EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO PÓSTUMA. Demonstrada em vida a vontade inequívoca do falecido em adotar a enteada, com a qual se estabeleceu uma filiação socioafetiva, procede a ação de adoção póstuma, bem como a destituição do poder familiar do pai registral, o qual abandonou por completo a autora. Apelação provida, por maioria.
Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em dar provimento ao recurso, vencido o Des. Alzir, nos termos dos votos a seguir transcritos.
Custas na forma da lei.
Participou do julgamento, além dos signatários, o eminente Senhor DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA (PRESIDENTE).
Porto Alegre, 30 de outubro de 2008.
DES. JOSÉ S. TRINDADE,
Relator.
DES. ALZIR FELIPPE SCHMITZ
Voto Vencido.
RELATÓRIO
DES. JOSÉ S. TRINDADE (RELATOR)
Ação. Trata-se de ação de adoção nuncupativa cumulada com destituição do poder familiar.
Partes. Apelante: Amanda, menor, assistida por sua mãe Fabiana.
1º Apelado: Espólio de José Carlos, representado pela inventariante Zenir José.
2º Apelado: Ricardo.
Sentença recorrida. A decisão de fls. 458/463 julgou improcedentes os pedidos de adoção e de destituição do poder familiar, condenando a recorrente ao pagamento dos honorários advocatícios, estes fixados em R$ 1.000,00, suspensa a exigibilidade face à gratuidade judiciária.
Objeto. Apelação visando a procedência das ações, para deferir a adoção pretendida pela autora, declarando-a filha de José Carlos, destituindo-se Ricardo do poder familiar em relação à recorrente.
Razões recursais. Alega a insurgente que via no falecido sua figura paterna, sendo ele quem sempre lhe dispensou muito afeto. Refere que seu pai biológico, Ricardo, apenas a registrou, sem jamais ter-lhe transferido qualquer tipo de auxílio na sua formação, seja material ou emocional. Salienta que a inventariante do espólio, Zenir, mãe do extinto, embora pugne pela improcedência das ações, nunca negou o vínculo afetivo que existia entre o seu filho e a recorrente. Sustenta que seu genitor declarou expressamente que está de acordo com a destituição de seu poder familiar em relação a si. Assevera ter vontade de romper qualquer vínculo com seu pai biológico, e, caso isso não seja respeitado, estar-se-á afrontando os princípios da dignidade da pessoa humana, da integridade psíquica e moral, da não discriminação e da prevalência dos interesses de crianças e adolescentes. Ressalva ser menos sofrido e constrangedor suportar a morte de seu pai afetivo, do que a rejeição de seu pai registral. Argumenta que existem mais de 10 declarações, datadas do ano de 1996, que comprovam ser a intenção do de cujus lhe adotar, documentos estes não impugnados. Destaca que o parecer técnico da assistente social em nenhum momento nega o vínculo que existia entre ela e o falecido, a filiação socioafetiva, tampouco a posse de estado de filho. Aduz que ambas as testemunhas arroladas pelo espólio, em 1996, assinaram declarações afirmando que o extinto não mantinha bom relacionamento com a mãe, ora inventariante, inclusive, que ele não queria que ela herdasse qualquer bem. Ressalta que o extinto lhe incluiu como sua dependente junto ao INSS, o que confirma que ele a tinha como sua filha. Requer o provimento da apelação, visando a procedência das ações, para deferir a adoção pretendida, declarando-a filha de José Carlos, destituindo-se Ricardo do poder familiar em relação à si (fls. 468/482).
Contra-razões. Ao contra-arrazoar, ambos os apelados pugnaram pela manutenção da sentença (fls. 486/494; 496/501).
Ministério Público de 1º grau. Às fls. 503/516, a agente ministerial manifestou-se pelo provimento do apelo.
Os autos foram remetidos a esta Corte.
Ministério Público de 2º grau. Em parecer de fls. 519/524, o Procurador de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso.
Registro que foi observado o disposto nos artigos 549, 551 e 552, todos do CPC, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.
É o relatório.
VOTOS
DES. JOSÉ S. TRINDADE (RELATOR)
Recurso em condições de ser conhecido.
No mérito, deve ser provido.
Embora o art. 1.698 do CC/02 refira à adoção póstuma somente no caso de o adotante falecer no curso da ação, regra que já existia no art. 42, § 5º do ECA, filio-me ao entendimento de que ela também pode ser deferida quando os supostos adotantes já faleceram antes do ajuizamento da ação. Mas, em qualquer das hipóteses, há que restar demonstrada a inequívoca vontade do adotante na adoção.
Nesse sentido brilhantemente se manifestou o DES. RUI PORTANOVA, em julgamento nesta Câmara, do qual participei como vogal, valendo transcrever a seguinte passagem do eminente relator:
“Casos em que, desde que possível identificar a manifestação da vontade de adotar e da condição do estado de filho, deve ser deferida a adoção ainda que o adotante tenha falecido antes do início da ação de adoção propriamente dita, visto que, na prática, o procedimento da adoção, efetiva e concretamente, iniciou-se antes mesmo da demanda judicial formal.
E a justificativa para essa interpretação é a relevância conquistada pelas relações socioafetivas que se instauram no seio familiar, fazendo com que o rigorismo formal seja abrandado em face da prevalência dos interesses tutelados, quais sejam: o superior interesse da criança e sua identidade enquanto filho dos pretensos adotantes, identidade essa que tem relação direta com sua personalidade e seu referencial de indivíduo na sociedade.
Ou seja, a razão para esse alargamento da legislação positiva é a dignidade humana e a personalidade do adotado e também do adotante falecido, o qual tinha como verdadeiro filho a pessoa do adotado.” (Apelação Cível Nº 70022470298, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 15/05/2008)
Ainda no mesmo sentido, transcrevo ementa do seguinte precedente deste Tribunal:
“APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. PEDIDO DE RESTAURAÇÃO DE ASSENTAMENTO DE NASCIMENTO. ADOÇÃO DEFERIDA À MULHER VIÚVA. FALECIMENTO DO CÔNJUGE VARÃO ANTES DO AJUIZAMENTO DO PROCESSO DE ADOÇÃO. ADOÇÃO PÓSTUMA. POSSIBILIDADE, NO CASO CONCRETO. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO ARTIGO 1.628 DO CÓDIGO CIVIL, EM QUE SE MOSTRA POSSÍVEL RECONHECER A FORMALIZAÇÃO DA ADOÇÃO MESMO QUE NÃO INICIADO O PROCESSO PARA TAL, HAJA VISTA A AUTORA EXERCER DIREITO INDISPONÍVEL PERSONALÍSSIMO E QUE DIZ RESPEITO À DIGNIDADE DO SER HUMANO. VERIFICADA A EXISTÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CERTIDÃO DE BATISMO DEMONSTRANDO O INEQUÍVOCO DESEJO DO ADOTANTE DE SER PAI DA AUTORA. CONTEXTO PROBATÓRIO CONSTANTE NOS AUTOS COMPROVANDO A ADOÇÃO TÁCITA PREEXISTENTE. SITUAÇÃO QUE AUTORIZA O RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO PATERNA. Recurso provido.” (Apelação Cível Nº 70014741557, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 07/06/2006).
No caso concreto ora em julgamento, se verifica a inequívoca manifestação de vontade do falecido JOSÉ CARLOS de adotar a autora, filha da sua esposa, o que só não fez ante a sua muito prematura morte por acidente.
Com efeito, a prova produzida nos autos denota a condição de estado de filha, porque a autora foi criada como tal por JOSÉ CARLOS.
É fato incontroverso, até porque reconhecido pela sucessão (representada pela genitora de JOSÉ CARLOS), e conforme constou nos estudos sociais, que quando contava apenas um ano de idade a genitora de AMANDA passou a viver maritalmente com JOSÉ CARLOS, o qual já havia sido seu namorado aos 15 anos de idade.
AMANDA nasceu em 07 de dezembro de 1991 (fl. 18).
Assim, no ano de 1992 FABIANA (mãe da autora) e JOSÉ CARLOS passaram a viver em união estável, a qual culminou com o casamento celebrado entre eles em 10 de dezembro de 1994 (fl. 19).
Tragicamente, com apenas 21 anos de idade, JOSÉ CARLOS veio a falecer (em razão de atropelamento). O atestado de óbito de fl. 20 dá conta que o falecimento ocorreu em 7 de outubro de 1995.
A convivência familiar de AMANDA com JOSÉ CARLOS, portanto, perdurou três anos. Ele faleceu quando ela tinha quatro anos de idade.
Em que pese a tenra idade de AMANDA e a convivência por apenas três anos, foi suficiente para que JOSÉ CARLOS manifestasse inequivocamente que tinha real intenção de adotar a enteada. Repito, só não o fez em razão da morte prematura.
É pena que a prova oral pretendida pela autora não pode ser produzida, porque o pedido dela de adiamento da audiência em razão de cirurgia realizada por sua genitora (fl. 293) não foi deferido (fl. 309 v.), e o agravo retido contra tal decisão (fls. 311/3140) não foi reiterado na presente apelação.
Mas, ainda assim, a vontade inequívoca do falecido em adotar AMANDA restou demonstrada, sendo que entre eles se estabeleceu manifesta filiação socioafetiva.
Por primeiro, cumpre referir que AMANDA foi reconhecida como dependente de JOSÉ CARLOS junto ao INSS, para fins de receber pensão por morte, na qualidade de filha (fls. 21/23).
Conforme documento juntado pela própria ré/apelada, o parecer da Agente Administrativa que foi favorável à pretensão à pensão por morte em favor da autora, se baseou no Decreto n.º 611 de 21/07/92, art. 13, IV, § 3.º, “a”, que declara que o enteado é beneficiário dependente. E já que JOSÉ CARLOS mantinha, ou seja, sustentava AMANDA, ela foi considerada dependente (fl. 379), segundo o parecer.
No primeiro estudo social realizado, embora tenha concluído que a autora não seria beneficiada com o deferimento da adoção (porque ‘trocaria’ um pai (biológico) desidioso por outro já falecido, fl. 196), constou que “Amanda percebe José Carlos como seu pai” (fl. 196).
No segundo estudo social realizado, constou que desde que a genitora de AMANDA passou a conviver maritalmente com JOSÉ CARLOS, ele sempre foi muito amoroso como a menina, o que fez com que ela ficasse muito apegada a ele (fl. 236). Amanda relatou suas lembranças e disse considerá-lo como seu verdadeiro pai. Seu interesse em ter JOSÉ CARLOS como pai, é pela convivência que tiveram e as boas recordações que ficaram dele. “Como é a mãe a quem cabe nomear o genitor, José Carlos tornou-se o pai internalizado que Amanda tem”.
Em seu depoimento, já com 15 anos de idade, AMANDA relata lembranças da sua infância com JOSÉ CARLOS, v.g., quando ele levava ela para a escola, que ele “dava toda noite leite quente” para ela, na mamadeira, levava pipoca, lhe dava roupas, ele era quem passava mais tempo com ela, na época. Relata que ele lhe chamava de filha, e ela o chamava de pai. Nunca conheceu seu pai biológico. Para ela, seu pai é JOSÉ CARLOS (fls. 345/346).
Verifico que somente a prova oral indicada pela ré foi colhida. Mesmo assim, a testemunha CLAUDINO, primo de JOSÉ CARLOS, embora diga que este nunca manifestou que queria adotar AMANDA, referiu que o falecido sempre tratou bem AMANDA, sempre tratou ela “como uma pessoa da família” (fl. 307).
A testemunha SALDIR, ouvido a fl. 307 e s., referiu em juízo que o relacionamento entre JOSÉ CARLOS e AMANDA era muito bom. Eles viviam sempre juntos. Perguntado se alguma vez ele ouviu do falecido que ele pretendia adotar a menina, a testemunha respondeu: “Pra mim não, eu vi eles falando assim, mas não que ele ia adotar ela”. Perguntado, então, o que eles falavam, a testemunha respondeu: “Ah, porque ela chamava ele de pai Zé” (fl. 308).
Mas ainda que a prova oral pretendida pela autora não tenha sido colhida, restam nos autos as declarações de fls. 321, autenticadas, as quais não podem ser ignoradas.
O advogado que firmou a declaração de fl. 321 ali refere que foi procurado por JOSÉ CARLOS com a finalidade de averiguar a possibilidade de destituição do ‘pátrio poder’ do pai biológico do pai de AMANDA, tendo em vista que já por mais de dois anos sustentava a menor, não tendo o pai colaborado para a sua criação. O falecido trabalhava numa sala ao lado da sala do advogado, e seguidamente comentava e consultava, tendo dito várias vezes que reconhecia a menor como sua filha.
As declarações de fls. 322/329 são todas no sentido de que JOSÉ CARLOS mantinha com AMANDA uma relação de pai e filha, tinha muita afeição, carinho e amor pela menina, e expressava que pretendia adotá-la.
As fotografias de fls. 135/137 demonstram o vinculo afetivo entre ambos.
Já o pai biológico, a único ato que procedeu relativamente à filiação, foi o registro do nascimento.
Simplesmente sumiu da vida da filha, tendo sido citado por edital, e só foi encontrado por estar cumprindo pena em razão de sentença criminal condenatória.
Não só concordou com a destituição do poder familiar, como, ouvido no presente feito pelo Magistrado, referiu que desde o ano de 1992 não via AMANDA, e expressamente referiu que, para ele, o término do vínculo com a destituição do poder familiar, “está ótimo” (fl. 457).
Assim, o pai registral de AMANDA não manteve qualquer vínculo com ela, abandonando-a na mais tenra idade, e hoje acha “ótimo” romper todos os vínculos, com a destituição familiar.
Os elementos probatórios dos autos denotam que a única figura paterna que a autora conheceu foi JOSÉ CARLOS, a quem, inclusive, chamava de pai.
Ele, JOSÉ CARLOS, não só tinha intenção de adotar a criança, como chegou a procurar informações junto a um advogado para saber como proceder (fl. 321). Manifestava tal intenção não só com o vínculo de filiação socioafetivo que estabeleceu com AMANDA, mas também, expressamente.
Desimporta que a autora tenha esperado sete anos para postular a presente adoção. Não vislumbro cunho eminentemente patrimonial no pedido dela.
Fosse assim, também eminentemente patrimonial seria o interesse da ré - que há muito já não convivia amistosamente com o filho -, vez que seria única herdeira dele com a improcedência da presente ação.
Pelas razões expostas, o voto é pelo provimento da apelação para JULGAR PROCEDENTES as ações e deferir a adoção pretendida pela autora, declarando-a filha de JOSÉ CALOS CAMILO LOPES, com as devidas anotações no seu registro de nascimento, incluindo-se no seu nome o patronímico de JOSÉ CARLOS, em substituição ao patronímico do pai registral, destituindo-se RICARDO DA SILVA BOAVENTURA do poder familiar. Inverte-se o ônus da sucumbência, cuja cobrança fica suspensa, ante o pedido da AJG deduzido pela ré na contestação, o qual defiro.
DES. ALZIR FELIPPE SCHMITZ (REVISOR)
Eminentes colegas, admito que a matéria sub judice é delicada.
Todavia, rogando vênia ao ilustrado Relator, ouso divergir, pois tenho que o julgador singular resolveu a questão de forma incensurável, razão por que estou em manter a sentença recorrida - fls. 458/463 - por seus próprios e jurídicos fundamentos, negando, portanto, provimento ao recurso.
Posteriormente farei breves considerações, mesmo porque pouco ou nada há para acrescentar, no meu entendimento, aos judiciosos argumentos do culto prolator.
Assim, NEGO PROVIMENTO ao recurso.
DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA (PRESIDENTE) - De acordo com o Relator.
DES. CLAUDIR FIDÉLIS FACCENDA - Presidente - Apelação Cível nº 70025857533, Comarca de Porto Alegre: "POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO, VENCIDO O DES. ALZIR."
Julgador(a) de 1º Grau: JOSE ANTONIO DALTOE CEZAR
TJMS - Av. Mato Grosso - Bloco 13 - Fone: (67) 3314-1300 - Parque dos Poderes - 79031-902 - Campo Grande - MS<br>Horário de Expediente: 8 as 18h. Home: www.tjms.jus.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, TJMS - Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul. TJRS - Civil. Adoção póstuma. Filiação socioafetiva. Cabimento. Demonstrada em vida a vontade inequívoca do falecido em adotar a enteada, com a qual se estabeleceu uma filiação socioafetiva, procede a ação de adoção póstuma Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jun 2011, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Jurisprudências /24764/tjrs-civil-adocao-postuma-filiacao-socioafetiva-cabimento-demonstrada-em-vida-a-vontade-inequivoca-do-falecido-em-adotar-a-enteada-com-a-qual-se-estabeleceu-uma-filiacao-socioafetiva-procede-a-acao-de-adocao-postuma. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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