Acórdão: Recurso Especial n. 770.315 - AL (2005⁄0122733-9).
Relator: Min. Francisco Peçanha Martins.
Data da decisão: 04.04.2006.
RECORRENTE : DEPARTAMENTO ESTADUAL DE TRÂNSITO DE ALAGOAS - DETRAN⁄AL
PROCURADOR : SANDRA MARIA NEVES DOS SANTOS E OUTROS
RECORRIDO : ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DE ALAGOAS - ANOREG
ADVOGADO : FÁBIO COSTA FERRARIO DE ALMEIDA
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. CERTIFICADO DE REGISTRO DE VEÍCULO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PUBLICIDADE. VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 1.361, § 1º, DO CCB, 66, § 1º, DA LEI 4.728⁄65, 122 E 124 DO CTB. EXIGIBILIDADE DE REGISTRO CARTORIAL PARA EXPEDIÇÃO DO DOCUMENTO DO VEÍCULO. IMPOSSIBILIDADE.
1. O registro no cartório não é requisito de validade do contrato de alienação fiduciária. Ele traz como única conseqüência a ausência de eficácia desse contrato perante o terceiro de boa-fé.
2. A anotação do gravame no Certificado de Propriedade do Veículo pelo órgão competente permite que o adquirente se certifique dessa situação do automóvel, dando efetividade à publicidade que se pretende.
3. Inviável determinar que o órgão administrativo exija o prévio registro cartorial do contrato de alienação fiduciária para a expedição do certificado de registro do veículo, sem que a lei o faça.
4. Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso. Votaram com o Relator os Srs. Ministros Eliana Calmon, João Otávio de Noronha e Castro Meira. Presidiu o julgamento o Exmo. Sr. Ministro João Otávio de Noronha.
Brasília (DF), 04 de abril de 2006 (Data do Julgamento)
MINISTRO FRANCISCO PEÇANHA MARTINS
Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 770.315 - AL (2005⁄0122733-9)
RELATÓRIO
EXMO. SR. MINISTRO FRANCISCO PEÇANHA MARTINS :
Trata-se de recurso especial manifestado pelo DEPARTAMENTO ESTADUAL DE TRÂNSITO DE ALAGOAS - DETRAN⁄AL com fundamento nas letras "a" e "c" do permissivo constitucional contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça estadual que, por unanimidade, rejeitou a preliminar de inexistência de irregularidade formal e deu provimento à apelação interposta pela ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DE ALAGOAS - ANOREG, nos autos da ação mandamental impetrada pela Associação contra ato do Diretor-Geral do DETRAN⁄AL que se nega a exigir o prévio registro do contrato de venda com reserva de domínio no Cartório de Títulos e Documentos, como condição para expedição do Certificado de Registro do Veículo.
O acórdão determinou que o DETRAN⁄AL exija o comprovante de prévio registro cartorial do contrato de venda com reserva de domínio para a expedição de certificado de registro de veículos alienados fiduciariamente.
O DETRAN⁄AL opôs embargos de declaração, alegando omissão no acórdão, que foram rejeitados, mantendo na totalidade os termos do acórdão impugnado e afirmando que os artigos 122 e 123 do CTB não trazem rol restritivo de exigências para a expedição do Certificado de Registro de Veículos. O DETRAN⁄AL opôs novos embargos de declaração, ao mesmo fundamento, que também foram rejeitados.
No recurso especial o recorrente alega negativa de vigência ao art. 1.361, § 1º, do CCB e interpretação divergente à do STJ aos artigos 66, § 1º, da Lei 4.728⁄65, 122 e 124 do CTB, asseverando que o DETRAN não está obrigado a exigir o registro no Cartório de Títulos e Documentos do contrato de alienação fiduciária de veículos, pois é suficiente para constituir a propriedade fiduciária de veículos a anotação desse contrato no certificado de registro por ele emitido.
Recurso extraordinário interposto simultaneamente.
Contra-razões às fls. 356⁄376.
Apenas o recurso especial foi admitido no Tribunal a quo. Contra a decisão denegatória de admissibilidade do recurso extraordinário foi interposto agravo de instrumento. Os autos subiram a esta eg. Corte, onde vieram a mim conclusos.
Dispensei o pronunciamento do Ministério Público Federal, nos termos regimentais.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 770.315 - AL (2005⁄0122733-9)
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. CERTIFICADO DE REGISTRO DE VEÍCULO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PUBLICIDADE. VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 1.361, § 1º, DO CCB, 66, § 1º, DA LEI 4.728⁄65, 122 E 124 DO CTB. EXIGIBILIDADE DE REGISTRO CARTORIAL PARA EXPEDIÇÃO DO DOCUMENTO DO VEÍCULO. IMPOSSIBILIDADE.
1. O registro no cartório não é requisito de validade do contrato de alienação fiduciária. Ele traz como única conseqüência a ausência de eficácia desse contrato perante o terceiro de boa-fé.
2. A anotação do gravame no Certificado de Propriedade do Veículo pelo órgão competente permite que o adquirente se certifique dessa situação do automóvel, dando efetividade à publicidade que se pretende.
3. Inviável determinar que o órgão administrativo exija o prévio registro cartorial do contrato de alienação fiduciária para a expedição do certificado de registro do veículo, sem que a lei o faça.
4. Recurso especial conhecido e provido.
VOTO
EXMO. SR. MINISTRO FRANCISCO PEÇANHA MARTINS (Relator): Recebi alentado memorial da ANOREG⁄BR, enriquecido com pareceres de ilustres juristas e lições de renomados professores de direito.
E tem razão o ilustre memorialista ao declarar que a interpretação do art. 1.361 e § 1º do Código Civil "constitui o ponto nodal do presente recurso extremo".
O que diz a Lei Civil:
"Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.
§ 1º. Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro"
É certo que a propriedade fiduciária se constitui pelo registro do contrato alienatório no Cartório de Títulos e Documentos. As lições de Moreira Alves, Caio Tácito e outros, e os julgados da lavra de eminentes juristas desta Corte, não são contemporâneas com o novo Código Civil.
E não afasto os comentários tecidos pelos Professores Luiz Roberto Barroso, Marco Aurélio Bezerra de Mello, Melhim Namem Chalhub, Luiz Fachin e tantos outros a respeito da regra geral de constituição de direitos de propriedade e validade de contratos para com terceiros.
Nem posso confrontar o texto escrito com a vontade do legislador cuja investigação e atividade própria dos psiquiatras como assinalou Aliomar Baleeiro. A regra do parágrafo primeiro do art. 1.361 é clara e precisa, criando uma alternativa registral para os contratos de alienação fiduciária de veículos, ou seja, excepcionando a regra de constituição do direito de propriedade fiduciária dos veículos.
Dir-se-á que teria havido erro, equívoco, má-fé, deturpação da vontade do legislador, enfim, que a inserção da conjunção ou se fizera em fraude.
Não creio que tal tenha ocorrido, pois não posso presumir o ato ilícito, a conduta afrontosa à lei, a fraude, portanto, deve ser provada. Ao intérprete cabe observar o que diz a lei, da qual decorre o direito, como ensina Kelsen. A vontade do legislador é preocupação de psiquiatra, psicólogo ou sociólogo. Ao jurista cabe aplicar a lei, interpretando-a de acordo com métodos e processos consagrados ao longo da história dos povos. E não afasto a interpretação gramatical, a primeira dentro da investigação sistemática do sistema jurídico. E o faço com amparo na lição de Rui Barbosa, defendendo a cidadania ameaçada por haver recebido condecoração estrangeira. Valeu-se da gramática. Na hipótese do parágrafo primeiro, a conjunção adversativa (?) criou a alternativa do registro administrativo no DETRAN, estabelecendo, sim, uma nova e especial regra de constituição do direito de propriedade fiduciária mediante registro dos contratos na repartição competente para fiscalizar e disciplinar o trânsito de veículos no país. Poderia fazê-lo? Por óbvio que sim. E a própria presença do mestre Moreira Alves, dentre os notáveis componentes da Comissão constituída para elaborar o novo Código Civil sob a coordenação do filósofo e jurisconsulto Miguel Reale, permite consolidar a visão inovadora excepcional, surgida da imposição do fenômeno econômico próprio da industrialização - a produção em massa.
De notar que no julgado da lavra do eminente Min. José Delgado, a ação fora proposta para afastar a exigência do DETRAN⁄DF, de apresentação de certidão de registro de contrato de alienação fiduciária no Cartório de Títulos e Documentos. Transcrevo trecho elucidativo do voto do eminente Relator no Resp. 140.873-DF:
"Penso que deve ser homenageada a exigência feita pelo DETRAN de que os certificados de Registro de Veículos, onde consta a cláusula de alienação fiduciária, só possam ser emitidos depois de os contratos se encontrarem registrados no Registro de Títulos e Documentos".
.........................
"Não vislumbro nenhuma ilegalidade cometida pelo DETRAN ao fazer essa exigência ao lado das resoluções postas no contrato".
O julgamento deste recurso especial ocorreu por maioria, vencido o Min. Gomes de Barros, na sessão realizada no dia 8.10.1997 pela Eg. 1ª Turma, vale dizer, cinco (5) anos antes da vigência do novo Código Civil, como aliás, ressaltado no memorial apresentado.
No caso presente, a ANOREG impetrou mandado de segurança contra ato do Diretor Geral do Departamento Estadual de Trânsito de Alagoas - DETRAN-AL, qual seja o indeferimento do processo administrativo nº 1.777⁄03, onde formulara pedido para que "o órgão de trânsito exigisse, para fins de anotação da propriedade fiduciária", o prévio registro dos contratos no Cartório de Títulos e Documentos, conforme determinado pela legislação em vigor (Lei 4.728⁄65, Lei 6.015⁄73, Decreto-lei 911⁄73).
O DETRAN indeferiu o pleito ao fundamento de que não seria necessário o registro dos contratos de alienação fiduciária de veículos no registro de títulos e documentos, mas tão-só no órgão executivo de trânsito (DETRAN-AL), nos termos do art. 1.361, § 1º, do Código Civil (fls. 0-1) dos autos).
Esta a questão discutida e a ser dirimida sob a égide do CC vigente.
Assinalo que no julgamento do Resp. Nº 278.993-SP, de que foi Relatora, na Eg. 2ª T., a eminente Ministra Laurita Vaz, foi assentado, por unanimidade, o improvimento do recurso manifestado pelo Sindicato dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo contra acórdão em mandado de segurança requerido contra a Fazenda do Estado de São Paulo. Vale transcrita a ementa do acórdão:
"ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. VEÍCULO AUTOMOTOR. ANOTAÇÃO NO CERTIFICADO DE REGISTRO DO VEÍCULO. DETRAN. PUBLICIDADE. INEXIGIBILIDADE DE REGISTRO CARTORIAL PARA EXPEDIÇÃO DO DOCUMENTO DO VEÍCULO.
1. A exigência de registro em Cartório do contrato de alienação fiduciária não é requisito de validade do negócio jurídico. Para as partes signatárias a avença é perfeita e plenamente válida, independentemente do registro que, se ausente, traz como única conseqüência a ineficácia do contrato perante o terceiro de boa-fé. Inteligência do art. 66, § 1º, da Lei n.º 4.728⁄65, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 911⁄69, e do art. 129, item 5º, da Lei n.º 6.015⁄73.
2. O Código Nacional de Trânsito (Lei n.º 9.503⁄97), ao disciplinar as regras de expedição dos Certificados de Registro de Veículo (arts. 122 e 124), não prevê como peça obrigatória a ser apresentada o contrato de alienação fiduciária registrado.
3. Ao interpretar sistematicamente o dispositivo nos §§ 1º e 10, do art. 66 da Lei n.º 4.728⁄65, c⁄c os arts. 122 e 124 da Lei n.º 9.503⁄97, e prestigiando-se a ratio legis, impende concluir que, no caso de veículo automotor, basta constar do Certificado de Registro a alienação fiduciária, uma vez que, desse modo, resta plenamente atendido o requisito da publicidade.
4. Destarte, se a Lei não exige o prévio registro cartorial do contrato de alienação fiduciária para a expedição de Certificado de Registro de Veículo, com anotação do gravame, não há como compelir a autoridade do DETRAN a proceder como quer o Recorrente.
5. Recurso Especial improvido." (REsp 278.993⁄SP, Relatora Ministra LAURITA VAZ, DJ 16.12.2002 )
Vejamos o que dizem os artigos de leis em que se amparam os recorridos para obter a manutenção do acórdão que lhes reconheceu a obrigatoriedade dos registros dos contratos de alienação fiduciária dos veículos.
Diz o art. 66, § 1º, da Lei 4.728⁄65, com a redação dada pelo DL 911⁄69:
"§ 1º: A alienação fiduciária somente se prova por escrito e seu instrumento, público ou particular, qualquer que seja o seu valor, será obrigatoriamente arquivado, por cópia ou microfilme, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do credor, sob pena de não valer contra terceiros".
O art. 129, da Lei 6.015⁄73, que dispõe sobre os Registros Públicos, reza:
"Art. 129. Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e Documentos, para surtir efeitos em relação a terceiros:
§ 5º . Os contratos de alienação fiduciária."
Como se observa, o registro dos contratos de alienação fiduciária só é exigível para valer contra terceiros. Utilizados para garantia dos credores nas vendas de bens móveis, o contrato, por instrumento público ou particular, vale entre as partes, independentemente de registro. O mestre Orlando Gomes, na sua obra "Alienação Fiduciária em Garantia", acentua sobre a questão discutida:
"A exigência de registro não é requisito de validade. Para as partes, não é sequer de eficácia. Nem se prende, senão mediata e indiretamente, à forma do negócio. Constitui, em verdade, imposição legal para o fim específico de valer contra terceiros" (ob. cit., RT, 2ª ed., pág. 58).
O registro dos contratos de alienação fiduciária se impõe só e só para a proteção de terceiros e do credor. Não foi por outra razão que este STJ editou a Súmula 92, prestigiando a publicidade decorrente do documento essencial ao trânsito de veículos:
"A terceiro de boa-fé não é oponível a alienação fiduciária não anotada no Certificado de Registro do veículo automotor".
Súmula 489⁄STF: "A compra e venda de automóvel não prevalece contra terceiros, de boa-fé, se o contrato não foi transcrito no Registro de Títulos e Documentos".
E tanto é assim que a própria Lei 4.728⁄65, no § 10 do art. 66, impõe deva constar do Certificado de Registro, a alienação fiduciária em garantia de veículo automotor, para fins probatórios.
Ora, se anteriormente à vigência do novo Código Civil, a jurisprudência pacífica do STJ já proclamava a não exigência de prévio registro cartorial do contrato de alienação fiduciária para a expedição do certificado de propriedade essencial à liberação de trânsito de veículo automotor pelo DETRAN, o que talvez tenha inspirado o legislador para a inserção da alternativa de registro consignada no § 1º do art. 1.361 do CC, dúvidas não me restam para interpretar a mencionada norma, nos exatos termos com que foi promulgada, criando, sim, a alternatividade de registro do contrato de alienação fiduciária - no Cartório de Registro de Títulos e Documentos ou no DETRAN - para valer contra terceiros.
À vista do exposto, conheço e dou provimento ao recurso para reformar o acórdão recorrido, denegando a segurança.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEGUNDA TURMA
Número Registro: 2005⁄0122733-9 REsp 770315 ⁄ AL
Números Origem: 1030085650 20030025880 85650103
PAUTA: 11⁄10⁄2005 JULGADO: 04⁄04⁄2006
Relator
Exmo. Sr. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. EUGÊNIO JOSÉ GUILHERME DE ARAGÃO
Secretária
Bela. VALÉRIA ALVIM DUSI
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : DEPARTAMENTO ESTADUAL DE TRÂNSITO DE ALAGOAS - DETRAN⁄AL
PROCURADOR : SANDRA MARIA NEVES DOS SANTOS E OUTROS
RECORRIDO : ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DE ALAGOAS - ANOREG
ADVOGADO : FÁBIO COSTA FERRARIO DE ALMEIDA
ASSUNTO: Administrativo - Ato - Licenciamento - Veículo Automotor
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia SEGUNDA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator."
Os Srs. Ministros Eliana Calmon, João Otávio de Noronha e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 04 de abril de 2006
VALÉRIA ALVIM DUSI
Secretária
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