Acórdão: Apelação Cível n. 2003.026168-0, de Rio do Sul.
Relator: Des. Joel Figueira Júnior.
Data da decisão: 29.05.2007.
Publicação: DJSC Eletrônico n. 244, edição de 11.07.2007, p. 89.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE COM PEDIDO DE LIMINAR. EXERCÍCIO DE POSSE ANTERIOR NÃO COMPROVADO PELO AUTOR. SENTENÇA EXTINTIVA FUNDADA NO INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. EFEITO TRANSLATIVO DO RECURSO. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. CARÊNCIA DE AÇÃO. EXTINÇÃO DO PROCESSO COM FULCRO NO ART. 267, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SENTENÇA REFORMADA, DE OFÍCIO, QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO E PARTE DISPOSITIVA. RECURSO IMPROVIDO.
I – Tratando-se de ação de reintegração de posse, o artigo 499 do Código Civil de 1916, aplicável à espécie, em combinação com o artigo 926 do Código de Processo Civil, prevêem como requisito indispensável à propositura da demanda o poder de fato sócio-econômico (direto ou indireto) sobre o bem da vida em litígio.
Em demandas desse jaez, havendo prova de ausência de posse (direta ou indireta) sobre o imóvel, é o autor carecedor de ação por falta de legitimidade ativa ad causam, pelo que não há falar-se em indeferimento da inicial já recebida e processado o feito, mas sim em extinção do processo, sem resolução do mérito, com fundamento no artigo 267, inciso VI, da Lei Instrumental Civil.
Em outros termos, se a inicial foi recebida e processado o feito, verificando o julgador, em fase procedimental posterior, ser o autor carecedor de ação, haverá de extinguir o processo com fulcro no art. 267, VI do CPC, e não com base no inciso I do mesmo dispositivo legal.
II – O contrato acessório de garantia real hipotecária não se confunde com o instituto jurídico do constituto possessório, inexistindo, portanto, cláusula constitutiva expressa e hábil a caracterizar a posse do autor sobre o bem hipotecado.
Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Cível n. 2003.026168-0, da comarca de Rio do Sul/1ª Vara Cível, em que é apelante Besc S/A Crédito Imobiliário - Bescri, sendo apelado Valdemar Batista:
ACORDAM, em Primeira Câmara de Direito Civil, por votação unânime, conhecer do recurso e negar-lhe provimento, e, de ofício, com fulcro no art. 267, VI e § 3.º, c/c art. 515, § 1.º, ambos do Código de Processo Civil, declarar extinto o processo, sem resolução do mérito. Custas na forma da lei.
RELATÓRIO
Besc S/A Crédito ajuizou ação de reintegração de posse com pedido de liminar contra os ocupantes do imóvel, de qualificação desconhecida, pelos fatos e fundamentos jurídicos descritos na exordial de fls. 02/03 , alegando, em síntese, que:
Em 1997 ajuizou ação de execução hipotecária (autos n. 05497.000346-7) contra Sody Henrique Vieira Júnior e Juçara Westphal Vieira, em razão do não pagamento das parcelas referentes ao contrato de financiamento por eles celebrado para a aquisição do imóvel descrito na exordial, sendo tal bem dado em garantia pela dívida contraída.
Processada a execução e não sendo opostos embargos pelos devedores, adjudicou o imóvel, consolidando a propriedade em suas mãos.
Em março de 2001 a casa foi invadida por pessoas desconhecidas, que ali fixaram residência, fato que motivou o registro de Boletim de Ocorrência junto à Delegacia de Polícia da Comarca de Rio do Sul.
Ao final, requer a procedência do pedido para:
1. Liminarmente, determinar-se a sua reintegração provisória na posse do bem litigioso;
2. Ser reintegrado definitivamente da posse do imóvel, condenando os réus ao pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios.
À causa foi atribuído o valor de R$ 1.000,00 (mil reais) e a inicial veio instruída com os documentos de fls. 04/09.
A liminar pleiteada foi concedida às fls. 11/12.
Os Réus comparecerem espontaneamente aos autos (fls.14/18), aduzindo, em síntese, serem os possuidores do bem litigioso, asseverando tê-lo adquirido de Henrique Vieira, mediante contrato de compra e venda, fixando-se em R$ 18.000,00 (dezoito mil reais) o preço do negócio, sendo R$ 13.000,00 para pagamento à vista e o restante para pagamento em 15 de dezembro de 2003, ao fim do que o vendedor comprometeu-se a transferir-lhes a propriedade do imóvel.
Afirmaram desconhecer que a casa pertencia ao Demandante, agindo de boa-fé na sua aquisição, sendo, no entanto, ludibriado pelo então Executado, que forneceu até mesmo um nome falso, requerendo, por fim, a revogação da liminar concedida e a designação de audiência de justificação prévia.
Sentenciando antecipadamente o feito (fls. 26/29), o Magistrado a quo:
1. Julgou extinto o feito, sem resolução de mérito (art. 267, I, CPC), sob o fundamento de que o Autor jamais exerceu a posse sobre o imóvel, não podendo, assim, demandar a proteção possessória;
2. Revogou a liminar anteriormente concedida, condenando, por fim, o Réu ao pagamento das despesas processuais.
Inconformado, o Autor interpôs o presente recurso (fls. 36/40) objetivando, em síntese, a reforma da sentença, reiterando os argumento já deduzidos na peça inaugural, asseverando, ainda, que a sua posse deriva cláusula constitutiva intrínseca ao contrato de compra e venda.
Contra-razões às fls. 45/48.
Presentes os requisitos de admissibilidade do recurso.
É o relatório.
VOTO
O recurso interposto pelo Autor merece ser conhecido e impovido, merecendo a sentença recorrida ser confirmada, porém por fundamento diverso, porquanto verificada a ilegitimidade ativa ad causam do Apelante para a propositura da presente demanda, devendo, por isso, ser reconhecida sua carência de ação, diante do efeito translativo conferido ao recurso de apelação.
No caso vertente, pretende o Demandante ser reintegrado na posse do imóvel de sua propriedade e ocupado pelos Requeridos.
Inicialmente, convém frisar os pressupostos necessários ao êxito da ação possessória, conforme depreende-se do art. 927 do Código de Processo Civil c/c art. 1.210 do Código Civil, in verbis:
"Art. 927. Incumbe ao autor provar:
I – a sua posse;
II – a turbação ou o esbulho praticado pelo réu;
III – a data da turbação ou do esbulho;
IV – a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração."
Da análise percuciente dos autos, observa-se que o primeiro dos requisitos, isto é, a posse do Autor sobre o imóvel litigioso, não está configurado. Isso porque, segundo consta na própria exordial, o Requerente apenas adquiriu por ocasião de adjudicação concretizada em ação de execução hipotecária, sem, contudo, jamais ter exercido posse sobre ele.
O contrato acessório de garantia real hipotecária, do qual o Demandante afirma decorrer a sua posse, não se confunde com o constituto possessório, porquanto não traz em seu bojo nenhuma cláusula expressa, hábil a caracterizar a posse do Autor sobre o bem hipotecado, objeto da proteção possessória demandada nestes autos. Ademais, o constituto possessório somente se verifica quando o possuidor que tem a posse absoluta e plena, transfere a outrem a posse absoluta indireta, reservando para si a posse relativa direta. Não é o caso dos autos.
Consoante o entendimento já por mim manifestado em sede doutrinária "O constituto possessório é instituto jurídico que se verifica quando o possuidor na qualidade de absoluto (posse própria e plena), transfere a outrem a posse absoluta indireta (ou própria e mediata) e reserva para sim a posse relativa direta (não-própria imediata. O constituto possessório não se presume (clausula constituti). É forma de aquisição e perda da posse." (in Novo Código Civil comentado [coord. Ricardo Fiuza], 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2006, p. 988)
Nesta seara, tem-se que o constituto possessório é forma excepcional de transferência da posse, só podendo operacionalizar através de cláusula constitutiva expressa, devendo, ainda, ser decorrente de um acordo de vontades entre o transmitente da posse e o novo possuidor indireto.
In casu, tal cláusula não existe, porquanto a alegada "posse" do Autor decorre de adjudicação do imóvel em face de ação de execução hipotecária movida contra mutuário do Sistema Financeiro de Habitação.
Neste contexto, não tendo o Autor logrado êxito em comprovar a posse anterior sobre o bem objeto desta demanda, ônus processual que lhe incumbia a rigor do artigo 333, I, do Código de Processo Civil, torna-se manifestamente carecedor de ação por ilegítima ativa ad causam.
É assente que o reconhecimento da ilegitimidade ativa conduz não ao indeferimento da inicial, mas sim à extinção do feito, sem resolução do mérito, com fundamento no artigo 267, inciso VI, da Lei Instrumental Civil.
A respeito do assunto, já tive oportunidade de assim manifestar meu entendimento:
"[...] Dentro da teoria eclética da ação formulada por LIEBMAN, a legitimidade para agir aparece como um dos requisitos de admissibilidade da ação válida e significa a relação de pertinência subjetiva que deve haver entre o sujeito que postula a tutela jurisdicional do Estado e aquele que haverá de arcar com o ônus da eventual sucumbência.
Em outras palavras, deve haver uma identidade simetricamente oposta entre a parte que pede (autor ou exeqüente) e o adversário que deverá satisfazer a pretensão (réu ou executado) do postulante.
Sabe-se que a verificação das condições da ação logo de plano pelo juiz não é tarefa nada fácil e muitas vezes até impossível, tendo-se em conta que elas aparecem num plano teórico e hipotético, onde as circunstâncias do caso levam (ou não) a crer que existe a relação de pertinência subjetiva entre os litigantes. Contudo, somente após a formação da instrução e com a prolação da sentença de mérito é que teremos essa efetiva confirmação do alegado através das provas produzidas.
Vejam dois exemplos para facilitar o entendimento:
a) Em ação de reintegração de posse, postula o autor a recuperação do imóvel esbulhado, fundamentando a sua pretensão no direito real de propriedade (ius possidendi) e trazendo a colação a escritura pública de compra e venda devidamente transcrita no Registro de Imóveis (art. 1.228, NCC). Nesse caso, sem maiores dificuldades, percebe-se que o autor é carecedor de ação por se parte ativa ilegítima para agir, tendo em vista nunca ter tido posse do bem litigioso.
[...] Vale lembrar que a carência de ação é a impossibilidade de consecução do normal e eficaz exercício do direito de agir, por ausência de algum requisito indispensável para a configuração da ação válida. Para que o autor seja considerado carecedor de ação, basta não preencher um dos três requisitos da ação válida, os quais deverão estar presentes no instante da propositura da demanda, em que pese ser absolutamente imprescindível a configuração do trinômio, no momento da prolação da sentença. Assim, existindo, aparentemente ou não, os três requisitos, no momento da propositura da ação, e desaparecendo qualquer um deles no decorrer do processo ou vindo à tona a sua inexistência, torna-se manifesta a carência de ação; o inverso também é verdadeiro." (Comentários ao Código de Processo Civil: v. 4, Tomo II. São Paulo, Ed. RT, ano 2007, pg. 185/186)."
Em arremate, não há que se falar em indeferimento da inicial já recebida e processado o feito (como fez, equivocadamente, o Juiz sentenciante), mas sim em extinção do processo, sem resolução do mérito, com fundamento no artigo 267, inciso VI, da Lei Instrumental Civil. Em outros termos, se a inicial foi recebida e processado o feito, verificando o julgador, em fase procedimental posterior, ser o autor carecedor de ação, haverá de extinguir o processo com fulcro no art. 267, VI do CPC, e não com base no inciso I do mesmo dispositivo legal.
Por esses motivos, a sentença objurgada deve ser reformada, modificando-se, de ofício, a fundamentação e a parte dispositiva do julgado, com fulcro no efeito translativo que se agrega ao recurso interposto, extinguindo-se o feito, sem resolução de mérito, com espeque no artigo. 267, VI e § 3.º, c/c artigo 515, § 1.º, ambos do Código de Processo Civil.
DECISÃO
Nos termos do voto do relator, decidiu a Primeira Câmara de Direito Civil, por unanimidade, conhecer do recurso, negando-lhe provimento, e, de ofício, com fulcro no art. 267, VI, § 3.º, c/c art. 515, § 1.º, ambos do Código de Processo Civil, declarar extinto o processo, sem resolução do mérito, em razão da manifesta ilegitimidade ativa ad causam.
Participaram do julgamento os Excelentíssimo Senhores Desembargadores Carlos Prudêncio e Maria do Rocio Luz Santa Ritta.
Florianópolis, 29 de maio de 2007.
Carlos Prudêncio
PRESIDENTE
Joel Dias Figueira Júnior
RELATOR
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