RE 363889/DF*
RELATOR: Min. Dias Toffoli
VOTO-VISTA DO MIN. LUIZ FUX
1. D. G. S., menor representado por sua mãe, V. L. S., ajuizou demanda em face de G. F. R., com pedido de que seja reconhecida a relação de filiação e, ainda, condenado este último a fornecer-lhe alimentos. Na própria inicial menciona o autor que, anteriormente, já havia ajuizado demanda idêntica, julgada improcedente, contudo, por insuficiência de provas, o que se deveu à falta de recursos financeiros para que, à época, pudesse custear exame de DNA.
2. Segundo o autor, porém, a edição da Lei Distrital nº 1.097/96 permitiria, após sua entrada em vigor, a realização do exame de DNA às custas do Distrito Federal, como elemento do regime da assistência jurídica aos desamparados (CF, art. 5º, LXXIV), razão pela qual ajuizou a demanda atual alicerçando-se unicamente na perspectiva de realização da referida prova técnica.
3. Nestes autos, o juiz de primeiro grau rejeitou a preliminar de coisa julgada suscitada pelo réu, ensejando a continuidade do processo. Contra tal decisão foi interposto agravo de instrumento, provido pela 5ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal para determinar a extinção do processo sem exame de mérito, conforme a seguinte ementa:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - PRELIMINAR DE COISA JULGADA REJEITADA NA INSTÂNCIA MONOCRÁTICA - AGRAVO DE INSTRUMENTO - REPETIÇÃO DA AÇÃO PROPOSTA EM RAZÃO DA VIABILIDADE DA REALIZAÇÃO DO EXAME DE DNA ATUALMENTE - PRELIMINAR ACOLHIDA - PROVIMENTO DO RECURSO.
Havendo sentença transitada em julgado, que julgou improcedente a intentada ação de investigação de paternidade, proposta anteriormente pelo mesmo interessado, impõe-se o acolhimento da preliminar de coisa julgada suscitada neste sentido em sede de contestação, cuja eficácia não pode ficar comprometida, sendo inarredável esta regra libertadora do art. 468 do CPC, com atenção ao próprio princípio prevalente da segurança jurídica. Hipótese de extinção do feito sem julgamento do mérito.
4. Recorrem, agora, o Ministério Público do DF e o autor, pretendendo que esta Suprema Corte reverta a decisão do TJ/DF sob os seguintes fundamentos:
(i) violação ao âmbito de proteção da coisa julgada material (CF, art. 5º, XXXVI), ao argumento de que a sentença anterior não apreciou o mérito do conflito, porquanto não afirmada nem rejeitada a paternidade. Não lhe alcançaria, assim, a proteção constitucional da coisa julgada material, que, no campo das relações de parentesco, não poderia se sobrepor à verdade real. Além disso, o fundamento subjacente à coisa julgada, que consiste no princípio da segurança jurídica, não estaria presente na sentença anterior, na medida em que esta última não partiu de um mínimo grau de confiabilidade fática para rejeitar ou afirmar a paternidade.
(ii) violação ao direito fundamental à filiação (CF, art. 227, caput e § 6º), porquanto a instrumentalidade que rege as normas de processo não poderia conduzir a que a coisa julgada se sobrepusesse ao direito personalíssimo à identidade, razão pela qual, à luz do postulado da proporcionalidade, deve ser permitida a realização, in casu, do exame de DNA.
(iii) ofensa ao direito à assistência jurídica (CF, art. 5º, LXXIV), na medida em que a primeira decisão, como reconheceu o juiz sentenciante no feito anterior, foi resultado da hipossuficiência econômica do autor, que não pôde arcar com o exame de DNA no valor, à época, de U$ 1.500,00 (mil e quinhentos dólares). Eternizar esse resultado implicaria a preponderância de fatores econômicos sobre a verdade dos fatos, que tende a ser esclarecido pelo exame de DNA, hoje custeado pelo Distrito Federal por conta da Lei Distrital nº 1.097/96.
5. A Procuradoria-Geral da República manifestou-se, em parecer (fls. 338-348), pelo provimento dos recursos extraordinários, ao fundamento de que o direito fundamental à filiação e o princípio da dignidade da pessoa humana devem ser prestigiados, como conseqüência da aplicação ao caso do postulado da proporcionalidade.
6. O eminente Min. Relator Dias Toffoli, ao trazer o feito a julgamento na sessão plenária de 07 de abril de 2011, votou pelo provimento dos recursos extraordinários. Após afirmar o perigo da utilização desmedida do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento jurídico, aplicável, contemporaneamente, sem o devido rigor, frisou o relator o histórico do regime das relações de parentesco no direito brasileiro, para, após, destacar as mudanças operadas pela Constituição Federal de 1988 nesse tema. Foi objeto de particular menção a decisão tomada por esta Suprema Corte no Recurso Extraordinário nº 248.869/SP, em que, ao se reconhecer a constitucionalidade da legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizamento, após provocação, de demanda de investigação de paternidade, realçou-se o status constitucional do direito à identidade, em especial pelo conhecimento da própria origem biológica.
7. Asseverou o Min. Relator, ainda, que a coisa julgada material, formada em demanda ajuizada quando o autor tinha oito anos de idade, não poderia servir de óbice a que, mesmo com vinte e oito anos atualmente, não seja garantido ao filho o direito a “uma resposta cabalmente fundamentada, calcada em uma prova de certeza inquestionável, acerca de sua veraz origem genética”. Como fundamento, assinalou-se que a garantia da coisa julgada material não poderia ser concebida em termos absolutos, devendo ceder passo à busca pela verdade em concretização ao direito personalíssimo em jogo. Foi noticiado, por fim, a tramitação de propostas legislativas no Congresso nacional para permitir a relativização da coisa julgada material em hipótese como a dos autos. Concluiu, assim, pelo afastamento do óbice processual da coisa julgada material in casu, permitindo o andamento da demanda com a produção da prova requerida.
8. Feito o relato do ocorrido até o momento, passo a votar.
9. Encontram-se em oposição, no caso presente, de um lado a garantia fundamental da coisa julgada material (CF, art. 5º, XXXVI), informada pelo princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput), e, de outro, segundo a argumentação dos recorrentes, o direito fundamental à filiação (CF, art. 227, caput e § 6º) e a garantia fundamental da assistência jurídica integral aos desamparados (CF, art. 5º, LXXIV). Essa última é pertinente à hipótese pelo fato de, na primeira demanda, ter sido a insuficiência de recursos o motivo para a falta de realização do exame de DNA – cujo custo, na década de 1980, era de U$ 1.500,00 (mil e quinhentos dólares) –, o que levou, ao final, à improcedência do pedido por ausência de provas, como consta do seguinte trecho da sentença já transitada em julgado, proferida em 1992:
“No caso, existem indicações de que algum tipo de relacionamento anterior havia entre o Requerido e a Representante do Autor. Não eram estranhos. Nem muito menos pareceu ao primeiro uma surpreendente e rematada sandice a pretensão da aventada paternidade. Isto resulta claro dos depoimentos. Não existem, entretanto, nos autos, elementos minimamente suficientes para assegurar tenha ocorrido, sequer uma vez, o ato sexual entre os dois. E, ainda que tenha ocorrido, que haja sido essa relação específica a causa da concepção do Autor. A prova oral, produzida pelas partes é absolutamente frágil, imprecisa e pouco relevante, no que interessa à essência da questão em tela. E a documental, menos relevante ainda.
Lamentável, sob todos os aspectos, a impossibilidade de ter-se aqui, a prova pericial; sobretudo com a precisão hoje assegurada pelo D.N.A. Resta o consolo de, neste e noutros tantos casos semelhantes, ficar a parte autora sempre com a possibilidade de, recorrendo, tentar ver o custeio de tal prova se viabilizar, para insistir na Justiça. Fica a esperança, também e o apelo reiterado, de que o próprio Poder Público, no caso através do Egrégio Tribunal de Justiça, possa no futuro vir a assumir (mediante convênios, ou outra forma) esse ônus perante uma população, via de regra, carente dos meios até para as despesas cartorárias, tanto mais para uma prova tão onerosa. E que, em muitos casos, resultará na sua cobrança, posteriormente, da parte sucumbente, com freqüência, mais bem servida pela fortuna, quando procedente a pretensão”.
10. O tema é dos mais candentes na doutrina processual, dando margem a uma profunda divergência entre autores de igual renome, cada qual com argumentos também igualmente razoáveis. É função de que não pode se furtar este Supremo Tribunal Federal, portanto, conceder uma resposta à sociedade acerca do modo como deve ser entendida, no terreno das garantias fundamentais do processo, o regime da coisa julgada material, mormente quando em suposto choque com outras cláusulas constitucionais, dado o papel de guardião da Constituição que lhe foi conferido pelo texto constitucional (CF, art. 102, caput).
11. Uma baliza preliminar é preciso deixar desde logo firmada, contudo. Ao contrário do que consta das alegações dos recorrentes, a improcedência por insuficiência de provas, no campo da teoria do processo, constitui, sim, um julgamento de mérito, e não uma sentença meramente terminativa. Tocar no mérito de uma demanda é apreciar o pedido formulado pelo autor, julgando-o procedente ou improcedente, seja por conta da prova produzida, seja em razão das regras de direito material aplicáveis ao caso. O julgamento conforme o ônus da prova, como ensina o Prof. Barbosa Moreira, tem lugar justamente nos casos em que, apesar da insuficiência da prova produzida, não pode o magistrado se omitir no dever de prestar jurisdição a respeito da pretensão veiculada, de vez que inadmissível, nos dias atuais, o non liquet (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento e ônus da prova, In: Temas de direito processual, Segunda Série, 1980, p. 74).
12. Assim, houve, de forma inequívoca, sentença de mérito no primeiro processo, de modo que a conclusão ali alcançada foi tocada, sim, pela coisa julgada material, nos termos dos arts. 467 e 468 do Código de Processo Civil. Vale esclarecer que a coisa julgada secundum eventum probationis apenas ocorre, no direito brasileiro, nos casos em que há expressa previsão legal, a exemplo do que se passa com a ação popular – Lei nº 4.717/65, art. 18 –, com a lei da ação civil pública – Lei nº 7.347/85, art. 16 – e, ainda, com as ações coletivas disciplinadas pelo Código de Defesa do Consumidor a respeito de direitos difusos e coletivos – CDC, art. 103, inc. I e II (Ressaltam a excepcionalidade de tal regime TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão, São Paulo: Ed. RT, 2005, p. 58-61; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento e ônus da prova, In: Temas de direito processual, Segunda Série, 1980, p. 81; e ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 171 e segs.). Embora as situações não sejam idênticas, já a doutrina clássica assinalava o perigo de se condicionar a presença de coisa julgada ao teor da sentença de mérito, tendo assim se manifestado o Prof. Enrico Tullio Liebman, com base nas lições de Chiovenda, a respeito da coisa julgada secundum eventum litis, reputada “inadmissível, devendo ser idênticos seu âmbito e sua extensão, qualquer que seja o teor da sentença, isto é, julgue ela procedente ou improcedente a demanda” (LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 24-5).
13. Houve, portanto, coisa julgada material no processo anterior, de forma alguma afastada pela fundamentação lastreada apenas na ausência de provas. E é por essa razão que a decisão a ser tomada nestes autos não pode passar ao largo da controvérsia em torno da cognominada relativização da coisa julgada material.
14. Firmada essa premissa, ainda outra ressalva inicial tem de ser feita. É que encontram-se, em tese, inseridos no grande rol de questões relacionadas à relativização da coisa julgada material temas com perfis sutilmente diversos. Deveras, nesse rol se encaixam, por exemplo, as seguintes hipóteses: (i) o ataque a decisões transitadas em julgado não por conta apenas de uma interpretação jurídica, mas em razão da superveniência, dado o avanço da tecnologia, de meios de prova inexistentes à época da prolação da decisão, que, dependendo do resultado que se possa deles extrair para a instrução da causa, conduziriam a conclusão diversa da alcançada na decisão anterior, e que, apenas nesse caso, restaria configurada a violação de princípios ou regras constitucionais pela manutenção da coisa julgada; (ii) o puro e simples questionamento de decisões transitadas em julgado que já se chocassem, por uma pura interpretação de direito a ser realizada pelo julgador do caso concreto, com o teor de algum direito ou garantia constitucional; e (iii) a impugnação de decisões transitadas em julgado na fase de execução de condenações de pagar quantia certa, quando a lei em que havia se fundado a decisão exequenda tiver a respectiva constitucionalidade rejeitada em decisão do Supremo Tribunal Federal, como prevêem no âmbito do processo civil e do processo trabalhista, respectivamente, os arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo único, do Código de Processo Civil e o art. 884, §5º, da CLT.
15. Cada uma dessas hipóteses apresenta particularidades que não podem ser ignoradas, e que se refletem diretamente na análise da respectiva compatibilidade com a Constituição Federal. No caso presente, contudo, trata-se apenas do exame da primeira hipótese narrada acima, e apenas a isto deve se restringir a decisão a ser tomada, isto é, sobre (i) a possibilidade de afastamento de coisa julgada material (ii) formada a respeito de relação de filiação (iii) diante da superveniência de novo meio de prova em razão de evolução tecnológica, meio este dotado de altíssimo grau de confiabilidade e capaz, justamente por isso, de reverter, por si só, a conclusão do julgamento anterior, e (iv) cuja realização não se mostrara possível por conta da deficiência do regime da assistência jurídica aos hipossuficientes. Essas balizas são essenciais para a definição da ratio decidendi a ser firmada neste leading case, na linha do que decidido preliminarmente ao ser reconhecida a repercussão geral deste recurso extraordinário.
16. Preambularmente, merece ser destacado que, no cenário jurisprudencial brasileiro, a polêmica em torno da relativização da coisa julgada em demandas de investigação de paternidade também alcançou o Superior Tribunal de Justiça, órgão constitucionalmente acometido da função de tutelar a observância das normas infraconstitucionais (CF, art. 105, III).
17. De início, o STJ havia se dividido em duas linhas jurisprudenciais: a primeira manifestava-se contrariamente à possibilidade de ajuizamento de nova demanda, a exemplo do decidido no REsp nº 107.248/GO, Rel. Min. Menezes Direito, 3ª Turma, DJ 29/06/1998; já a segunda linha de precedentes era favorável ao afastamento da coisa julgada, conforme decidido, exemplificativamente, nos seguintes casos: REsp 226.436/PR, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª TURMA, DJ 04/02/2002; e REsp 826.698/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 23/05/2008.
18. Porém, a Segunda Seção do STJ, no final do ano de 2008, uniformizou o entendimento pela impossibilidade de se afastar a coisa julgada material mesmo diante da perspectiva de realização de exame de DNA, conforme o seguinte precedente:
“PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. Coisa julgada decorrente de ação anterior, ajuizada mais de trinta anos antes da nova ação, esta reclamando a utilização de meios modernos de prova (exame de DNA) para apurar a paternidade alegada; preservação da coisa julgada. Recurso especial conhecido e provido”. (REsp 706.987/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Rel. p/ Acórdão Min. Ari Pargendler, 2ª Seção, DJe 10/10/2008)
19. Em seu núcleo, a tese ali firmada teve por fundamento o primado do princípio da segurança jurídica, que seria ferido em seu âmago caso fosse desfeita a proteção constitucionalmente assegurada à coisa julgada material. Não seria lícito, sob esse prisma, submeter a coisa julgada a renovados ataques a cada descoberta científica, com sensível impacto na estabilidade por que devem se pautar as relações sociais.
20. Essa tese vem sendo reafirmada, atualmente, em diversos precedentes, todos eles prestigiando a garantia constitucional da coisa julgada material à luz do princípio da segurança jurídica: REsp 960.805/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma, DJe 18/05/2009; AgRg no REsp 646.140/SP, Rel. Min. João Otávio Noronha, 4ª Turma, DJe 14/09/2009; AgRg no REsp 363.558/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 04/02/2010, DJe 22/02/2010; AgRg no REsp 895.545/MG, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3ª Turma, DJe 07/06/2010; e AgRg no REsp 899.981/MG, Rel. Min. Vasco della Giustina (desembargador convocado do TJ/RS), 3ª Turma, DJe 01/09/2010.
21. No plano constitucional, a garantia da coisa julgada material tem assento, no direito brasileiro, desde a Constituição de 1934 como uma regra expressa (CF/34, Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 3) A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.). Na Carta de 88, sua previsão encontra-se no inciso XXXVI do rol dos direitos e garantias fundamentais constante do art. 5º, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A redação do dispositivo, por sua literalidade, interditaria apenas a atuação do legislador que fosse contrária à imutabilidade das decisões judiciais passadas em julgado, e não, a rigor, de quaisquer outros agentes investidos de poder público. Não é essa, evidentemente, a teleologia que deve ser extraída do texto da Constituição: na verdade, se sequer ao legislador, dotado do batismo democrático, é lícita a intervenção contrária à proclamação judicial, em definitivo, da vontade concreta da lei, aos demais Poderes constituídos, que se subordinam ao princípio da legalidade, jamais, como regra, poderia se passar de modo diferente (TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão, São Paulo: Ed. RT, 2005, p. 50-2).
22. Na essência, a proteção à coisa julgada material é uma decorrência do princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput), na medida em que se destina à pacificação dos conflitos sociais. É através da proteção do que já decidido em definitivo pelo Judiciário que se promove a confiança recíproca entre os atores da sociedade, que podem pautar suas condutas à luz dos efeitos já oficialmente proclamados dos atos por eles praticados, e com isso planejando o futuro a ser trilhado. Tanto o vencedor quanto o vencido, sob certo ângulo, beneficiam-se da indiscutibilidade inerente à coisa julgada, pois mesmo o segundo passa a saber, com precisão, a exata medida em que sua esfera jurídica restou subordinada ao interesse do adversário (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. In: Temas de direito processual, Nona Série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 245).
23. O princípio da segurança jurídica é tão relevante que, além de contribuir para a duração de um sistema político, na sua ausência, qualquer sociedade entra em colapso. Ela é um dos mais elementares preceitos que todo ordenamento jurídico deve observar. Nesse diapasão, cumpre a todo e qualquer Estado reduzir as incertezas do futuro, pois, segundo pontifica Richard S. Kay, “um dos mais graves danos que o Estado pode infligir aos seus cidadãos é submetê-los a vidas de perpétua incerteza” (No original: “One of the most serious injuries the state can inflict on its subjects is to commit them to lives of perpetual uncertainty”. KAY, Richard S.. American Constitutionalism. In: Constitutionalism: Philosophical Foundations. Ed. Larry Alexander. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 22. Sua citação foi feita em KIRSTE, Stephan. Constituição como Início do Direito Positivo. A estrutura temporal das constituições. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. Número 13. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Ciências Jurídicas, Faculdade de Direito do Recife, 2003, p. 116).
24. Em última análise, portanto, a garantia da coisa julgada material pode ser reconduzida, ainda que indiretamente, também ao princípio-matriz da Constituição Federal, verdadeiro fundamento da República Federativa do Brasil, consistente na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Com efeito, no núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana reside a possibilidade de que cada indivíduo, dotado de igual consideração e respeito por parte da comunidade em que se insere, formule e ponha em prática seu plano ideal de vida, traçando os rumos que entende mais afeitos ao livre desenvolvimento de sua personalidade (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2004, p. 113). O projeto individual de futuro, no entanto, deve partir, para concretizar-se, de premissas dotadas de confiabilidade, cuja higidez não seja colocada em xeque a cada novo momento. E é justamente sobre essas premissas que a Constituição Federal, no art. 5º, XXXVI, coloca o manto da inalterabilidade, protegendo o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada material das incertezas que as mudanças do futuro poderiam ocasionar.
25. No plano do direito comparado, a proteção da coisa julgada, quando não estabelecida de modo expresso na Constituição, é entendida como uma decorrência do direito à tutela jurisdicional efetiva (CF, art. 5º, XXXV), pois a resposta do Judiciário, para ser eficaz do ponto de vista social, não pode ficar eternamente à mercê de modificações e reversões (GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior, In: Relativização da coisa julgada (org. Fredie Didier Jr.). Salvador: Editora Jus Podium, 2004, p. 255).
26. Na Espanha, por exemplo, a intangibilidade da coisa julgada tem assento nos princípios da segurança jurídica – CE, art. 9.3 – e da tutela jurisdicional efetiva – CE, art. 24.1 (RINCÓN, Jorge Carreras del. Comentarios a la doctrina procesal civil del tribunal constitucional y del tribunal supremo, Madrid: Marcial Pons, 2002, p. 411; AROCA, Juan Montero e MATÍES, José Flors. Amparo constitucional y proceso civil, Valência: Tirant lo blanch, 2008, p. 86; JUNOY, Joan Picó y. Las garantias constitucionales del proceso, Barcelona: J. M. Bosch Editor, 1997, p. 69; AROCA, Juan Montero. Processo (civil y penal) y garantia – el proceso como garantia de libertad y de responsabilidad, Valência: Tirant lo Blanch, 2006, p. 368; e LLOBREGAT, José Garberí. Constitución y derecho procesal – los fundamentos constitucionales del derecho procesal, Navarra: Civitas/Thomson Reuters, 2009, p. 218.). Foi sob este prisma que o Tribunal Constitucional Espanhol reafirmou a importância da coisa julgada no catálogo dos direitos fundamentais, por exemplo, nas sentenças STC 119/1988, STC 189/1990, STC 231/1991, STC 142/1992, STC 34/1993, STC 43/1998 e STC 112/1999 (AROCA, Juan Montero e MATÍES, José Flors. Amparo constitucional y proceso civil, Valência: Tirant lo blanch, 2008, p. 86).
27. Da mesma forma, também a Corte Européia de Direitos Humanos assinala que a coisa julgada é um elemento indispensável para a concretização do direito à tutela jurisdicional efetiva, conforme decidido nos casos Brumarescu v. Romênia, julgado em 28/10/99; Pullar v. Reino Unido, j. em 10/06/96; e Antonetto v. Itália, j. em 20/07/2000 (apud GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil – vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 361).
28. Como se sabe, a jurisdição cumpre o seu escopo de pacificação social através da imperatividade e da imutabilidade da resposta jurisdicional. O fato de para cada litígio corresponder uma só decisão, sem a possibilidade de reapreciação da controvérsia após o que se denomina trânsito em julgado da decisão, caracteriza essa função estatal e a difere das demais (A coisa julgada “es el atributo específico de la jurisdicción”, segundo COUTURE, in Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 1951, p. 304). O fundamento substancial da coisa julgada, na realidade, é eminentemente político, uma vez que o instituto visa à preservação da estabilidade e segurança sociais (Nesse sentido Prieto Castro, in Derecho Procesal Civil, 1946, vol. I, p. 381. Chiovenda assentava a explicação da coisa julgada na “exigência social da segurança no gozo dos bens da vida”, in Instituições de Direito Processual Civil, 1942, vol. I, pp. 512 e 513), revelando fator de equilíbrio social na medida em que os contendores obtêm a última e decisiva palavra do Judiciário acerca do conflito intersubjetivo. Politicamente, a coisa julgada não está comprometida nem com a verdade nem com a justiça da decisão. Uma decisão judicial, malgrado solidificada, com alto grau de imperfeição, pode perfeitamente resultar na última e imutável definição do Judiciário, porquanto o que se pretende através dela é, repita-se, a estabilidade social.
29. Ocorre que nenhuma norma constitucional, nem mesmo a regra da coisa julgada ou o princípio da segurança jurídica, pode ser interpretada isoladamente. A Constituição brasileira em vigor caracteriza-se como um típico compromisso entre forças políticas divergentes, que em 1988 se uniram para definir um destino coletivo em comum (A respeito das diferentes forças políticas que atuaram na assembléia constituinte de 1987-88, cf. PILATTI, Adriano. A constituinte de 1987-1988 – progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008), balizando a atuação dos poderes políticos através das regras e dos princípios definidos no pacto constitucional. Trata-se de compromisso porquanto a base plural da sociedade, no momento constituinte, assinalava relevância a valores díspares, sem uma univocidade ideológica, provocando a convivência, por exemplo, da liberdade de expressão (CF, art. 5º, IV) e do direito à intimidade (CF, art. 5º, X), da proteção do consumidor (CF, art. 5º, XXXII, e art. 170, V) e do princípio da livre iniciativa (art. 170, caput), e de muitos outros casos mais.
30. A finalidade por detrás deste pacto político abrangente, como explicita o art. 3º do texto Constitucional, consiste em conduzir o Estado brasileiro à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional de forma a erradicar a pobreza, a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais, com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, inc. I a IV). É justamente na concretização de tais metas, porém, que o caráter compromissório da Carta de 1988 se mostra mais evidente, porquanto no caminhar para atingir tais desideratos podem entrar em rota de colisão valores igualmente caros ao texto constitucional.
31. Nesses casos, que sob um primeiro ângulo poderiam ensejar verdadeiras arbitrariedades pelo intérprete, ao optar, em voluntarismo, pela norma que lhe parecesse merecedora de maior prestígio, impõe-se, como ensina a novel teoria da interpretação constitucional, a harmonização prudencial e 1a concordância prática dos enunciados constitucionais em jogo, a fim de que cada um tenha seu respectivo âmbito de proteção assegurado, como decorrência do princípio da unidade da Constituição (SANCHÍS, Luis Prieto. El Juicio de ponderación, In: Justicia constitucional y derechos fundamentales, Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 188; BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2005, p. 32; BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo – os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 302-4; e GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, São Paulo: Ed. Malheiros, 2005, p. 166). Em outras palavras, cabe ao intérprete conciliar as normas constitucionais cujas fronteiras não se mostram nítidas à primeira vista, assegurando a mais ampla efetividade à totalidade normativa da Constituição, sem que qualquer de seus vetores seja relegado ao vazio, desprovido de eficácia normativa.
32. Todo esse caminho lógico a ser percorrido para a harmonização de comandos normativos indicando soluções opostas demanda do aplicador da Constituição a reconstrução do sistema de princípios e de regras exposto no seu texto, guiado por um inafastável dever de coerência (NETO, Cláudio Pereira de Souza. Ponderação de princípios e racionalidade das decisões judiciais: coerência, razão pública, decomposição analítica e standards de ponderação, In: Constitucionalismo democrático e governo das razões, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2011, p. 144-7). E é somente quando essa tentativa de definição dos limites próprios a cada norma fundamental se mostrar infrutífera, já que sobrepostos os respectivos âmbitos de proteção, que cabe ao intérprete fazer o uso da técnica da ponderação de valores, instrumentalizada a partir do manuseio do postulado da proporcionalidade (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, São Paulo: Ed. Malheiros, 2009, p. 163 e segs.), a fim de operar concessões recíprocas, tanto quanto se faça necessário, entre os enunciados normativos em jogo, resguardado, sempre, o núcleo essencial de cada direto fundamental (PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2006, p. 297-382). E por não ser lícito, mesmo nessas hipóteses, a ablação da eficácia, em abstrato, das normas constitucionais, o resultado do método ponderativo há de ser o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios constitucionales, 1993, p. 92) entre os princípios em jogo, identificando-se o peso prevalecente de uma das normas com o devido balizamento por parâmetros (standards) interpretativos que reduzam a arbitrariedade e estimulem a controlabilidade intersubjetiva do processo decisório.
33. O drama humano narrado nestes autos, como já visto, coloca em rota de colisão as normas constitucionais que tutelam a coisa julgada material (CF, art. 5º, XXXVI) e o direito fundamental à filiação (CF, art. 227, caput e § 6º), aliado à garantia fundamental da assistência jurídica integral aos desamparados (CF, art. 5º, LXXIV). O primeiro dos dispositivos mencionados consubstancia verdadeira regra jurídica, porquanto enuncia uma hipótese de incidência e, simultaneamente, o comando a ser desencadeado pela configuração de seus pressupostos de fato, isto é: a invalidade de qualquer ato do poder público que afronte a autoridade da coisa julgada material (Nesse sentido, afirmando a natureza de regra da garantia da coisa julgada material, cf. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 223 e 226.). Já os dois últimos dispositivos assumem a forma de princípios jurídicos, apontando para estados ideais a serem alcançados sem predeterminar, desde logo, quais as condutas vedadas ou permitidas e quais os efeitos que, em cada caso, devem ser produzidos.
34. Na forma em que configurado o litígio in casu, não há modo de prestigiar a coisa julgada material sem que, simultaneamente, sejam colocados de lado os dois outros princípios constitucionais contrapostos: impedir o prosseguimento da demanda, reconhecendo-se o óbice da coisa julgada material, implica vedar peremptoriamente a elucidação, à luz da nova prova técnica disponível – o exame de DNA –, da origem biológica do autor, não trazida à tona, na demanda anterior já julgada, por consequência da insuficiência do sistema estatal de assistência jurídica aos necessitados. E, de outro lado, o raciocínio simétrico também se mostra verdadeiro: tolerar a realização do exame técnico nestes autos, como fruto da admissibilidade da demanda, colocará em xeque inarredável a regra da coisa julgada material, desfazendo a proteção que ela visa a promover.
35. Os dois vetores mostram-se, assim, inconciliáveis, de modo que a prevalência de um leva ao afastamento da eficácia normativa do outro para a solução da presente controvérsia. Em um cenário como este, e na linha do que já mencionado, a única opção metodologicamente válida é a utilização, por esta Corte Constitucional, da técnica da ponderação.
36. Ressalte-se desde logo que a previsão normativa da garantia da coisa julgada sob a forma de regra não é suficiente, por si só, para pôr fim a qualquer perspectiva de ponderação. Como vem reconhecendo a novel doutrina da hermenêutica constitucional, também as regras jurídicas, em hipóteses excepcionais, submetem-se a um raciocínio ponderativo (Assim, por exemplo, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, São Paulo: Ed. Malheiros, 2009, p. 112 e segs. Em sentido próximo, mas com distinções sensíveis, BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2005, p. 201 e segs.). Para tanto, deve ser realçada a razão subjacente à regra, isto é, o princípio que informa a sua interpretação finalística e a sua aplicação aos casos concretos: in casu, é o princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput), como já visto, que serve de manancial para a definição do sentido e do alcance da garantia da coisa julgada material. Não basta, no entanto, cotejar, imediatamente após isso, o peso de tal razão subjacente diante dos outros princípios em jogo. É imprescindível que se leve em conta, ainda, que as regras jurídicas, como categoria normativa, têm por reflexo, em sua aplicação, a promoção de valores como previsibilidade, igualdade e democracia: a aplicação das regras promove a previsibilidade pela certeza de que a configuração de seus pressupostos de fato desencadeará a consequência estabelecida em seu enunciado normativo; a igualdade, pois cada agente social que se deparar com a hipótese de incidência de uma regra poderá se pautar, diante dos demais membros da comunidade, de acordo com o que ela prescreve, sem que seu regime jurídico fique a depender de padrões comportamentais vagas ou imprecisos, definidos casuisticamente; e a democracia, na medida em que o legislador, constitucional ou ordinário, ao fixar um comando normativo através de uma regra jurídica, já realiza desde logo uma decisão conteudística sobre o que deve ser, sem que delegue ao judiciário a maleabilidade na definição da conduta válida à luz do Direito (Nesse sentido, cf. SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer – a new introduction to legal reasoning, Cambridge: Harvard University Press, 2009, p. 35 e 195-6; e, do mesmo autor, Playing by the rules – a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life, Oxford: Clarendon Press, 2002, p. 135-66).
37. Assim, a técnica da ponderação apenas poderá levar ao afastamento de uma regra jurídica quando restar demonstrado, de modo fundamentado, que os princípios que lhe são contrapostos superam, axiologicamente, o peso (i) da razão subjacente à própria regra e (ii) dos princípios institucionais da previsibilidade, da igualdade e da democracia. Deste modo, como afirma o Prof. Luís Roberto Barroso especificamente quanto à tese da relativização da coisa julgada material (BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 226), a técnica da ponderação, instrumentalizada pelo postulado da proporcionalidade, tem de ser usada com cautela, já que a previsão da coisa julgada como uma regra “reduz a margem de flexibilidade do intérprete”.
38. A hipótese dos autos, no entanto, tende a caracterizar justamente a excepcionalidade capaz de autorizar o afastamento da regra da coisa julgada material, em prol dos direitos fundamentais à filiação e à assistência jurídica aos necessitados.
39. Com efeito, a Carta constitucional de 1988 fixou o princípio da dignidade da pessoa humana como um fundamento da República (CF, art. 1º, III). Disso decorre uma prevalência axiológica inquestionável sobre todas as demais normas da Constituição, que devem ser interpretadas invariavelmente sob a lente da dignidade da pessoa humana (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direito fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 124-5; e SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2004, p. 110). Assim, é a própria dignidade da pessoa humana que deve servir de norte para a definição das diversas regras e dos diversos subprincípios estabelecidos no texto constitucional, funcionando como verdadeiro vetor interpretativo para a definição do âmbito de proteção de cada garantia fundamental. Mais do que isso: é também a dignidade da pessoa humana que deve servir como fiel da balança para a definição do peso abstrato de cada princípio jurídico estabelecido na Constituição Federal de 1988. Segundo Robert Alexy, a ponderação de valores deve ser conduzida à luz do exame (i) do peso abstrato dos princípios em conflito, (ii) da intensidade de interferência, no princípio oposto, que se faz necessária para a preservação da eficácia de um direito fundamental, e (iii) da confiabilidade das premissas empíricas, nas quais se fundam as afirmações a respeito da configuração de violação ou de promoção da efetividade de uma norma fundamental (ALEXY, Robert. On balancing and subsumption: a structural comparison, In: Ratio Juris, v. 16, nº 4, 2003, p. 433-449).
40. Sob este prisma, no núcleo essencial da dignidade da pessoa humana há de ser tido como presente o direito fundamental à identidade pessoal do indivíduo, que se desdobra, dentre outros aspectos, na identidade genética (BARBOZA, Heloísa Helena. Direito à identidade genética, In: Juris poiesis, Edição temática: biodireito, 2004, p. 129; e MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame de DNA e direitos da personalidade, In: Na medida da pessoa humana – estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p. 171). A inserção de cada pessoa no mundo, para que possa realizar todas as suas potencialidades, é feita em função de sua história, projetando a auto-imagem e a identidade pessoal a partir de seus dados biológicos inseridos em sua formação, advindos de seus progenitores (ALMEIDA, Maria Christina de. O DNA e estado de filiação à luz da dignidade humana, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 79). É com o conhecimento do estado de filiação que se fincam as premissas da atribuição à pessoa humana de reconhecimento e de distinção no cenário social, permitindo sua autodeterminação no convívio com os iguais.
41. O projeto de vida individual, o plano pessoal de felicidade que todo membro da coletividade tem o direito de formular e a prerrogativa de almejar realizar, portanto, torna-se dependente da investigação da origem de cada um: ser reconhecido filho de seus genitores e ter ciência da própria origem biológica são prerrogativas ínsitas à necessidade do ser humano de conhecer a si mesmo e de ser identificado na sociedade (GOMES, Flávio Marcelo. Coisa julgada e estado de filiação – o DNA e o desafio à estabilidade da sentença, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2009, p. 39 e 249). É assim que o status de filho, mais do que fonte de direitos patrimoniais, ostenta um inquestionável viés existencial, como um substrato fundamental para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
42. Com efeito, na visão tradicional do direito civil, que vigorou até o progresso científico alcançado no último quarto do século passado, a posição particular da pessoa natural no seio social era definida predominantemente por seu nome. Era através desse sinal distintivo da personalidade, que a integra e a individualiza, que se alcançava a unidade fundamental, celular, da vida jurídica, que consiste na pessoa humana (BARBOZA, Heloísa Helena. Direito à identidade genética, In: Juris poiesis, Edição temática: biodireito, 2004, p. 127). A construção da identidade pessoal, no entanto, sofreu forte influxo pelo desenvolvimento das pesquisas em torno do genoma humano (MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade da pessoa humana, In: Na medida da pessoa humana – estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p. 99), e que hoje figura como a última fronteira para a individualização da identidade pessoal.
43. É sob esse ângulo que se pode apontar, hoje, a construção de um direito fundamental à identidade genética, por força do qual se torna factível esclarecer, como antes não era possível, a origem e a historicidade pessoal de cada membro componente da sociedade, principalmente através do exame de DNA. A identidade, nesse novo contexto, passa a ser concebida como o complexo de elementos que individualizam cada ser humano, distinguindo-o dos demais na coletividade, conferindo-lhe autonomia para que possa se desenvolver e se firmar como pessoa em sua dignidade, sendo, portanto e nessa medida, expressão objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana (BARBOZA, Heloísa Helena. A proteção da identidade genética, In: Dignidade da pessoa humana – fundamentos e critérios interpretativos, (orgs.) Agassiz Almeida Filho e Plínio Melgaré, São Paulo: Ed. Malheiros, 2010, p. 84).
44. A imbricação entre tal direito e o núcleo do princípio da dignidade da pessoa humana é mais do que evidente. Deveras, o conteúdo semântico do termo dignidade remete à estima, ao valor que deve ser reconhecido a cada pessoa por seus pares e pelo Estado. Já em Kant se lia a lição, hoje tão em voga na doutrina contemporânea, de distinguir a valoração no mundo social segundo as categorias do preço e da dignidade, sendo esta última a medida ínsita à aferição do valor moral que todo ser humano, por sua própria natureza, carrega em seu interior (MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade da pessoa humana, In: Na medida da pessoa humana – estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p. 81). E este valor, essa individualidade própria a cada um, e que permite o amplo desenvolvimento da personalidade, depende do conhecimento das próprias origens, em especial no que toca ao seu substrato biológico.
45. É nessa linha, por exemplo, que a Constituição Portuguesa de 1976, em seu art. 26, nº 3, prevê disposição que proclama, de forma expressa e categórica, o direito fundamental à identidade genética, vinculando-o diretamente à promoção da dignidade da pessoa humana, in verbis:
Artigo 26.º
Outros direitos pessoais
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.
3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.
4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.
46. Não se ignora, evidentemente, que, no campo do direito civil, vem sendo reconhecido o estado de filiação por decorrência de três espécies de vínculos: jurídicos, biológicos ou sócio-afetivos (BARBOZA, Heloísa Helena. Direito à identidade genética, In: Juris poiesis, Edição temática: biodireito, 2004, p. 124-5: “Ao lado dos aspectos anteriormente abordados de forma panorâmica, deve-se considerar que a paternidade recebeu diferentes tratamentos legislativos e doutrinários no Brasil, podendo ser apontados três critérios para seu estabelecimento: a) o critério jurídico, previsto no Código Civil, sendo a paternidade presumida nos casos ali previstos, independentemente da existência ou não de correspondência com a realidade; b) o critério biológico, hoje predominante como antes mencionado, pelo qual prevalece o vínculo genético; e c) o critério socioafetivo, fundamentado nos princípios do melhor interesse da criança e da dignidade da pessoa humana, segundo o qual o pai deve ser aquele que exerce tal função, mesmo que não haja o vínculo de sangue”). No caso em exame, contudo, dada a inaplicabilidade da primeira e da última espécie de vínculo, já que não atingido o demandante por qualquer presunção estabelecida pelo direito material – ressalte-se que da certidão de nascimento consta apenas o nome de sua mãe, e não de seu progenitor (fls. 14) – nem tampouco recebedor do afeto indispensável ao convívio paternal, põe-se em discussão apenas a busca pela origem genética do autor, sem que essa pretensão conflite com qualquer outra lógica material de paternidade em vigor.
47. Ademais, a vinculação entre o direito à filiação, como condição para o desenvolvimento da personalidade, e o princípio da dignidade da pessoa humana resulta até mesmo do texto expresso da Constituição. Com efeito, a Constituição confere especial proteção à família, conforme art. 226 e seguintes. A previsão literal do direito à filiação encontra-se no § 6º, parte final, do art. 227, e que se insere no âmago, evidentemente, da própria configuração da entidade familiar. E é ao tratar do planejamento familiar, isto é, da forma como será conduzido o desenvolvimento da personalidade no seio da família, que a Constituição menciona expressamente, no § 7º do art. 226, que, “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
48. De outro lado, também no caput do art. 227 a redação da Constituição torna clara a imbricação entre a família e a promoção da dignidade humana da criança, do adolescente e do jovem, ao afirmar ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. E as condições para o cumprimento de tal dever, que funcionaliza a entidade familiar em prol da consagração da dignidade de seus membros, dependem, como premissa básica, do estabelecimento do vínculo de filiação, alcançado através do conhecimento da origem biológica do autor nestes autos.
49. Há, portanto, até textualmente uma imbricação necessária entre direito à filiação, proteção constitucional à família e o princípio da dignidade da pessoa humana no sistema das normas constitucionais.
50. A relevância constitucional do direito à identidade já foi proclamada por este Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 248.869, como destacado pelo Min. Dias Toffoli em seu voto. Naquele julgado, ao se reconhecer a constitucionalidade da legitimidade ativa do Ministério Público para ajuizamento, após provocação, de demanda de investigação de paternidade, foi frisada a íntima conexão entre o direito à conhecimento da própria origem biológica e a dignidade da pessoa humana, conforme ementa da lavra do Rel. Min. Maurício Corrêa, verbis:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. FILIAÇÃO. DIREITO INDISPONÍVEL. INEXISTÊNCIA DE DEFENSORIA PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO.
1. A Constituição Federal adota a família como base da sociedade a ela conferindo proteção do Estado. Assegurar à criança o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar pressupõe reconhecer seu legítimo direito de saber a verdade sobre sua paternidade, decorrência lógica do direito à filiação (CF, artigos 226, §§ 3o, 4o, 5o e 7o; 227, § 6o).
2. A Carta Federal outorgou ao Ministério Público a incumbência de promover a defesa dos interesses individuais indisponíveis, podendo, para tanto, exercer outras atribuições prescritas em lei, desde que compatível com sua finalidade institucional (CF, artigos 127 e 129).
3. O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana e traduz a sua identidade, a origem de sua ancestralidade, o reconhecimento da família, razão pela qual o estado de filiação é direito indisponível, em função do bem comum maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 27).
4. A Lei 8560/92 expressamente assegurou ao Parquet, desde que provocado pelo interessado e diante de evidências positivas, a possibilidade de intentar a ação de investigação de paternidade, legitimação essa decorrente da proteção constitucional conferida à família e à criança, bem como da indisponibilidade legalmente atribuída ao reconhecimento do estado de filiação. Dele decorrem direitos da personalidade e de caráter patrimonial que determinam e justificam a necessária atuação do Ministério Público para assegurar a sua efetividade, sempre em defesa da criança, na hipótese de não reconhecimento voluntário da paternidade ou recusa do suposto pai.
5. O direito à intimidade não pode consagrar a irresponsabilidade paterna, de forma a inviabilizar a imposição ao pai biológico dos deveres resultantes de uma conduta volitiva e passível de gerar vínculos familiares. Essa garantia encontra limite no direito da criança e do Estado em ver reconhecida, se for o caso, a paternidade.
6. O princípio da necessária intervenção do advogado não é absoluto (CF, artigo 133), dado que a Carta Federal faculta a possibilidade excepcional de a lei outorgar o jus postulandi a outras pessoas. Ademais, a substituição processual extraordinária do Ministério Público é legítima (CF, artigo 129; CPC, artigo 81; Lei 8560/92, artigo 2o, § 4o) e socialmente relevante na defesa dos economicamente pobres, especialmente pela precariedade da assistência jurídica prestada pelas defensorias públicas.
7. Caráter personalíssimo do direito assegurado pela iniciativa da mãe em procurar o Ministério Público visando a propositura da ação. Legitimação excepcional que depende de provocação por quem de direito, como ocorreu no caso concreto. Recurso extraordinário conhecido e provido.
(RE 248869, Relator (a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Segunda Turma, julgado em 07/08/2003, DJ 12-03-2004 PP-00038 EMENT VOL-02143-04 PP-00773) (grifo acrescentado)
51. Também a Convenção Americana de Direito Humanos prevê, em seus arts. 17 a 19, a proteção da família e da criança, fazendo menção expressa ao direito de que o menor possui com relação ao nome vinculado ao de seus pais – Art. 18 –, de cuja interpretação conjugada deve-se extrair, inequivocamente, o direito fundamental à filiação, in verbis:
Artigo 17. Proteção da família
1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado.
2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas, o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção.
3. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos contraentes.
4. Os Estados Partes devem tomar medidas apropriadas no sentido de assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo. Em caso de dissolução, serão adotadas disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos.
5. A lei deve reconhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento como aos nascidos dentro do casamento.
Artigo 18. Direito ao nome
Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário.
Artigo 19. Direitos da criança
Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado.
52. E milita em favor da pretensão do autor não só o peso abstrato que, no sistema constitucional, deve ser concedido ao direito fundamental à identidade. Com efeito, na realidade a eternização, in casu, do resultado da demanda anterior traduziria também uma quebra do direito fundamental à assistência jurídica aos necessitados (O sentido e o alcance dessa garantia fundamental, com assento constitucional desde a Carta de 1934 – Art. 113, nº 32 –, foram magistralmente estudados por BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O direito à assistência jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de nosso tempo, In: As garantias, do cidadão na justiça, (org.) Sálvio de Figueiredo Teixeira, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 207-18), dever constitucionalmente imposto ao Estado brasileiro por força do art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, e sem o qual se mostra irrealizável a concretização igualitária, do ponto de vista material, e não apenas formal, da garantia do acesso à tutela jurisdicional efetiva (CF, art. 5º, XXXV).
53. É que o resultado da demanda anterior, como realçado pelo próprio magistrado sentenciante e não contestado por qualquer das partes, foi consequência da impossibilidade financeira de realização do exame de DNA. Não houve, assim, desídia ou culpa da parte autora na conclusão, que lhe foi desfavorável, do julgamento anterior de improcedência por insuficiência de provas; ao contrário, tal cenário foi fruto da inadequação do sistema estatal até então em vigor de amparo aos necessitados quando em juízo, que jamais poderiam ter, à luz do que prega a Constituição, a sorte de seus direitos pré-definida em função da carência e da hipossuficiência financeira em que se encontram.
54. O princípio da paridade de armas, que resulta da conjugação da garantia fundamental do contraditório (CF, art. 5º, LV) com o princípio constitucional da isonomia material (CF, art. 5º, caput), impõe que se reconheça como essencial o complexo normativo que assegura aos cidadãos necessitados o amplo acesso à tutela jurisdicional, suprindo-se, pela atuação do Estado, a carência material configurada em suas respectivas esferas jurídicas. E como tal direito exerce o papel instrumental de viabilizar a fruição dos demais direitos fundamentais que porventura sejam violados, a doutrina contemporânea tem reconhecido a indispensável conexão que também se verifica entre o direito à assistência jurídica aos desamparados e o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana (BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008, p. 327 e segs. O Prof. Cappelletti, nessa mesma linha, era expressivo ao afirmar que o acesso à justiça, com conteúdo igualitário, deveria ser entendido como “o mais básicos dos direitos humanos” (CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryant. Acesso à justiça, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 12.), porquanto verdadeira condição para a tutela efetiva das demais prerrogativas existenciais.
55. Não é possível negar, como se assentou mais acima, que também a coisa julgada guarda relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que concretiza o princípio da segurança jurídica, assegurando estabilidade e paz social. Porém, tal conexão apresenta-se em grau distinto, mais tênue e, portanto, mais afastada do núcleo essencial (e, como ensina a moderna doutrina do direito constitucional contemporâneo, a eficácia jurídica do núcleo essencial da dignidade da pessoa humana se equipara, na realidade, à de uma regra jurídica, e não à de um princípio. Sobre o tema, cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008, p. 282 e segs.) do princípio da dignidade da pessoa humana do que o peso axiológico que, somados, ostentam os direitos fundamentais à filiação (CF, art. 227, caput e § 6º) e a garantia fundamental da assistência jurídica aos desamparados (CF, art. 5º, LXXIV). E é por esta razão que a regra da coisa julgada deve ceder passo, em situações-limite como a presente, à concretização do direito fundamental à identidade pessoal.
56. Ressalte-se que, na substância, a possibilidade de afastamento da coisa julgada material quando em causa relação de filiação, sob o fundamento da superveniência de exame de DNA até então não disponível, vem sendo sustentada, em certo sentido, e resguardadas algumas sutilezas, até mesmo pela doutrina que se mostra contrária, como regra, à relativização da coisa julgada material, como demonstram as manifestações dos seguintes autores: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. In: Temas de direito processual, Nona Série. São Paulo: Saraiva, 2007; MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (A questão da relativização da coisa julgada material). In: Relativização da coisa julgada (org. Fredie Didier Jr.). Salvador: Editora Jus Podium, 2004, p. 276-7, entendimento também manifestado no livro Coisa julgada inconstitucional, São Paulo: Ed. RT, 2010, p. 191-8; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. Relativização da coisa julgada. In: Relativização da coisa julgada (org. Fredie Didier Jr.). Salvador: Editora Jus Podium, 2004, p. 242; GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil – vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 363; BERIZONCE, Roberto Omar. La “relatividad” de la cosa juzgada y sus nuevos confines. In: Revista de derecho procesal. Vol. 2008.1. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2008, p. 179 e segs; GOMES, Flávio Marcelo. Coisa julgada e estado de filiação – o DNA e o desafio à estabilidade da sentença, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2009, p. 294-7; FARIAS, Cristiano Chaves de. Um alento ao futuro: novo tratamento da coisa julgada nas ações relativas à filiação. In: Relativização da coisa julgada, (Coord.) Fredie Didier Jr., Salvador: Ed. Jus Podivm, p. 73-80; CHAVES, Adalgisa Wiedemann. Efeitos da coisa julgada: as demandas para o reconhecimento da filiação e o avanço da técnica pericial, In: Direitos fundamentais do direito de família, (Coord.) Belmiro Pedro Welter e Rolf Hanssen Madaleno, Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2004, p. 27; THEODORO JÚNIOR, Humberto e FARIA, Juliana Cordeiro. Reflexões sobre o princípio da intangibilidade da coisa julgada e sua relativização, In: Coisa julgada inconstitucional, (Coord.) Carlos Valder do Nascimento e José Augusto Delgado, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2008, p. 173; ARMENLIN, Donaldo. Flexibilização da coisa julgada, In: Coisa julgada inconstitucional, (Coord.) Carlos Valder do Nascimento e José Augusto Delgado, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2008, p. 223; CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada material, In: Relativização da coisa julgada (org. Fredie Didier Jr.). Salvador: Editora Jus Podium, 2004, p. 31-2; NETO, Odilon Romano. Coisa julgada inconstitucional: proposta interpretativa dos arts. 475-L, §1º, e 741, parágrafo único do CPC, dissertação de mestrado apresentada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2010, p. 174; e DIAS, Maria Berenice. Investigação de paternidade, prova e ausência de coisa julgada material, Revista Brasileira de Direito de Família - IBDFAM, Ano I, Vol. 1, Porto Alegre: Sintese, 1999, p. 18-21.
57. Esse conflito entre princípios fundamentais não pode servir, porém, como visto antes, para a ablação da garantia fundamental da coisa julgada sem quaisquer balizamentos, sob pena de se frustrar de forma absoluta o princípio da segurança jurídica.
58. Em primeiro lugar, a prova pericial vive hoje, no processo civil, um momento de crítica e de renascimento. O juiz, como se sabe, é titular do que se pode chamar de uma cultura média, porquanto, no que excede o campo do exclusivamente jurídico, seu conhecimento serve-se de noções de fato que estão dentro da experiência comum do lugar e do tempo em que vive. Não é de todo raro, porém, que no desenrolar de um litígio civil se faça necessário o apelo a conhecimentos técnico-científicos, que apenas um especialista nos domínios particulares do saber humano pode manusear com segurança e habilidade. E é nessas hipóteses que deve ocorrer a cooperação entre o perito – o expert técnico – e o julgador.
59. Mas essa cooperação não pode ser levada a cabo sem as devidas cautelas. Com efeito, há um grande risco de que o julgador simplesmente se demita da prestação da jurisdição, delegando-a ao expert, sem que tome em consideração a prova técnica produzida em seus devidos termos, isto é, como um componente da instrução processual, e que, para lastrear uma decisão de mérito, deve se submeter, como qualquer outro material probatório, ao dever de motivação inerente ao sistema do livre convencimento motivado de valoração da prova civil (CPC, art. 131) (Alertam para esse risco ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A prova pericial no processo civil: o controle da ciência e a escolha do perito, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2011, p. 94 e segs.; e GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil – Processo de conhecimento, Vol. II, 2010, p. 286-7).
60. Foi diante desses riscos, que se concretizam muitas vezes com a utilização, por peritos, de supostas técnicas que sequer gozam de aceitabilidade nos respectivos campos do conhecimento humano (junk science), que a Suprema Corte dos Estados Unidos da América impôs aos juízes, principalmente a partir do célebre caso Daubert vs. Merrell, de 1993, um controle sobre a racionalidade da prova pericial a ser valorada em juízo. Com efeito, e como narra Michele Taruffo (TARUFFO, Michele. Ciencia y proceso, In: Páginas sobre justicia civil, Madrid: Ed. Marcial Pons, 2009, p. 464), a Suprema Corte, pela lavra do Justice Blackmun, determinou que a admissão ou exclusão da prova científica deve ser submetida aos seguintes critérios: (i) a controlabilidade ou a falsificabilidade da teoria que se encontra na base na técnica empregada, fazendo expressa remissão à filosofia da ciência de autores como Carl Hempel e Karl Popper (Para uma crítica desse primeiro critério, v. ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A prova pericial no processo civil: o controle da ciência e a escolha do perito, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2011, p. 25 e segs.); (ii) a explicitação do percentual de erro relativo à técnica empregada; e (iii) sua aceitação pela comunidade científica especializada.
61. Na essência, como esclarece, neste ponto, o Prof. Leonardo Greco, a “Corte Suprema americana, nesse leading case que alterou sua jurisprudência anterior, reconhece a falibilidade da ciência e impõe aos juízes uma vigilância extrema para evitar decisões errôneas e injustas. Para isso os juízes devem repelir por ausência de confirmação, como inidôneas a ensejar qualquer condenação, todas as provas científicas que sejam desmentidas por alguma outra igualmente científica. (...) Assim, a Corte Suprema rejeitou que, mesmo no processo civil, o juiz possa considerar verdadeiro aquilo que a própria ciência não é capaz de sustentar racionalmente. E exigiu que o juiz controlasse o conhecimento científico mediante a aplicação simultânea de três critérios: o método indutivo, a resistência a todas as espécies de refutação e subsidiariamente o consenso geral da comunidade científica” (GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil – Processo de conhecimento, Vol. II, 2010, p. 285).
62. Esses novos questionamentos em torno da prova pericial não são capazes de pôr em xeque, em abstrato, a confiabilidade do exame de DNA para a definição da paternidade biológica. Com efeito, tal exame, que ostenta a natureza de prova estatística, é dotado de ampla aceitação na comunidade científica e de altíssimo grau de probabilidade de acerto, mencionado pelos estudiosos do tema como de 98-99% de chance de alcançar um resultado que corresponda à verdade (Em diversas passagens, tal índice de acerto é mencionado pelo Prof. Michele Taruffo, reconhecido estudioso do tema da prova civil: Probabilidad y prueba judicial, In: Páginas sobre justicia civil, Madrid: Ed. Marcial Pons, 2009, p. 434; Ciencia y proceso, In: Páginas sobre justicia civil, Madrid: Ed. Marcial Pons, 2009, p. 459; para concluir, em outra oportunidade, que “Vero è che il giudice è tenuto tutte la prove, ma riesce difficile immaginare che il valore probatorio del test genetico possa essere superato da prova ordinarie come testimonionza, presunzioni o scritture” (La prova scientifica nel processo civile, In: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè Editore, 2005, p. 1092)). No entanto, a verdade é que os índices abstratos de acerto do teste de DNA, para que se reflitam em uma prova técnica realizada em um processo judicial, dependem da confiabilidade in concreto do método científico realizado pelo laboratório especificamente designado pelo magistrado para a feitura do exame.
63. No direito norte-americano, por exemplo, há propostas concretas de submissão de todos os laboratórios que realizam o exame de DNA a uma comissão de controle de qualidade, tal como sugerido pelo Conselho Nacional de Pesquisas dos EUA (BOERIA, Alfredo Gilberto. O perfil de DNA como prova judicial – uma revisão crítica, p. 3, publicado em Revista dos Tribunais, v. 714, p. 296). E isso se justifica pelo risco de falhas no resultado do exame em função (i) da inadequação do recipiente para armazenamento do material coletado – sangue, pele, raiz de cabelo, espermatozóide, células da boca, urina ou cromossomo sexual (TRACHTENBERG, Anete. O poder e as limitações dos testes sangüíneos na determinação de paternidade, in Ajuris, nº 63, p. 326) –; (ii) da identificação correta do titular dos dados; (iii) de reagentes químicos eventualmente deteriorados; (iv) de excesso de temperatura no processamento, etc. Como sintetiza Alfredo Gilberto Boeira em estudo sobre o tema:
Em resumo, a determinação do perfil de DNA para estabelecer a paternidade, embora merecedora de consideração, dista muito de ser o processo infalível que seus proponentes defendem. Em primeiro lugar, há uma aplicação inadequada de uma metodologia destinada a finalidades científicas (onde a incerteza é admissível) para a área jurídica (onde a dúvida deve beneficiar o réu). Em segundo lugar, a possibilidade de falhas técnicas está sempre presente e deve ser avaliada em todos os casos que o tribunal for examinar. Terceiro, as bases de dados em que se baseiam as afirmações estatísticas ou não existem ou são pouco confiáveis, e deveriam ser analisadas sempre que esta prova for apresentada ao juiz. E mesmo os dados baseados em tais fontes podem variar de forma acentuada, conforme a técnica de cálculo (Regra do Produto ou Regra da Contagem). Finalmente, as probabilidades oferecidas pelo exame são, na realidade, artifícios matemáticos desenvolvidos para facilitar conclusões científicas, não correspondendo ao que é difundido como verdade absoluta (BOERIA, Alfredo Gilberto. O perfil de DNA como prova judicial – uma revisão crítica, p. 7, publicado em Revista dos Tribunais, v. 714, p. 296).
64. Em outras palavras, para que o exame de DNA seja admissível em um processo civil cercado por todas as garantias fundamentais previstas na Constituição, não basta que, na teoria, o método científico seja dotado de tal ou qual grau de confiabilidade. É preciso que o perito responsável pela realização do exame, no caso concreto, explicite o índice de acerto de que são dotados os seus particulares instrumentos e materiais técnicos utilizados na produção da prova, a exemplo das condições dos laboratórios – públicos ou privados – e da capacitação pessoal dos agentes envolvidos na interpretação dos resultados (Na verdade, já se afirmou, na doutrina específica, que, para que se possa atribuir ao laudo seu real valor, ele “deve ser o mais completo possível; redigido com linguagem acessível para o Juiz e leigos; descrever os métodos utilizados e como foi realizado o cálculo estatístico para apresentação da probabilidade de exclusão; identificar os técnicos incumbidos de cada uma das diferentes etapas do teste; identificar as possíveis fontes de erro e problemas na interpretação do resultado; e incluir no laudo fotografias das bandas de DNA ou o filme de Raio-X marcado, para o exame visual do resultado” (TRACHTENBERG, Anete. O poder e as limitações dos testes sangüíneos na determinação de paternidade, in Ajuris, nº 63, p. 326)). Só assim, com a demonstração do grau de confiabilidade da prova técnica in concreto, é que o exame de DNA poderá ser tido pelo julgador como apenas um dos elementos para a formação de sua convicção sobre os fatos controvertidos, sem que se possa vedar a possibilidade de refutação de seu resultado pela produção de contraprovas, inclusive de igual viés técnico, submetido todo o material da instrução ao livre convencimento motivado do juiz (GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil – Processo de conhecimento, Vol. II, 2010, p. 286; ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A prova pericial no processo civil: o controle da ciência e a escolha do perito, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2011, p. 92; TRACHTENBERG, Anete. O poder e as limitações dos testes sangüíneos na determinação de paternidade, in Ajuris, nº 63, p. 331-2; MIRZA, Flávio. Prova pericial – em busca de um novo paradigma, tese de doutorado apresentada à Universidade Gama Filho, mimeografado, 2007, p. 165-6; e COSTA, Vladimir Morcillo da. Prova pericial no processo penal, dissertação de mestrado apresentada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mimeografado, 2010, p. 107-111, em que se dedica especificamente à valoração do exame de DNA em litígios de matéria civil. No campo do direito civil, o mesmo risco, na realização do exame de DNA, é apontado por MORAES, Maria Celina Bodin de. Recusa à realização do exame de DNA e direitos da personalidade, In: Na medida da pessoa humana – estudos de direito civil-constitucional, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p. 175).
65. Ademais, no direito brasileiro, conforme jurisprudência desta Corte Suprema, sequer a própria realização do exame de DNA pode ser assegurada coercitivamente, o que leva à frustração do atingimento da verdade biológica. É que o réu ainda poderá esquivar-se da realização do exame de DNA sob o fundamento de violação à sua integridade física, como reconhece a jurisprudência deste STF a partir do HC nº 71373-4, Relator para o acórdão Min. Marco Aurélio, em posição posteriormente cristalizada nos arts. 231 e 232 do Código Civil (CC, Art. 231. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa; e Art. 232. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame) e na Súmula nº 301 do STJ (“Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”).
66. Decorre daí que nada assegura que, no desenrolar de demanda em que se pretenda a relativização da coisa julgada, será definida com a certeza técnica se o réu é, de fato, o pai do autor; pelo contrário, é possível que a recusa do réu leve apenas à inversão do ônus da prova em seu desfavor, de modo que, não realizado o exame, militará contra ele a presunção de que é o pai. Partindo dessas premissas, é possível que a sentença de procedência em tal processo afirme a paternidade também por conta de uma verdade formal, isto é, uma verdade que não reflete o que se passou no mundo da vida. E, por conta disso, tal sentença em nada se distinguiria do ponto de vista substancial, da ‘verdade’ proclamada no primeiro processo, cuja conclusão se fundou apenas na aplicação ao caso das regras do ônus da prova, do qual o autor, à época, não conseguiu se desincumbir.
67. Em ambos os casos, portanto, o dispositivo da decisão, pela improcedência ou procedência do pedido, se funda na aplicação de regras formais à atividade do julgador, e não na verdade real, com a conclusão da sentença decorrendo apenas do fato da omissão ou da insuficiência da atividade probatória das partes – no primeiro caso, o autor não reuniu as provas, ao passo que, no segundo, será o réu quem não terá colaborado com a prova.
68. Todas essas fragilidades, que comprometem em alguma medida a confiabilidade das premissas empíricas da perspectiva de promoção do direito à filiação no presente raciocínio ponderativo (Como já dito, a confiabilidade das premissas de fato para a promoção dos direitos fundamentais em conflito é um importante elemento da técnica da ponderação, como ressalta, com amparo na lição de Robert Alexy, NETO, Cláudio Pereira de Souza. Ponderação de princípios e racionalidade das decisões judiciais: coerência, razão pública, decomposição analítica e standards de ponderação, In: Constitucionalismo democrático e governo das razões, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2011, p. 151-3), conduzem à impossibilidade de que o princípio da segurança jurídica seja comprometido de forma absoluta em prol da cognominada busca pela verdade real no processo civil.
69. Ademais, o que se ressaltou acima a respeito da ponderação entre a regra da coisa julgada e os demais princípios em jogo não afasta a preservação da eficácia, e em um grau ainda que mínimo, do princípio subjacente à coisa julgada material, consistente na segurança jurídica (CF, art. 5º, caput). Com efeito, já restou claro que a manutenção da imutabilidade inerente à coisa julgada feriria de morte, in casu, o direito fundamental à filiação e a garantia da assistência jurídica aos desamparados. Contudo, essa superação da regra da coisa julgada não pode ser conduzida sem qualquer observância do princípio da segurança jurídica, cuja eficácia principiológica permite contrações de seu âmbito de proteção, devendo, assim, influir no próprio balizamento para a permissão da relativização da coisa julgada material em demandas de filiação.
70. Reitere-se, portanto, que o direito à filiação por certo ostenta uma conexão nuclear com a dignidade da pessoa humana. A partir, porém, (i) da previsão da coisa julgada como uma regra, que denota o prestígio que merece no conjunto de garantias fundamentais, (ii) da necessidade de preservação da eficácia mínima do princípio da segurança jurídica, que subjaz à própria coisa julgada material, e (iii) dos riscos que envolvem o exame de DNA, cuja perspectiva de realização nem sempre é idônea a trazer aos autos a verdade quanto à origem biológica, impõe-se balizar a relativização da coisa julgada com alguns parâmetros.
71. Na ausência de previsão legal específica, que poderia operar a conciliação adequada entre o princípio da segurança jurídica e os direitos fundamentais à filiação e à assistência jurídica, impõe-se buscar, no sistema processual em vigor, o regime mais aproximado e também tendente à tutela da segurança quando em causa o ataque à coisa julgada material, adaptando-o, porém, à ponderação ora desenvolvida. Preservar-se-á, assim, a eficácia mínima necessária do princípio da segurança jurídica, prestigiando-se, igualmente, o princípio democrático, pela adaptação às peculiaridades desta hipótese sui generis com a disciplina processual já prevista em lei.
72. O paralelo mais evidente a ser buscado, como é claro, é encontrado na ação rescisória (CPC, art. 485 e segs.). As regras especiais com que o legislador processual disciplina essa espécie de demanda têm em vista a sensibilidade de alguns valores fundamentais que sobrepujam a coisa julgada material, e cuja violação, por isso mesmo, não poderia ficar eternizada por conta do esgotamento das possibilidades recursais em um determinado processo. É assim, por exemplo, que, em um verdadeiro raciocínio ponderativo, explicitou o legislador que a coisa julgada poderia ser desfeita quando em pauta violações, por exemplo, à imparcialidade judicial (inc. I), à garantia do juiz natural (inc. II), à legalidade e à juridicidade (inc. V) ou ao direito à prova (inc. VII). Em todos esses casos o que fez o legislador processual foi mitigar o valor constitucional da segurança jurídica em prol de outros princípios constitucionais contrapostos, e que, assim, obedecido o prazo decadencial de dois anos, poderiam operar a desconstituição da coisa julgada material em caso de procedência do pedido.
73. O tema em discussão, como se vê, aproxima-se em alto grau da teleologia que subjaz ao regime da ação rescisória. Em outras palavras, e com especial atenção ao que prevê o inc. VII do art. 485 do CPC, o próprio sistema processual já tolera a fragilização da coisa julgada diante da alteração do cenário probatório, quando “depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável”. Tradicionalmente, sempre se entendeu que o conceito de “documento novo” deveria se restringir a documentos que já existissem ao tempo da prolação da decisão rescindenda. Mas a doutrina, de forma mais recente, e com base em precedente do Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 300.084, DJ 06/09/2004), tem defendido a interpretação ampliativa de tal dispositivo, para abarcar também o caso do advento da técnica que embasa a realização do DNA (Por todos, cf. a lição do Prof. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material. In: Temas de direito processual – Nona Série, São Paulo: Saraiva, 2007).
74. E é justamente essa exegese calcada substancialmente na previsão do art. 485, VII, do CPC que deve ser prestigiada, em uma interpretação conforme à luz do direito fundamental à filiação (CF, art. 227, caput e § 6º) e da garantia fundamental da assistência jurídica integral aos desamparados (CF, art. 5º, LXXIV), para que se admita o ajuizamento de demandas em que se pretenda a desconstituição de decisão transitada em julgado que considerara improcedente demanda de investigação de paternidade por ausência de provas, dada a impossibilidade de realização, à época, do exame de DNA por hipossuficiência financeira da parte.
75. Do regime formal da ação rescisória, decorre, como já mencionado, a necessidade de respeito ao prazo decadencial de dois anos (CPC, art. 495). O referido prazo, como já dito, inspira-se no princípio constitucional da segurança jurídica: embora permitida a desconstituição da coisa julgada, tal resultado apenas pode ser validamente alcançado com uma provocação tempestiva, em um período pré-delimitado, impedindo o legislador, assim, que a justiça da decisão transitada em julgado permaneça passível de revisão a qualquer tempo, do que decorreria a instabilidade e a eterna incerteza nas relações sociais. Representa ele, portanto, a conciliação feita pelo legislador infraconstitucional entre os princípios que estão por detrás de cada hipótese de cabimento da rescisória e o princípio da segurança jurídica, em que se funda a garantia da coisa julgada.
76. In casu, operou-se o trânsito em julgado da demanda anterior em 1992, ao passo que o processo ora em exame foi instaurado apenas em 21 de outubro de 1996. Por uma aplicação fria e rígida do referido prazo legal, portanto, haver-se-ia de concluir pela decadência do direito de propositura da ação rescisória, porquanto transcorridos quatro anos. Mas tal interpretação, caso prevalecesse, tornaria absolutamente ineficaz o direito fundamental à filiação, na medida em que não era sequer viável, do ponto de vista prático, a realização do exame de DNA até 1996, ano que entrou em vigor, no Distrito Federal, a Lei nº 1.097, de 05 de junho de 1996, segundo a qual cabe ao Poder Público distrital o custeio da referida prova técnica, e com isso superando o déficit de assistência jurídica até então configurado. Foi este fato, portanto, que fez surgir, do ponto de vista prático, a viabilidade do ataque à coisa julgada anterior, de modo que deve ser da data da promulgação dessa lei a contagem do prazo para a impugnação à coisa julgada, o que leva à conclusão, in casu, pela viabilidade da demanda.
77. Em outras palavras, a harmonização entre os princípios constitucionais da segurança jurídica, de um lado, e do direito fundamental à filiação e da garantia da assistência jurídica aos desamparados, de outro, consiste na aplicação analógica do marco inicial flexibilizado para o ajuizamento da ação rescisória, que não pode permanecer rigidamente contado da data do trânsito em julgado. Ao contrário, o marco para a contagem dos dois anos deve poder ser alterado quando demonstrado pelo autor, argumentativamente, que não pudera ajuizar, anteriormente, a demanda, pela impossibilidade prática de obtenção do exame de DNA. Desta forma, é apenas da data da possibilidade prática de obtenção do DNA que deve ser contado o referido prazo, pois apenas nesse momento que se mostra possível o exercício, in concreto, do direito à tutela jurisdicional efetiva, de modo que, apenas nessas condições, a omissão em fazê-lo poderá ser imputada à própria parte.
78. Nessa linha, e em razão da abertura deste parâmetro para a definição do marco inicial para o prazo de dois anos, deve ser entendido como ônus do autor da demanda a demonstração de que somente lhe foi assegurada a possibilidade prática de obtenção da nova prova no espaço inferior a dois anos contados da data da propositura. Caso não satisfeito tal ônus, o transcurso do prazo de dois anos, contados, como tradicionalmente, do trânsito em julgado da decisão anterior, formará a cognominada coisa soberanamente julgada, inalterável por qualquer demanda posterior. Na realidade, e em prestígio à segurança jurídica, deve-se fixar uma verdadeira presunção de inadmissibilidade de revisão de decisões judiciais, em hipóteses similares, após o decurso do prazo de dois anos do trânsito em julgado, mantendo-se a regra geral de que o prazo decadencial se conta a partir do marco previsto no art. 495 do CPC, presunção essa que só poderá ser superada quando demonstrada robustamente a anterior impossibilidade de obtenção do exame de DNA. E foi justamente isto que aconteceu no caso presente, como se vê dos trechos transcritos acima, da sentença anteriormente transitada em julgado, pela absoluta impossibilidade prática, por questões financeiras, de realização do exame, dada a fragilidade do regime de gratuidade de justiça até então em vigor.
79. Ademais, não seria suficiente argumentar, sob este prisma, que a previsão constitucional do direito fundamental à assistência jurídica, inscrito desde a redação originária da Constituição de 88, seria suficiente para concluir que o autor já poderia ter ajuizado a ação rescisória a contar do trânsito em julgado da decisão do processo anterior. Embora este raciocínio seja formalmente válido, a verdade é que não pode ser desconsiderada a maciça jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que, ao interpretar as disposições da Lei nº 1.060/50, afirmava a impossibilidade, sem previsão legal expressa, de atribuição ao Poder Público do dever de depositar os honorários do perito em causas de que fossem parte beneficiários da gratuidade de justiça.
80. Segundo aquela Corte, tal regime implicaria a isenção ao beneficiário dos honorários do perito (Lei nº 1.060/50, art. 3º, V), que somente seriam pagos, ao final, caso vencido na demanda o adversário da parte beneficiária (Lei nº 1.060/50, art. 11, caput). Foi seguindo essa linha que foram proferidos diversos precedentes pelo STJ afastando o dever de o Poder Público custear o exame: RMS 6.924/MS, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 20/08/1996, DJ 16/09/1996; AgRg na MC .851/MS, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/08/1997, DJ 27/10/1997; REsp 112.599/MS, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 29/10/1997, DJ 06/04/1998; REsp 117430/MS, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 11/11/1997, DJ 01/02/1999; REsp 103.281/MS, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 07/05/1998, DJ 19/10/1998; REsp 107001/MS, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 01/06/2000, DJ 21/08/2000; REsp 101.760/MS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 10/04/2001, DJ 11/06/2001.
81. Apenas a contar de abril de 2002, com o julgamento do RE nº 224.775/MS, relator o Min. Néri da Silveira (Segunda Turma, julgado em 08/04/2002, DJ 24-05-2002), é que este Supremo Tribunal Federal considerou auto-aplicável o art. 5º, LXXIV, da CF, com a finalidade de reconhecer a obrigação de o Poder Público custear o exame de DNA para os beneficiários da gratuidade de justiça, o que posteriormente veio a ser reafirmado no julgamento do RE nº 207.732, Rel. Min. ELLEN GRACIE, Primeira Turma, julgado em 11/06/2002, DJ 02-08-2002.
82. Assim, como demonstrado na petição inicial deste processo (fls. 11), o cenário em que se encontrava o autor até o ano de 1996, data em que entrou em vigor a Lei Distrital nº 1.097/96, era de absoluta impossibilidade prática de realização do exame de DNA, já que os órgãos de cúpula do Judiciário não extraiam, até aquele momento, da cláusula constitucional da assistência jurídica o dever de que o Poder Público custeasse a prova. Desta forma, a atuação tempestiva da parte autora, aferida à luz da entrada em vigor da referida Lei, eis que ajuizada a demanda em outubro de 1996, não pode ser infirmada apenas pela proclamação até então meramente solene, para o que importa à questão, do direito fundamental à gratuidade de justiça no texto da Constituição.
83. Assim, e em suma, deve-se ter por válido, à luz da Constituição, o afastamento da coisa julgada material, formada sobre decisão de improcedência por falta de provas, em demandas que envolvam relação de filiação, quando for alegada a viabilidade de produção de prova técnica capaz de reverter a conclusão do julgamento anterior, cuja realização só tenha se mostrado possível, do ponto de vista prático, pelo avanço tecnológico superveniente, somado à inadequação do regime da assistência jurídica aos necessitados, respeitado, em qualquer caso, o prazo de dois anos para o ajuizamento de nova demanda, que flui, por presunção iuris tantum, a contar do trânsito em julgado da demanda anterior, salvo nas hipóteses excepcionais em que restar também excepcionalmente demonstrado que apenas posteriormente se tornou viável, do ponto de vista prático, o acesso ao exame de DNA, cabendo ao demandante o ônus do afastamento da referida presunção.
84. Ex positis, voto no sentido de dar provimento ao recurso para afastar o óbice da coisa julgada material e admitir a continuidade do processo.
* acórdão pendente de publicação
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STJ - Superior Tribunal de Justiça. STF. Direito de Família. Ação de investigação de paternidade e coisa julgada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2011, 19:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Jurisprudências/26581/stf-direito-de-familia-acao-de-investigacao-de-paternidade-e-coisa-julgada. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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