INFORMATIVO Nº 431
TÍTULO
Decreto Expropriatório: Transmissão “Mortis Causa” e Partes Ideais (Transcrições)
PROCESSO
MS - 24573
ARTIGO
Decreto Expropriatório: Transmissão “Mortis Causa” e Partes Ideais (Transcrições) MS 24573/DF* RELATOR: MIN. EROS GRAU Voto-vista: O impetrante pretende anular decreto do Presidente da República que declarou de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural denominado “Engenho Canoa Rachada”, Município de Água Preta (PE). 2. Inquietou-me o voto proferido pelo eminente Relator, Ministro Gilmar Mendes, em sentido diametralmente oposto ao meu pronunciamento nos autos do MS n. 24.924, ambos apregoados em sessão realizada no último dia 10 de março. 3. Conforme o voto de Sua Excelência, as frações ideais dos nove condôminos do Engenho Canoa Rachada consubstanciariam unidades autônomas em face do art. 46, § 6º, do Estatuto da Terra [Lei n. 4.504/64], embora não tenham sido individualizadas no Sistema Nacional de Cadastro Rural do INCRA, nem no respectivo Cartório de Registro de Imóveis. Daí, em se tratando as partes ideais de médias propriedades rurais, seriam insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária. 4. A jurisprudência desta Corte, em matéria de reforma agrária, é extremamente rica. Cumpre, porém, ao Tribunal, na interpretação das decisões pretéritas, considerar as circunstâncias do momento histórico no qual prolatados os acórdãos, trazidas essas mesmas circunstâncias ao instante em que se opere a uniformização de seu entendimento sobre a questão fundiária. 5. Acompanho o Ministro Relator, de início, no que tange à legitimidade do impetrante para a propositura do writ, à luz do que dispõe o art. 1º, § 2º, da Lei n. 1.533/51. 6. Permito-me divergir, no entanto, em relação à aplicação do § 6º do art. 46 do Estatuto da Terra. Faço-o reiterando os argumentos que contemplei no voto-vista proferido no MS n. 24.924. Adoto, neste passo, mediante a interpretação do todo que o ordenamento é, entendimento que me parece mais harmônico ao interesse social. 7. Leio o art. 46, § 6º, do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64): “§ 6º. No caso de imóvel rural em comum por força de herança, as partes ideais, para os fins desta Lei, serão consideradas como se divisão houvesse, devendo ser cadastrada a área que, na partilha, tocaria a cada herdeiro e admitidos os demais dados médios verificados na área total do imóvel rural.” 8. Aprendi com von JHERING que toda norma jurídica deve sua razão de ser a uma determinada finalidade. A finalidade objetivada nesse preceito, na expressão “para os fins desta Lei”, é a de instrumentar o cálculo do coeficiente de progressividade do Imposto Territorial Rural – ITR, a fim de evitar a solidariedade passiva dos condôminos no pagamento do tributo. Este aspecto foi adequadamente enfatizado pelos Ministros Nelson Jobim e Cezar Peluso, nos debates travados durante a sessão realizada em 10 de março último. 9. O ponto em questão é confirmado pelo texto do § 6º do art. 50, ainda do Estatuto da Terra, que trata do cálculo do coeficiente de progressividade para as propriedades em condomínio: “§6º. No caso de propriedade em condomínio, o coeficiente de progressividade referido no parágrafo primeiro será calculado como média ponderada em que os coeficientes da tabela correspondentes à situação de cada condômino definida no corpo do mesmo parágrafo são multiplicados pela sua área ideal e ao final somados e dividida a soma pela área total da propriedade.” 10. O art. 24 do decreto n. 55.891/65, de outra banda, ao disciplinar a elaboração dos cálculos, confirma esse mesmo entendimento. Respeita a modalidade de cadastramento prevista no § 6º do art. 46 do Estatuto da Terra: “Art 24. Os conjuntos de imóveis rurais de um mesmo proprietário ou de propriedades em condomínio, de acôrdo com o previsto, respectivamente, nos §§ 1º e 6º do art. 50 do Estatuto da Terra, cadastrados como previsto nos §§ 3º e 6º do art. 46 do referido Estatuto, terão os respectivos módulos médios calculados de acôrdo com os seguintes critérios: (...) II – nos casos de propriedade em condomínio, inclusive por fôrça de sucessão causa-mortis, será considerada, para cada um dos condôminos, a dimensão da parte ideal ou já demarcada que lhe pertença; III – nos casos de proprietários que possuam mais de um imóvel rural, sendo um ou mais dêstes em condomínio, o calculo do módulo, procedido na forma do inciso I levará em conta, para ponderação, a parte ideal ou já demarcada referida no inciso II e os módulos calculados para os respectivos imóveis em condomínio; IV – para cada um dos condôminos o coeficiente de progressividade referido ao § 1º do art. 50 do Estatuto da Terra será obtido na forma do § 6º daquele dispositivo legal, pela média ponderada dos coeficientes que foram apurados, da forma do inciso I, para cada condômino. O coeficiente médio comum a todos os condôminos será obtido multiplicando-se os coeficientes relativos a cada condômino pela área que lhe cabe ao condomínio, e dividindo-se a soma dos resultados dessa multiplicação pela área total dos imóveis;” (grifamos) 11. Note-se bem que a legislação atinente à reforma agrária em nenhum momento faz menção a essa modalidade de cadastramento, de modo que o procedimento previsto no art. 46, § 6º, do Estatuto da Terra, está voltado exclusivamente a fins tributários. Não se presta a ser usado como parâmetro do dimensionamento de imóveis rurais destinados à reforma agrária, matéria afeta à Lei n. 8.629/93. 12. Leio, na doutrina do direito agrário, observações de LINHARES DE LACERDA: “as partes ideais serão cadastradas como partes ideais, não como partes certas, como a princípio poderia parecer em virtude da alusão à divisão. A divisão de imóvel em comum, ou existe, ou não existe e neste último caso, só se pode falar em parte ideal, pois, o condomínio concernente à herança: I- é considerado por lei uma universalidade; II- é objeto de direitos iguais entre todos os condôminos os quais podem nele usar livremente da coisa conforme seu destino e sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão”. 13. Veja-se que, no MS n. 24.999, Relator o Ministro Carlos Velloso [DJ de 4.2.05], o item III da ementa determina a aplicação do § 6º do art. 46 do Estatuto da Terra “para os fins da desapropriação”, definindo de modo equivocado, no meu modo de ver, o alcance daquele preceito. Pois impõe-se, como creio ter demonstrado, a compreensão de cada texto normativo sempre em conjunto com os dos demais preceitos relativos à matéria, do que resultará a apreensão do sentido correto da expressão “para os fins desta Lei”. 14. De resto, como bem lembrou o Ministro Nelson Jobim no início do julgamento do presente caso, se considerado divisível o imóvel rural, a aplicação do § 6º do art. 46 do Estatuto da Terra autorizaria o INCRA a realizar a vistoria de partes ideais eventualmente improdutivas, desapropriando-as em detrimento do todo que é o imóvel rural. 15. Permito-me chamar a atenção de Vossas Excelências para o teor do art. 1.784 do vigente Código Civil: “Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.” 16. O preceito, ao consagrar o princípio da saisine, há de ser compreendido em conúbio com o disposto no art. 1.791 e seu parágrafo único: “Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.” 17. A saisine, como se vê claramente do texto do parágrafo único, torna múltipla apenas a titularidade do imóvel, que permanece sendo, do ponto de vista objetivo, até que sobrevenha a partilha, uma única propriedade. Observaram-no percucientemente a Ministra Ellen Gracie e o Ministro Cezar Peluso. 18. Juntou-se por linha, no caso, formal de partilha passado por ocasião da morte de José de Souza Leão, avô dos co-proprietários. Note-se, contudo, que não foi esta a forma de aquisição do imóvel objeto do presente mandado de segurança. O Engenho Canoa Rachada foi adquirido por escritura pública de doação feita por Estácio de Souza Leão, pai dos co-proprietários, nos termos da matrícula do imóvel [fls. 15/16]. 19. Impossível, pois, como se vê, operar-se, no caso, um autêntico “salto” na cadeia sucessória. O formal de partilha não é instrumento hábil para a concretização da divisão do bem. 20. Coisa distinta da titularidade do imóvel é a sua integridade física como uma só unidade. Ainda que se admita a existência de condomínio sobre o bem, essa unidade não pode ser afastada ou superada quando da apuração da sua área para fins de reforma agrária. Não se pode tomar cada parte ideal como se consubstanciassem propriedades distintas. 21. Apenas o registro do imóvel no cartório competente prova, no que concerne à propriedade imobiliária, a titularidade do domínio. Leia-se o art. 252 da Lei n. 6.015/73, na redação a ele conferida pela Lei n. 6.216/75: “Art. 252 - O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido.” 22. Protegido por presunção iuris tantum, qualquer modificação subjetiva ou objetiva referente ao imóvel há de ser, para que seja dotada de eficácia no mundo jurídico, averbada em sua matrícula. O registro imobiliário prevalece nos estritos termos de seu conteúdo. 23. Neste sentido a jurisprudência desta Corte. Destaco o MS n. 21.919, Relator o Ministro Celso de Mello [DJ de 6.6.97]: “Demais disso, impende observar – até mesmo em função do que prescreve o art. 252 da Lei n. 6.015/73 – que o conteúdo do Registro Imobiliário, enquanto não for invalidado, reveste-se de presunção iuris tantum de veracidade. Vale dizer, o ato registral, enquanto subsistir, produzirá todos os seus efeitos legais, notadamente aqueles que se referem à designação formal do dominus e à identificação material do imóvel.” 24. No mesmo sentido, o MS n. 24.503, Relator o Ministro Marco Aurélio [DJ de 5.9.2003]: “A par da distinção entre imóvel rural e propriedade rural, tem-se que não lograram os impetrantes comprovar a existência de módulos diversos, assim constantes do registro de imóveis, relativamente à fazenda.” 25. Tenho amplamente repetido neste Tribunal — faço-o à exaustão — que não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços. Esta pauta de interpretação abrange também os precedentes, que deixam de consubstanciar norma, configurando texto, quando os consideramos. 26. O Ministro Gilmar Mendes toma como razão de decidir o precedente do MS n. 21.919, para determinar que as partes ideais dos condôminos, médias propriedades, não estão sujeitas à expropriação. 27. É, contudo, certo que o inteiro teor desse acórdão, pormenorizando a função do cadastro rural do INCRA, bem assim os efeitos do registro de imóveis, é absolutamente categórico, já na ementa, ao afirmar a necessidade do registro para que se opere a transformação das partes ideais do bem imóvel em propriedades distintas: “Se, da divisão do imóvel, resultarem glebas que, objeto de matrícula e registros próprios, venham a qualificar-se como médias propriedades rurais, tornar-se-á impossível a desapropriação-sanção prevista no art. 184 da Carta Política.” [grifei] 28. O mesmo entendimento é contemplado no MS n. 22.591, Relator o Ministro Moreira Alves [DJ de 14.11.2003], expressamente referido pelo Ministro Gilmar Mendes. 29. O procedimento de desapropriação, encerrando questão de direito real, demanda a existência de elementos objetivos que o instrumentalizem, pena de tornar-se vulnerável à maleabilidade dos elementos puramente subjetivos. Um desses elementos objetivos, indispensáveis ao correto dimensionamento do imóvel rural, diz com sua matrícula no cartório competente, dado que o cadastro efetuado pelo INCRA não é expressão de função notarial. 30. FERNANDO SODERO — um dos redatores do ante-projeto do Estatuto da Terra e Professor da Cadeira de Direito Agrário nas Arcadas do Largo de São Francisco — observa configurarem finalidades do cadastro previsto no Estatuto da Terra: “i. o levantamento dos dados necessários à aplicação dos critérios de lançamentos fiscais atribuídos ao INCRA e à concessão das isenções a eles relativas e previstas na Constituição Federal e na legislação específica [...]; ii. o levantamento sistemático dos imóveis rurais, para conhecimento das condições vigentes na estrutura fundiária das várias regiões do País, com o objetivo de fornecer elementos de orientação da política agrícola a ser promovida pelos órgãos mencionados no art. 4º do Decreto n. 55.891, e à formulação dos Planos Nacional e Regionais de Reforma Agrária [...]” [grifos no original]. 31. Ainda nas palavras de SODERO: “[E]ste cadastro é classificado como “declaratório”, pois as informações sobre o imóvel rural resultam de sua descrição, de sua extensão e localização, do tipo de exploração nele existente, da forma de utilização do solo, da administração direta ou indireta do seu proprietário ou detentor e, o mais importante, dados fornecidos ao Poder Público pela pessoa que detém a propriedade, a posse ou o domínio útil do imóvel objeto do cadastro. Não devemos, pois, confundir este cadastro agrário com os que informam o registro predial do sistema francês e alemão [...], que cuidam, de forma diferente, de inscrição de direito real no referido registro. O que é objeto de disciplinação pelo Direito Agrário no Estatuto da Terra, é o declaratório. Este não cuida, pois, das garantias da propriedade imobiliária, tratada de forma diferente nos dois países citados.” 32. Impossível, destarte, a substituição dos termos do registro imobiliário, revestido de presunção iuris tantum, pelo conteúdo das fichas arquivadas no sistema do SNCR-INCRA, cuja razão de ser encontra-se em fundamentos precipuamente tributários, além das mencionadas pelo Ministro Celso de Mello em seu voto no MS n. 21.919 — mas que em nenhum momento prestam-se à mensuração dos prédios rurais. 33. Poderia parecer, em princípio, que o entendimento que ora estou a adotar ensejaria eventuais fraudes ao procedimento de desapropriação para fins de reforma agrária, na medida em que os co-proprietários inclinar-se-iam a registrar, em matrículas distintas, eventual divisão amigável, adiantamento de legítima ou mesmo a obviar a aceleração da partilha, permanecendo contudo a operar o imóvel rural como uma unidade econômica. 34. Recordo, no entanto, a jurisprudência desta Corte, absolutamente taxativa quanto à matéria: o art. 184 da Constituição do Brasil consigna a expressão “imóvel rural”, cujo conceito encontra-se no art. 4º, I, do Estatuto da Terra, dele distanciando a noção de propriedade rural. A existência ou não de condomínio sobre o bem passa a ser pormenor inteiramente prescindível para torná-lo suscetível de desapropriação, pois o texto do Estatuto da Terra preza pela unidade da exploração econômica do prédio rústico. 35. É o que se extrai da ementa do MS n. 24.503, Relator o Ministro Marco Aurélio [DJ de 5.9.2003]: “DESAPROPRIAÇÃO - REFORMA AGRÁRIA - OBJETO. A teor do disposto no artigo 184 da Constituição Federal, o alvo da reforma agrária é o “imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”, pouco importando a existência, sob o ângulo da propriedade, de condomínio.” [grifei] 36. A alegação de fraude pelo poder expropriante esbarraria, ainda, na presunção de veracidade do registro imobiliário, além de não comportar dilação probatória em sede mandamental. 37. Lembre-se que o uso da terra e as atividades rurais devem ser disciplinadas com base na função social da propriedade, como preconizado na definição de direito agrário de SODERO, de modo que o seu descumprimento, aferido conforme os critérios definidos na Lei n. 8.629/93, autoriza a edição do decreto que declara o imóvel de interesse social para fins de reforma agrária. 38. Não há, no presente caso, qualquer elemento a permitir que o “Engenho Canoa Rachada” possa ser tomado como um conjunto de médias propriedades rurais, distintas e individualizadas. Os condôminos não efetuaram o registro da divisão amigável do imóvel no cartório competente, o que o Código Civil não só autoriza, mas recomenda e estimula, tendo em vista a prevenção de conflitos de interesses. Mais: os condôminos sequer procederam às alterações necessárias nos arquivos do SNCR-INCRA. Ante o exposto, denego a ordem postulada no presente mandado de segurança para manter os efeitos do decreto do Presidente da República, de 25 de fevereiro de 2003. * acórdão pendente de publicação
Íntegra do Informativo 431
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Por: STJ - Superior Tribunal de Justiça BRASIL
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