, notadamente, a do Supremo Tribunal Federal (RTJ 90/459, Rel. Min. LEITÃO DE ABREU – RTJ 95/1058, Rel. Min. THOMPSON FLORES – RTJ 117/1091, Rel. Min. DJACI FALCÃO – RTJ 124/403, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RTJ 141/192, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RT 620/400, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, v.g.).
Esse entendimento, por sua vez, encontra apoio no magistério da doutrina (CELSO DELMANTO/ROBERTO DELMANTO/ROBERTO DELMANTO JÚNIOR/FÁBIO M. DE ALMEIDA DELMANTO, “Código Penal Comentado”, p. 419, 9ª ed., 2016, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código Penal Anotado”, p. 464, 23ª ed., 2016, Saraiva; JÚLIO FABBRINI MIRABETE/RENATO N. FABBRINI, “Código Penal Interpretado”, p. 639, item n. 117.2, 2011, Atlas; ÁLVARO MAYRINK DA COSTA, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. I, tomo III, p. 2.090, item n. 4, 6ª ed., 1998, Forense; RENATO BRASILEIRO DE LIMA, “Código de Processo Penal Comentado”, p. 250, item n. 5.5.2., 2016, Jus Podivm; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código Penal Comentado”, p. 674, item n. 64-B, 15ª ed., 2015, Forense; ROGÉRIO GRECO, “Código Penal Comentado”, p. 318, 10ª ed., 2016, Impetus, v.g.).
Todas essas considerações revelam-se de indiscutível importância em face do caráter de fundamentalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, o princípio do juiz natural.
Com efeito, o princípio da naturalidade do juízo representa uma das mais importantes matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado e que condicionam o desempenho, por parte do Poder Público, das funções de caráter penal-persecutório, notadamente quando exercidas em sede judicial.
Daí a advertência de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“O Processo Penal na Atualidade”, “in” “Processo Penal e Constituição Federal”, p. 19, item n. 7, 1993, Ed. Acadêmica/Apamagis, São Paulo) no sentido de que ao rol de postulados básicos deve acrescer-se “aquele do Juiz natural, contido no item nº LIII do art. 5º, que declara que ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’. É que autoridade competente só será aquela que a Constituição tiver previsto, explícita ou implicitamente, pois, se assim não fosse, a lei poderia burlar as garantias derivadas do princípio do Juiz independente e imparcial, criando outros órgãos para o processo e julgamento de determinadas infrações” (grifei).
A essencialidade do princípio do juiz natural impõe ao Estado o dever de respeitar essa garantia básica que predetermina, em abstrato, os órgãos judiciários investidos de competência funcional para a apreciação dos litígios penais.
Na realidade, o princípio do juiz natural reveste-se, em sua projeção político-jurídica, de dupla função instrumental, pois, enquanto garantia indisponível, tem por titular qualquer pessoa exposta, em juízo criminal, à ação persecutória do Estado e, enquanto limitação insuperável, incide sobre os órgãos do poder incumbidos de promover, judicialmente, a repressão criminal.
Vê-se, desse modo, que o postulado da naturalidade do juízo, ao qualificar-se como prerrogativa individual (“ex parte subjecti”), tem por destinatário específico o réu, erigindo-se, em consequência, como direito público subjetivo inteiramente oponível ao próprio Estado. Esse mesmo princípio, contudo, se analisado em perspectiva diversa, “ex parte principis”, atua como fator de inquestionável restrição ao poder de persecução penal, submetendo o Estado a múltiplas limitações inibitórias de suas prerrogativas institucionais.
Isso significa que o postulado do juiz natural deriva de cláusula constitucional tipicamente bifronte, pois, dirigindo-se a dois destinatários distintos, ora representa um direito do réu (eficácia positiva da garantia constitucional), ora traduz uma imposição ao Estado (eficácia negativa dessa mesma garantia constitucional).
É por essa razão que ADA PELLEGRINI GRINOVER – após destacar a importância histórica e político-jurídica do princípio do juiz natural – acentua, com apoio no magistério de JORGE FIGUEIREDO DIAS (“Direito Processual Penal”, vol. 1/322-323, 1974, Coimbra), que esse postulado constitucional acha-se tutelado por garantias irredutíveis que se desdobram, “na verdade, em três conceitos: só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências, que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja” (“O Processo em Sua Unidade – II”, p. 39, item n. 6, 1984, Forense – grifei).
O fato irrecusável em nosso sistema de direito constitucional positivo – considerado o princípio do juiz natural – é que ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão mediante julgamento pela autoridade judicial competente. Nenhuma pessoa, em consequência, poderá ser subtraída ao seu juiz natural. A Constituição do Brasil, ao proclamar as liberdades públicas – que representam limitações expressivas aos poderes do Estado –, consagrou, agora de modo explícito, o postulado fundamental do juiz natural. O art. 5º, LIII, da Carta Política prescreve que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
A importância político-jurídica desse princípio essencial – que traduz uma das projeções concretizadoras da cláusula do “due process of law” – foi acentuada pelo autorizado magistério de eminentes autores, tais como ADA PELLEGRINI GRINOVER (“O Processo em sua unidade – II”, p. 03/04, 1984, Forense), GIUSEPPE SABATINI (“Principii Costituzionali del Processo Penale”, p. 93/131, 1976, Napoli), TAORMINA (“Giudice naturale e processo penale”, p. 16, 1972, Roma), JOSÉ CIRILO DE VARGAS (“Processo Penal e Direitos Fundamentais”, p. 223/232, 1992, Del Rey Editora), MARCELO FORTES BARBOSA (“Garantias Constitucionais de Direito Penal e de Processo Penal na Constituição de 1988”, p. 80/81, 1993, Malheiros) e ROGÉRIO LAURIA TUCCI e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (“Constituição de 1988 e Processo”, p. 30/32, item n. 10, 1989, Saraiva).
Foi por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em situação assemelhada à que se registra nestes autos, nela reputou existente a ocorrência de ofensa “ao princípio do juiz natural”, como o evidencia decisão consubstanciada em acórdão assim ementado:
“Inquérito. 2. Questão de ordem. 3. Requerimento de decretação de nulidade da denúncia recebida por juiz de primeiro grau. 4. Comprovação de que, à época do recebimento da denúncia, um dos denunciados exercia o cargo de Secretário de Estado. 5. Incompetência absoluta do juízo. Nulidade da denúncia e do seu recebimento. Violação ao princípio do juiz natural (CF, art. 5º, LIII). Precedentes. (…).”
(Inq 2.051-QO/TO, Rel. Min. GILMAR MENDES – grifei)
Sendo assim, em face das razões expostas, e considerando que o oferecimento da denúncia pelo Promotor de Justiça local (fls. 02/15) e a decisão que a recebeu proferida pelo MM. Juiz de Direito da comarca de Porangatu/GO (fls. 393) emanaram de autoridades absolutamente incompetentes para a prática de tais atos processuais, defiro, em parte, o pedido de fls. 613, em ordem a invalidar, a partir da denúncia, inclusive, a persecução penal instaurada em juízo contra o réu Paulo Roberto Gomes Mansur, vulgo “Beto Mansur”, sem prejuízo de o Ministério Público Federal deduzir nova acusação penal perante o Supremo Tribunal Federal, em razão da prerrogativa de foro de que dispõe, constitucionalmente, o acusado em referência.
Intime-se, pessoalmente, o eminente Senhor Procurador-Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 13 de outubro de 2016.
Ministro CELSO DE MELLO
Relato
Decisão publicada no DJe em 17.10.2016.
Secretaria de Documentação – SDO
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O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição, conforme definido no art. 102 da Constituição da República. É composto por onze Ministros, todos brasileiros natos (art. 12, § 3º, inc. IV, da CF/1988), escolhidos dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada (art. 101 da CF/1988), e nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal (art. 101, parágrafo único, da CF/1988). Entre suas principais atribuições está a de julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da própria Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STF - Supremo Tribunal Federal. Informativo 846 do STF - 2016 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2016, 16:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Informativos dos Tribunais/49413/informativo-846-do-stf-2016. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: STF - Supremo Tribunal Federal Brasil
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