RE 649154/MG*
RELATOR: Ministro Celso de Mello
EMENTA: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. DEMADA ANTERIOR JULGADA IMPROCEDENTE. COISA JULGADA EM SENTIDO MATERIAL. SUPERVENIÊNCIA DE NOVO MEIO DE PROVA (DNA). PRETENDIDA “RELATIVIZAÇÃO” DA AUTORIDADE DA COISA JULGADA. PREVALÊNCIA, NO CASO, DO DIREITO FUNDAMENTAL AO CONHECIMENTO DA PRÓPRIA ANCESTRALIDADE. A BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA COMO EXPRESSÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. ACOLHIMENTO DA POSTULAÇÃO RECURSAL DEDUZIDA PELA SUPOSTA FILHA. OBSERVÂNCIA, NA ESPÉCIE, PELO RELATOR, DO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. RE CONHECIDO E PROVIDO.
- RESSALVA DA POSIÇÃO PESSOAL DO RELATOR (MINISTRO CELSO DE MELLO), MINORITÁRIA, QUE ENTENDE QUE O INSTITUTO DA “RES JUDICATA”, DE EXTRAÇÃO EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL, POR QUALIFICAR-SE COMO ELEMENTO INERENTE À PRÓPRIA NOÇÃO CONCEITUAL DE ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, NÃO PODE SER DEGRADADO, EM SUA CONDIÇÃO DE GARANTIA FUNDAMENTAL, POR TESES COMO A DA “RELATIVIZAÇÃO” DA COISA JULGADA. NA PERCEPÇÃO PESSOAL DO RELATOR (MINISTRO CELSO DE MELLO), A DESCONSIDERAÇÃO DA AUTORIDADE DA COISA JULGADA MOSTRA-SE APTA A PROVOCAR CONSEQUÊNCIAS ALTAMENTE LESIVAS À ESTABILIDADE DAS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS, À EXIGÊNCIA DE CERTEZA E DE SEGURANÇA JURÍDICAS E À PRESERVAÇÃO DO EQUILÍBRIO SOCIAL. A INVULNERABILIDADE DA COISA JULGADA MATERIAL DEVE SER PRESERVADA EM RAZÃO DE EXIGÊNCIAS DE ORDEM POLÍTICO-SOCIAL QUE IMPÕEM A PREPONDERÂNCIA DO VALOR CONSTITUCIONAL DA SEGURANÇA JURÍDICA, QUE REPRESENTA, EM NOSSO ORDENAMENTO POSITIVO, UM DOS SUBPRINCÍPIOS DA PRÓPRIA ORDEM DEMOCRÁTICA.
DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra decisão, que, proferida pelo E. Superior Tribunal de Justiça, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 361):
“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL E DIREITO DE FAMÍLIA. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPROCEDÊNCIA DE DEMANDA ANTERIOR. COISA JULGADA. SUPERVENIÊNCIA DE NOVOS MEIOS DE PROVA. IRRELEVÂNCIA. PREVALÊNCIA DA SEGURANÇA JURÍDICA. RECURSO DESPROVIDO.
1. O julgamento do recurso especial conforme o art. 557, § 1º-A, do CPC não ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa, se observados os requisitos recursais de admissibilidade, os enunciados de Súmulas e a jurisprudência dominante do STJ.
2. A via do agravo regimental, na instância especial, não se presta para prequestionamento de dispositivos constitucionais.
3. A Segunda Seção deste Tribunal Superior consagrou o entendimento de que deve ser preservada a coisa julgada nas hipóteses de ajuizamento de nova ação de investigação de paternidade, ainda que se postule pela utilização de meios mais modernos de prova, como o exame de DNA, haja vista a preponderância, nesses casos, da segurança jurídica.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (grifei)
A parte recorrente, ao deduzir o apelo extremo, sustentou que o Tribunal “a quo” teria transgredido os preceitos inscritos no art. 1º, inciso III, no art. 5º, incisos XXXV e XXXVI, e no art. 227, § 6º, todos da Constituição da República.
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS, ao opinar pelo conhecimento e provimento do recurso extraordinário em questão (fls. 569/571), formulou parecer assim ementado (fls. 569):
“CONSTITUCIONAL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. COISA JULGADA MATERIAL. SUPERAÇÃO EM DECORRÊNCIA DO SURGIMENTO DO EXAME DE DNA: POSSIBILIDADE. SEGURANÇA JURÍDICA QUE CEDE DIANTE DE VALORES CONSTITUCIONAIS DE MAIS ALTO ESCALÃO: DIREITO DE PERSONALIDADE.
1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 363.889, com repercussão geral reconhecida, decidiu, por maioria, pela possibilidade de superação da coisa julgada para autorizar a propositura de nova ação de investigação de paternidade em face do surgimento do exame de DNA.” (grifei)
Sendo esse o contexto, passo a apreciar a postulação recursal ora em exame. E, ao fazê-lo, observo, desde logo, que tenderia a negar provimento ao recurso extraordinário em questão, pois entendo que se deve preservar a autoridade da coisa julgada em razão de exigências de ordem social que impõem a preponderância da segurança jurídica, que representa, em nosso sistema constitucional, um dos subprincípios do Estado Democrático de Direito.
A análise da situação processual que resulta desta causa revela que a ora recorrente postula, na realidade, o reexame do fundo de uma controvérsia que já constituiu objeto de decisão irrecorrível.
Torna-se importante rememorar, por isso mesmo, considerado esse contexto processual, o alto significado de que se reveste, em nosso sistema jurídico, o instituto da “res judicata”, que configura atributo específico da jurisdição e que se projeta na dupla qualidade que tipifica os efeitos emergentes do ato sentencial: a imutabilidade, de um lado, e a coercibilidade, de outro.
A proteção constitucional dispensada à coisa julgada em sentido material revela-se tão intensa que impede sejam alterados os atributos que lhe são inerentes, a significar, como já salientado, que nenhum ato estatal posterior poderá, validamente, afetar-lhe a integridade.
Esses atributos que caracterizam a coisa julgada em sentido material, notadamente a imutabilidade dos efeitos inerentes ao comando sentencial, recebem, diretamente, da própria Constituição, especial proteção destinada a preservar a inalterabilidade dos pronunciamentos emanados dos Juízes e Tribunais, criando, desse modo, situação de certeza, de estabilidade e de segurança para as relações jurídicas.
É por essa razão que HUMBERTO THEODORO JÚNIOR (“Curso de Direito Processual Civil”, vol. I/539-540, item n. 509, 51ª ed., 2010, Forense), discorrendo sobre o fundamento da autoridade da coisa julgada, esclarece que o legislador, ao instituir a “res judicata”, objetivou atender, tão-somente, “uma exigência de ordem prática (...), de não mais permitir que se volte a discutir acerca das questões já soberanamente decididas pelo Poder Judiciário”, expressando, desse modo, a verdadeira razão de ser do instituto em questão: a preocupação em garantir a segurança nas relações jurídicas e a necessidade de preservar a paz no convívio social.
Mostra-se tão intensa a intangibilidade da coisa julgada, considerada a própria disciplina constitucional que a rege, que nem mesmo lei posterior – que haja alterado (ou, até mesmo, revogado) prescrições normativas que tenham sido aplicadas, jurisdicionalmente, na resolução do litígio – tem o poder de afetar ou de desconstituir a autoridade da coisa julgada.
Daí o preciso magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Manual de Direito Processual Civil”, vol. III/329, item n. 687, 2ª ed./2ª tir., 2000, Millennium Editora) em torno das relações entre a coisa julgada e a Constituição:
“A coisa julgada cria, para a segurança dos direitos subjetivos, situação de imutabilidade que nem mesmo a lei pode destruir ou vulnerar - é o que se infere do art. 5º, XXXVI, da Lei Maior. E sob esse aspecto é que se pode qualificar a ‘res iudicata’ como garantia constitucional de tutela a direito individual.
Por outro lado, essa garantia, outorgada na Constituição, dá mais ênfase e realce àquela da tutela jurisdicional, constitucionalmente consagrada, no art. 5º, XXXV, para a defesa de direito atingido por ato lesivo, visto que a torna intangível até mesmo em face de ‘lex posterius’, depois que o Judiciário exaure o exercício da referida tutela, decidindo e compondo a lide.” (grifei)
Não custa enfatizar, de outro lado, na perspectiva da eficácia preclusiva da “res judicata”, que não se justifica a renovação do litígio que foi objeto de resolução no processo de conhecimento, especialmente porque a decisão que apreciou a controvérsia apresenta-se revestida da autoridade da coisa julgada, hipótese em que, nos termos do art. 474 do CPC, “reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor (...) à rejeição do pedido” (grifei).
Cabe ter presente, neste ponto, a advertência da doutrina (NELSON NERY JUNIOR/ROSA MARIA ANDRADE NERY, “Código de Processo Civil Comentado”, p. 709, 10ª ed., 2007, RT), cujo magistério - em lição plenamente aplicável ao caso ora em exame - assim analisa o princípio do “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat”:
“Transitada em julgado a sentença de mérito, as partes ficam impossibilitadas de alegar qualquer outra questão relacionada com a lide sobre a qual pesa a autoridade da coisa julgada. A norma reputa repelidas todas as alegações que as partes poderiam ter feito na petição inicial e contestação a respeito da lide e não o fizeram. Isto quer significar que não se admite a propositura de nova demanda para rediscutir a lide, com base em novas alegações.” (grifei)
Esse entendimento - que sustenta a extensão da autoridade da coisa julgada em sentido material tanto ao que foi efetivamente argüido quanto ao que poderia ter sido alegado, mas não o foi, desde que tais alegações e defesas se contenham no objeto do processo - também encontra apoio no magistério doutrinário de outros eminentes autores, tais como HUMBERTO THEODORO JÚNIOR (“Curso de Direito Processual Civil”, vol. I/550-553, itens ns. 516/516-a, 51ª ed., 2010, Forense), VICENTE GRECO FILHO (“Direito Processual Civil Brasileiro”, vol. 2/267, item n. 57.2, 11ª ed., 1996, Saraiva), MOACYR AMARAL SANTOS (“Primeiras Linhas de Direito Processual Civil”, vol. 3/56, item n. 754, 21ª ed., 2003, Saraiva), EGAS MONIZ DE ARAGÃO (“Sentença e Coisa Julgada”, p. 324/328, itens ns. 224/227, 1992, Aide) e JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Manual de Direito Processual Civil”, vol. III/332, item n. 689, 2ª ed., 2000, Millennium Editora).
Lapidar, sob tal aspecto, a autorizadíssima lição de ENRICO TULLIO LIEBMAN (“Eficácia e Autoridade da Sentença”, p. 52/53, item n. 16, nota de rodapé, tradução de Alfredo Buzaid/Benvindo Aires, 1945, Forense), que, ao referir-se ao tema dos limites objetivos da coisa julgada, acentua que esta abrange “tanto as questões que foram discutidas como as que o poderiam ser”:
“(...) se uma questão pudesse ser discutida no processo, mas de fato não o foi, também a ela se estende, não obstante, a coisa julgada, no sentido de que aquela questão não poderia ser utilizada para negar ou contestar o resultado a que se chegou naquele processo. Por exemplo, o réu não opôs uma série de deduções defensivas que teria podido opor, e foi condenado. Não poderá ele valer-se daquelas deduções para contestar a coisa julgada. A finalidade prática do instituto exige que a coisa julgada permaneça firme, embora a discussão das questões relevantes tenha sido eventualmente incompleta; absorve ela, desse modo, necessariamente, tanto as questões que foram discutidas como as que o poderiam ser.” (grifei)
A necessária observância da autoridade da coisa julgada representa expressivo consectário da ordem constitucional, que consagra, dentre os vários princípios que dela resultam, aquele concernente à segurança jurídica.
É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, já fez consignar advertência que põe em destaque a essencialidade do postulado da segurança jurídica e a consequente imprescindibilidade de amparo e tutela das relações jurídicas definidas por decisão transitada em julgado:
“O CUMPRIMENTO DAS DECISÕES JUDICIAIS IRRECORRÍVEIS IMPÕE-SE AO PODER PÚBLICO COMO OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL INDERROGÁVEL.
A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito.
O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República.
A desobediência a ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas conseqüências, quer no plano penal, quer no âmbito político-administrativo (possibilidade de ‘impeachment’), quer, ainda, na esfera institucional (decretabilidade de intervenção federal nos Estados-membros ou em Municípios situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios).”
(RTJ 167/6-7, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
O que se revela incontroverso, nesse contexto, é que a exigência de segurança jurídica, enquanto expressão do Estado Democrático de Direito, mostra-se impregnada de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES), em ordem a viabilizar a incidência desse mesmo princípio sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado, para que se preservem, desse modo, situações consolidadas e protegidas pelo fenômeno da “res judicata”.
Importante referir, no ponto, em face de sua extrema pertinência, a aguda observação de J. J. GOMES CANOTILHO (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 250, 1998, Almedina):
“Estes dois princípios - segurança jurídica e protecção da confiança - andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante ‘qualquer acto’ de ‘qualquer poder’ - legislativo, executivo e judicial.” (grifei)
Nem se invoque, ainda, para legitimar entendimento em sentido contrário à garantia da “res judicata”, a tese da “relativização” da autoridade da coisa julgada, em especial da (impropriamente) denominada “coisa julgada inconstitucional”, como sustentam alguns eminentes autores (JOSÉ AUGUSTO DELGADO, “Pontos Polêmicos das Ações de Indenização de Áreas Naturais Protegidas – Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais”, “in” Revista de Processo nº 103/9-36; CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, “Relativizar a Coisa Julgada Material”, “in” Revista de Processo nº 109/9-38; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, “A Reforma do Processo de Execução e o Problema da Coisa Julgada Inconstitucional (Código de Processo Civil, artigo 741, Parágrafo Único)”, “in” Revista dos Tribunais, vol. 841/56/76, ano 94; TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, “O Dogma da Coisa Julgada – Hipóteses de Relativização”, 2003, RT; TEORI ALBINO ZAVASCKI, “Embargos à Execução com Eficácia Rescisória: Sentido e Alcance do Art. 741, Parágrafo Único, Do CPC”, “in” Revista de Processo, vol. 125/79-91, v.g.).
Tenho para mim que essa posição (a da relativização da coisa julgada), se admitida, antagonizar-se-ia com a proteção jurídica que a ordem constitucional dispensa, em caráter tutelar, à “res judicata”.
Na realidade, a desconsideração da “auctoritas rei judicatae” implicaria grave enfraquecimento de uma importantíssima garantia constitucional que surgiu, de modo expresso, em nosso ordenamento positivo, com a Constituição de 1934.
A pretendida “relativização” da coisa julgada – tese que tenho repudiado em diversos julgamentos (monocráticos) proferidos no Supremo Tribunal Federal (RE 592.912/RS – RE 594.350/RS – RE 594.892/RS – RE 594.929/RS – RE 595.565/RS, dos quais sou Relator) - provocaria conseqüências altamente lesivas à estabilidade das relações intersubjetivas, à exigência de certeza e de segurança jurídicas e à preservação do equilíbrio social, valendo destacar, em face da absoluta pertinência de suas observações, a advertência de ARAKEN DE ASSIS (“Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional”, “in” Revista Jurídica nº 301/7-29, 12-13):
“Aberta a janela, sob o pretexto de observar equivalentes princípios da Carta Política, comprometidos pela indiscutibilidade do provimento judicial, não se revela difícil prever que todas as portas se escancararão às iniciativas do vencido. O vírus do relativismo contaminará, fatalmente, todo o sistema judiciário. Nenhum veto, ‘a priori’, barrará o vencido de desafiar e afrontar o resultado precedente de qualquer processo, invocando hipotética ofensa deste ou daquele valor da Constituição. A simples possibilidade de êxito do intento revisionista, sem as peias da rescisória, multiplicará os litígios, nos quais o órgão judiciário de 1º grau decidirá, preliminarmente, se obedece, ou não, ao pronunciamento transitado em julgado do seu Tribunal e até, conforme o caso, do Supremo Tribunal Federal. Tudo, naturalmente justificado pelo respeito obsequioso à Constituição e baseado na volúvel livre convicção do magistrado inferior.
Por tal motivo, mostra-se flagrante o risco de se perder qualquer noção de segurança e de hierarquia judiciária. Ademais, os litígios jamais acabarão, renovando-se, a todo instante, sob o pretexto de ofensa a este ou aquele princípio constitucional. Para combater semelhante desserviço à Nação, urge a intervenção do legislador, com o fito de estabelecer, previamente, as situações em que a eficácia de coisa julgada não opera na desejável e natural extensão e o remédio adequado para retratá-la (...). Este é o caminho promissor para banir a insegurança do vencedor, a afoiteza ou falta de escrúpulos do vencido e o arbítrio e os casuísmos judiciais.” (grifei)
Esse mesmo entendimento - que rejeita a “relativização” da coisa julgada em sentido material – foi exposto, em lapidar abordagem do tema, por NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (“Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante”, p. 715/716, item n. 28, 11ª ed., 2010, RT):
“28. Coisa julgada material e Estado Democrático de Direito. A doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada material como ‘elemento de existência’ do Estado Democrático de Direito (...). A ‘supremacia da Constituição’ está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.º ‘caput’), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas da doutrina e jurisprudência, como é o caso da sentença injusta, repelida como irrelevante (...) ou da sentença proferida contra a Constituição ou a lei, igualmente considerada pela doutrina (...), sendo que, nesta última hipótese, pode ser desconstituída pela ação rescisória (CPC 485 V). (...) O risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (‘rectius’: desconsideração) da coisa julgada.” (grifei)
Absolutamente correto, pois, o magistério de autores – como JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“Considerações Sobre a Chamada ‘Relativização’ da Coisa Julgada Material” “in” Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro nº 62/43-69); ROSEMIRO PEREIRA LEAL (“Relativização Inconstitucional da Coisa Julgada – Temática Processual e Reflexões Jurídicas”, p. 3/22, 2005, Del Rey); SÉRGIO GILBERTO PORTO (“Cidadania Processual e Relativização da Coisa Julgada” “in” Revista Jurídica nº 304/23-31) e LUIZ GUILHERME MARINONI e DANIEL MITIDIERO (“Código de Processo Civil”, p. 716/717, item n. 9, 2ª ed., 2010, RT) – que repudiam a tese segundo a qual mostrar-se-ia viável a “relativização” (ou desconsideração) da autoridade da coisa julgada, independentemente da utilização ordinária da ação rescisória, valendo relembrar, no ponto, a advertência de LEONARDO GRECO (“Eficácia da Declaração ‘Erga Omnes’ de Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade em Relação à Coisa Julgada Anterior” “in” “Relativização da Coisa Julgada”, p. 254/255, 2ª ed./2ª tir., 2008, JusPODIVM):
“(...) Todavia, parece-me que a coisa julgada é uma importante garantia fundamental e, como tal, um verdadeiro direito fundamental, como instrumento indispensável à eficácia concreta do direito à segurança, inscrito como valor e como direito no preâmbulo e no ‘caput’ do artigo 5º da Constituição de 1988. A segurança não é apenas a proteção da vida, da incolumidade física ou do patrimônio, mas também e principalmente a segurança jurídica.
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A segurança jurídica é o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes.
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A coisa julgada é, assim, uma garantia essencial do direito fundamental à segurança jurídica.
Em recente estudo sobre as garantias fundamentais do processo, recordei que, na jurisdição de conhecimento, a coisa julgada é garantia da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva. Àquele a quem a Justiça reconheceu a existência de um direito, por decisão não mais sujeita a qualquer recurso no processo em que foi proferida, o Estado deve assegurar a sua plena e definitiva fruição, sem mais poder ser molestado pelo adversário. Se o Estado não oferecer essa garantia, a jurisdição nunca assegurará em definitivo a eficácia concreta dos direitos dos cidadãos. Por outro lado, a coisa julgada é uma conseqüência necessária do direito fundamental à segurança (artigo 5º, inciso I, da Constituição) também dos demais cidadãos, e não apenas das partes no processo em que ela se formou, pois todos aqueles que travam relações jurídicas com alguém que teve determinado direito reconhecido judicialmente devem poder confiar na certeza desse direito que resulta da eficácia que ninguém pode negar aos atos estatais. (…).” (grifei)
Cabe ter presente, neste ponto, o que a própria jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal vinha proclamando, já há quatro (4) décadas, a respeito da invulnerabilidade da coisa julgada em sentido material, enfatizando, em tom de grave advertência, que sentenças transitadas em julgado, ainda que inconstitucionais, somente poderão ser invalidadas mediante utilização de meio instrumental adequado, como sucede com a ação rescisória no domínio processual civil.
Com efeito, esta Suprema Corte, já em 1968, quando do julgamento do RMS 17.976/SP, Rel. Min. AMARAL SANTOS (RTJ 55/744), proferiu decisão na qual reconheceu a impossibilidade jurídico-processual de válida desconstituição da autoridade da coisa julgada, mesmo na hipótese de a sentença transitada em julgado haver resolvido o litígio com fundamento em lei declarada inconstitucional:
“A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional.
Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação rescisória, sendo impróprio o mandado de segurança (...).” (grifei)
Posteriormente, em 1977, o Supremo Tribunal Federal, reafirmando essa corretíssima orientação jurisprudencial, fez consignar a inadmissibilidade de embargos à execução naqueles casos em que a sentença passada em julgado apoiou-se, para compor a lide, em lei declarada inconstitucional por esta Corte Suprema:
“Recurso Extraordinário. Embargos à execução de sentença porque baseada, a decisão trânsita em julgado, em lei posteriormente declarada inconstitucional. A declaração da nulidade da sentença somente é possível via da ação rescisória. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. (...).”
(RE 86.056/SP, Rel. Min. RODRIGUES ALCKMIN – grifei)
Vê-se, a partir das considerações que venho de expor, que não se revela processualmente ortodoxo nem juridicamente adequado, muito menos constitucionalmente lícito, pretender-se o reexame de controvérsia definitivamente resolvida por decisão transitada em julgado.
É que, em ocorrendo tal situação, a sentença de mérito tornada irrecorrível em face do trânsito em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de uma específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória), desde que utilizada, pelo interessado, no prazo decadencial definido em lei, pois, esgotado referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, que se revela, a partir de então, insuscetível de modificação ulterior, como observa JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Manual de Direito Processual Civil”, vol. III/344, item n. 698, 2ª ed./2ª tir., 2000, Millennium Editora):
“Passando em julgado a sentença ou acórdão, há um julgamento com força de lei entre as partes, a que estas se encontram vinculadas imutavelmente.
Permitido está, no entanto, que se ataque a ‘res iudicata’ (...), principalmente através de ação rescisória. (...).
Esse prazo é de decadência e seu ‘dies a quo’ se situa na data em que ocorreu a ‘res iudicata’ formal. (...).
Decorrido o biênio sem a propositura da rescisória, há coisa ‘soberanamente’ julgada, o que também se verifica depois de transitada em julgado decisão declarando improcedente a rescisória.” (grifei)
Como anteriormente salientei no início desta decisão, tenderia a negar provimento ao presente recurso extraordinário, pois, consoante enfatizei, entendo que se deve preservar a autoridade da coisa julgada em razão de exigências de ordem social que impõem a preponderância da segurança jurídica, que representa, em nosso sistema constitucional, um dos subprincípios do Estado Democrático de Direito.
Ocorre, no entanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao menos em tema de investigação de paternidade, firmou-se em sentido diverso. Por isso mesmo, e com a ressalva de minha posição pessoal, devo ajustar-me ao entendimento majoritário que prevaleceu, no âmbito desta Corte, no exame da questão jurídica ora em análise.
Cabe-me reconhecer, por tal motivo (e apenas em razão dele), que o acórdão – de que ora se recorre extraordinariamente – diverge da orientação jurisprudencial que o Plenário desta Suprema Corte fixou sobre o “thema decidendum”.
Com efeito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, após reconhecer a existência de repercussão geral da controvérsia jurídica também versada na presente causa, julgou o RE 363.889-RG/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, proferindo decisão consubstanciada em acórdão assim ementado:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA. REPROPOSITURA DA DEMANDA. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE.
1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova.
2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, único meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo.
3. Em respeito ao princípio da busca da identidade genética do ser, não devem ser impostos óbices processuais à veraz determinação de sua existência, em cada caso concreto, como forma de tornar-se igualmente efetivo o princípio da igualdade entre os filhos, inclusive de direitos e qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável.
4. Recursos extraordinários conhecidos e providos.” (grifei)
Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, e com ressalva de minha posição pessoal, conheço do presente recurso extraordinário, para dar-lhe provimento (CPC, art. 557, § 1º-A), respeitando, desse modo, o princípio da colegialidade.
Publique-se.
Brasília, 23 de novembro de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
* decisão publicada no DJe de 29.11.2011
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STJ - Superior Tribunal de Justiça. STF - Coisa Julgada - "Relativização" - Investigação de Paternidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 maio 2012, 20:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Jurisprudências /28991/stf-coisa-julgada-quot-relativizacao-quot-investigacao-de-paternidade. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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