GUILHERME SABINO NASCIMENTO SIDRÔNIO DE SANTANA[1]
(coautor)
Resumo: O presente trabalho científico tem o objetivo de investigar a origem e etimologia da palavra “Direito”, traçando-se os fatores mitológicos, históricos e geográficos, culturais e sociais que levaram esta palavra a se firmar como a principal do vocabulário jurídico. Ao final, busca-se uma aproximação entre os conceitos de Direito e Justiça. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cujo método empregado é o dedutivo, pois que se utiliza de um processo de análise de informação coletada de fontes bibliográficas para se obter uma conclusão. O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográficas na área de Direito, mais precisamente na área de Filosofia do Direito, Sociologia do Direito e Linguística.
Palavras-Chave: Etimologia. Origem histórica. Direito.
Abstract: The present scientific work aims to investigate the origin and etymology of the word "Law", tracing the mythological, historical and geographical, cultural and social factors that led this word to establish itself as the main one of the legal vocabulary. At the end, the article seeks an approximation between the concepts of Law and Justice. It is a descriptive research, whose method used is the deductive one, since it uses a process of analysis of information collected from bibliographic sources to reach a conclusion. The work was carried out through bibliographic research in the area of Law, more precisely in the area of Philosophy of Law, Sociology of Law and Linguistics.
Keywords: Ethymology. Historical origin. Right.
1. INTRODUÇÃO
Até 1966, não existiam trabalhos, nem de juristas, nem de linguístas, que discutissem o aparecimento da palavra “Direito” (“derectum”), nem porque ela passou a ser usada em detrimento de sua correspondente “ius”. A partir dessa data, contudo, por causa do constante uso da palavra “Direito”, surgem diversas indagações: como e por que surgiu a palavra “derectum” se a palavra “ius” tinha o mesmo significado e o mesmo uso? Quando “derectum” passa a ser utilizada ao lado de “ius”? Porque “ius” não passa a ser utilizada como palavra principal?
Para responder a essas perguntas, é preciso entender a história da linguagem e da simbologia dessas palavras, que tem como origem a cultura grega e a cultura romana. Dessa forma, o objetivo do presente trabalho é investigar a origem da palavra “Direito”, retomando os estudos linguísticos e etimológicos de jurisconsultos pátrios e estrangeiros.
2. ALUSÃO HISTÓRICO-LINGUÍSTICA
2.1 Origem da Palavra “Youes” e da Palavra “Jus” (“Ius”)
Uma teoria bastante aceita diz que a primeira palavra romana que tinha o significado de Direito era “Youes” (séc. VI a.C.), denotando um comando, a imposição de “Iovis” (“Iupiter”) – esse ordenamento por parte de “Iovis” se dá porque as relações (sendo uma comunidade primitiva) eram de poder. “Youes” é usado no início do sistema jurídico romano até a República (509 a.C.).
As opiniões de diversos juristas e linguístas são divergentes. Uma das explicações para a origem da palavra “jus” (indoeuropeia) é que ela provém do termo Sânscrito “yeus” (yu?), já que várias expressões latinas vêm da Ásia. A palavra “ius” (do Latim popular), por sua vez, remete à palavra “jus” (Latim Clássico).
A transição do termo “jus” para o termo “ius” deve-se à expansão Romana por toda a Europa (séc. III a.C.), que precisando colonizar as áreas conquistadas, mandou camponeses, soldados e artesãos se instalarem nesses locais, segundo leciona Bechara (2010, p. 687). Essas classes sociais usavam de expressões vulgares, colóquios e gírias e dessa forma modificaram o termo para que se adequasse a sua realidade linguística. A expansão Romana levou o Latim a quase todas as partes da Europa, e os locais que não o adotaram foram, pelo menos, influenciados por ele.
“Ius” é a segunda palavra latina a denotar Direito, sendo muito utilizada pela Lei das XII Tábuas. “Ius” não é procedente da palavra “Iustitia” (deusa romana da justiça), “Iustitia” é quem produz o “ius”, é ela quem produz o Direito.
É interessante observar que “youes” não é a origem da palavra “ius” (porém, as duas têm, provavelmente, a mesma origem na palavra “YEUS”); “youes” é o ordenamento de “Iovis”, enquanto que “ius” é o ordenamento de “Iustitia”. Até o séc. III a.C. o símbolo da justiça era representado, além da balança com o fiel no meio, ou por “Iupiter” ou por “Iustitia”. Com o tempo, o símbolo do Direito passa a ser somente “Iustitia”.
2.2 Origem da Palavra “Derectum” (“Directum”)
A palavra “derectum”, de diferente maneira, não deriva de “jus”, mas é um sinônimo, uma palavra usada para traduzi-la. Uma das hipóteses sobre sua origem diz que “derectum” vem de “rek-to”, outra palavra indoeuropeia (FERRAZ JR., 2011, p. 10). Ainda há, no entanto, outras teorias sobre a origem do termo “derectum”: umas afirmam ser de origem grega, outras afirmam ser latina, há outras ainda que digam ser céltica. Para alguns, “derectum” tem procedência judaico-cristã, ou somente cristã, significando um direito carregado de piedade, caridade e moralidade.
“Derectum” vem de “de” + “rectum” (“de” indicando um movimento vertical perfeitamente reto e, em outros casos, indicando intensidade). “Rectum” exprime uma ideia de algo que não está torto, que não está oblíquo, que não admite enviesamento em relação a um plano. Foi provavelmente a forma primitiva de “derectum”, recebendo o “de” através da vulgarização/corrupção do termo - essa teoria é corroborada por várias passagens do Velho Testamento, além disso, ela provém de “rek-to”, reforçando esse argumento (de “rek-to”, ou talvez de “rectum”, surgiu diretamente, sem o acréscimo do “de”, “right”, “recht”, “reht”). Dessa forma, “derectum” significa algo totalmente/perfeitamente reto, que não admite inclinação, nem para a direita, nem para a esquerda.
“Derectum” era a palavra que expressava ideia de Direito mais popular e mais acessível a todos. Era fácil de entender devido à ideia que representava, enquanto que as outras palavras precisavam ser refletidas/pesquisadas/teorizadas para que seus significados fossem abstraídos. Sendo assim, não era encontrada em textos jurídicos, apenas em textos de caráter popular, como textos religiosos e literários.
Com a rápida expansão Romana pela Europa, o Latim vulgar se difunde com grande facilidade fazendo surgir na Europa vários dialetos que, com o tempo, se transformaram em novas línguas. Daí aparece o Português, o Castellano, o Francês, o Italiano etc. Com o desenvolvimento desses novos idiomas, a palavra “derectum” foi se modificando.
Falava-se “dereito” no antigo português, modificando-se devido à pronúncia do “e” como “i”; hoje, se escreve “direito” (o moderno galego também admite essa escrita). Em galego, aragonês, navarro e mirandês escreve-se “derept” (“dreit” no antigo aragonês e também em limusino, e “dreito” em português e galego vulgares). Em francês, “droit”. “Diritto”, em italiano; contudo, devido a vários dialetos na Itália, também se escreve “dritto”. “Derecho”, em castellano; em espanhol antigo supre-se o primeiro “e”, ficando assim, “drecho”.
O termo “derectum” possui ligação com a religião cristã, isso se deve ao fato de que com o estoicismo, o termo foi cunhado com algum valor moral. O cristianismo acrescenta, mais tarde, um maior valor moral a “derectum”. “Ius” foi preterido em detrimento a “derectum” porque este era um termo jurídico mais popular do que aquele. A cristianização era voltada para o grande público, o povo, então os termos usados pelos cristãos deveriam ser de conhecimento de todos. Com a luta entre o cristianismo contra o paganismo, e a vitória daquele, a palavra “derectum” se sobrepõe a palavra “ius”, sendo esta praticamente esquecida. Com o renascimento, “ius” volta a ser utilizado. Mas, como “derectum” já era a palavra legitimada, ela continua vigente.
“Directum” não deriva de “derectum”, mas de “dirigere”. Significa “ir direto”, “ir pelo caminho mais curto”, ou ainda como querem alguns: “alinhar”, ”tornar reto”. Houve um tempo em que “derectum” e “directum” eram usadas ao mesmo tempo, indistintamente, chegando-se até a confundir o significado das duas palavras.
Batista e Costa (2006, p. 36) corroboram com essa explicação para o aparecimento da palavra “direito”:
Os lexicógrafos, em geral, têm afirmado que ela [a palavra direito] se origina da palavra latina directus, do verbo dirigere e significa endireitar, alinhar, dirigir, ordenar. Podemos dizer, então, que o direito é algo que está conforme ou em sintonia com a regra, no caso, com a lei. [...].
Por sua vez, Cretella Jr. (2009, p. 17) traz importante destaque sobre a origem da palavra “direito” na sua obra “Curso de Direito Romano”:
Não conheciam os antigos romanos a palavra direito. O vocábulo cognato e etimológico deste – directus – era um adjetivo que significava: aquilo que é conforme a linha reta. Cícero, no De natura deorum, opõe o iter flexuosum ao iter directum, ou seja, o caminho sinuoso ao caminho reto.
O vocábulo que traduz o nosso atual direito é, em latim, o vocábulo jus. O vocábulo jus pertence à mesma raiz do verbo jubere, ordenar, ou prender-se à mesma raiz do verbo jurare, jurar. Jus é o ordenado, o sagrado, o consagrado.
Justo é o que está em harmonia com o Jus. E Justitia é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
Direito é a arte do meu e do teu. O contrário de justus é injustus, tudo o que non jure fit é injúria.
Jus ou direito é o complexo das normas obrigatórias de conduta impostas pelo Estado para assegurar a convivência dos agrupamentos humanos.
Deve-se ressaltar que o doutrinador Gusmão (1984, p. 71), ao tratar da origem da palavra “direito”, diz que ela, em sua origem, é plurissignificante:
A palavra “direito” vem do latim directum, que supõe a ideia de regra, direção, sem desvio. No Ocidente, apesar de em alemão ser recht, em italiano diritto, em francês droit, em espanhol derecho, tem o mesmo sentido. Os romanos não a empregavam, pois, para eles, jus era direito, diverso de justitia, que significava a justiça, ou seja, qualidade do direito.
De modo muito amplo, pode-se dizer que a palavra “direito” é usada em três sentidos: 1.º, regra de conduta obrigatória (direito objetivo); 2.º, sistema de conhecimentos jurídicos (ciência do direito); 3.º, faculdade ou poderes que tem ou pode ter uma pessoa, ou seja, o que pode uma pessoa exigir de outra (direito subjetivo).
Não há dúvida de que “Ius” e “derectum” exprimem o mesmo sentido, a mesma palavra: “Direito”. Essa convergência se dá por meio de um símbolo: a deusa “Iustitia” proclama o “ius”, proclama o justo; e o Direito, neste caso, acontece quando os pratos da balança estão nivelados, ou seja, quando o fiel da balança está no meio, quando ele está reto (“recto”). Então, quando existe “deretum” existe também o “ius”, e vice-versa.
3. ALUSÃO SIMBÓLICA
Os símbolos foram criados para representar ações, objetos, pensamentos. São, por isso, anteriores às palavras já que estas são formadas por letras, e as letras são símbolos em si mesmos. Os símbolos não são simples imagens, são expressões que dentro de uma determinada cultura substituem ou sugerem uma ideia por convenção ou princípio de analogia formal, podendo referenciar uma pessoa ou personagem que representa um comportamento ou uma qualidade (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2009, p. 1745). A religião e os mitos o usam para criar parábolas, levando cada pessoa a ter de interpretá-lo para abstrair um significado verdadeiro. A partir dessa abstração, o símbolo torna-se vivo, tomando um aspecto transcendente que fundamenta, origina e classifica a realidade, preexistindo em relação aos seres materiais.
O direito relaciona-se a vários símbolos, um deles é a balança com o fiel (haste de metal que indicava o equilíbrio dos pratos) centralizado - em posição vertical -, quando este existia. Fala-se que a balança representa o homem, os seus braços e mãos seriam os pratos e a cabeça seria o fiel, pendendo para os lados de acordo com o peso.
O homem seria, dessa forma, uma balança que pesaria o material em oposição ao imaterial, metaforicamente falando. É dessa metáfora que surge o ato de ponderar, pesar, deliberar para confrontar os prós e os contras. Provavelmente de origem egípcia, passou para os gregos e depois para os romanos. Seu uso alegórico remete ao antigo Egito, onde Osíris utilizava a balança para pesar o coração (alma/bondade) dos homens em oposição a uma pena. Os gregos começam a utilizá-la a partir do séc. XII a.C. para pesar, além das coisas materiais, as atitudes humanas, simbolicamente falando. No séc. I a.C., mais ou menos, os romanos passam a adotá-la para pesar as ações humanas, tal como os gregos.
No começo da mitologia grega, Zeus era considerado o símbolo de justiça absoluta. Idealizavam-no segurando uma balança (sem o fiel no meio). Com o passar do tempo, a imagem de Zeus é substituída pela de Têmis, deusa grega, filha da Terra (Gaia) e do Céu (Urano), que pertencia à classe dos Titãs. Passou a ser reconhecida pelos outros deuses do Olimpo, primeiramente como sendo uma divindade secundária submetida à vontade de Zeus, com este lhe dizendo o que era justo ou injusto. Têmis representava a lei, a estabilidade e a continuidade da ação. Tinha um olhar sério e uma postura altiva, um rosto com fisionomia triste e austera. Carregava consigo uma balança e uma espada e pretendia manter-se virgem, mas Zeus, sabendo disso, forçou-a a casar-se com ele (Têmis torna-se a segunda esposa de Zeus). Desse relacionamento nascem três jovens: a Equidade, a Lei e a Paz.
A partir de certo momento, sua força passa a ser tanta que Zeus se submete a ela e a toma como conselheira. Fica sob sua responsabilidade manter a ordem, regulamentar os cerimoniais e organizar a Assembleia dos Deuses. Seus conselhos tinham sempre como princípio a justiça e a prudência, o que fez com que ela tivesse grande prestígio.
Punindo os culpados e protegendo os justos, ela representa a justiça divina, algo entre a Terra e o Céu. Têmis utilizava sua habilidade de interpretação como instrumento de justiça, podendo-se associar a hermenêutica a essa capacidade. Diz-se que Têmis ainda teve outras três filhas com Zeus: Irene (a Paz), Eunomia (a Ordem) e Diké (a Justiça).
No tempo de Hesíodo, entretanto, popularizou-se entre os gregos a imagem de Diké com a balança na mão esquerda, mas sem o fiel ao meio, e a espada na direita – para a execução da justiça. Diké estava com os olhos abertos, pois, como Deusa administradora da Justiça, ela precisava especular, enxergar os fatos como verdadeiramente eram. Quando os pratos da balança estavam nivelados, é que ela dizia que algo era justo; isso porque, para os gregos, o justo, o legítimo, o verdadeiro era visto como igual (ísos). Para os gregos, a ideia de justiça estava relacionada à ideia de igualdade.
Os romanos, analogamente, representavam Júpiter (ou Iupiter/Iovis) como o defensor máximo da justiça. Os romanos, como é sabido, incorporaram parte da cultura grega a sua cultura, fazendo as devidas adaptações ao seu modo de vida; dessa forma, Júpiter apresenta equivalência a Zeus. Júpiter, diferentemente, segurava uma balança com o fiel no meio (o Direito, para os romanos, não estava ligada a ideia de igualdade, mas a uma ideia de equilíbrio entre interesses opostos; os romanos eram técnicos em relação a isso, eles mediam, pesavam, examinavam as causas).
Com a evolução dos mitos e da sociedade, o representante da justiça modificou-se, passando a ser Dione (correspondente à Têmis, na mitologia grega). Depois, com o surgimento da República, a deusa da justiça passa a ser Iustitia, filha de Júpiter e Dione.
Com os olhos vendados, significado da imparcialidade, – visão muito criticada, já que um juiz, para assegurar a justiça, deve ser parcial, aplicando a equidade entre as partes, não podendo abrir mão do equilíbrio – passa a gerir a justiça com o uso da balança (segurada com as duas mãos, pois era preciso uma atitude firme do jurista para saber quando havia o direito). Os pratos da balança deveriam estar equilibrados, com o fiel no meio para que o direito estivesse sendo declarado. Rectum significa reto; de + rectum significa pelo caminho reto, pelo caminho correto.
O doutrinador Ferraz Jr. (2011, p. 10 – 11), ao tratar sobre a origem da palavra direito, explana que a diferenciação entre as imagens e simbologias formuladas pelos romanos distinguia-se das imagens e simbologias gregas devido ao uso operacional e prático que cada povo conferia à ideia de justiça e de direito:
[...] ao direito vincula-se uma série de símbolos, alguns mais eloquentes, outros menos, e que antecederam a própria palavra. De qualquer modo, o direito sempre teve um grande símbolo. Bastante simples, que se materializava, desde há muito, em uma balança com dois pratos colocados no mesmo nível, com o fiel no meio – quando este existia – em posição perfeitamente vertical. Havia, ainda, outra materialização simbólica, que varia de povo para povo e de época para época. Assim, os gregos colocavam essa balança, com os dois pratos, mas sem o fiel no meio, na mão esquerda da deusa Diké, filha de Zeus e Themis, em cuja mão direita estava uma espada e que, estando em pé e tendo os olhos bem abertos, dizia (declarava solenemente) existir o justo quando os pratos estavam em equilíbrio (íson, donde a palavra isonomia). Daí, para a língua vulgar dos gregos, o justo (o direito) significar o que era visto como igual (igualdade).
Já o símbolo romano, entre as várias representações, correspondia, em geral, à deusa Iustitia, a qual distribuía a justiça por meio da balança (com os dois pratos e o fiel bem no meio) que ela segurava com as duas mãos. Ela ficava de pé e tinha os olhos vendados e dizia (declarava) o direito (jus) quando o fiel estava completamente vertical; direito (rectum) = perfeitamente reto, reto de cima a baixo (de + rectum).
(...)
Notamos, ademais, que a deusa grega tinha os olhos abertos. Ora, os dois sentidos mais intelectuais para os antigos eram a visão e a audição. Aquela para indicar ou simbolizar a especulação, o saber puro, a sapientia; esta para mostrar o valorativo, as coisas práticas, o saber agir, a prudência, o apelo à ordem etc. Portanto, a deusa grega, estando de olhos abertos, aponta para uma concepção mais abstrata, especulativa e generalizadora que precedia, em importância, o saber prático. Já os romanos, com a Iustitia de olhos vendados, mostram que sua concepção do direito era antes referida a um saber-agir, uma prudentia, um equilíbrio entre a abstração e o concreto. Aliás, coincidentemente, os juristas romanos de modo preponderante não elaboram teorias abstratas sobre o justo em geral (como os gregos) mas construções operacionais, dando extrema importância à oralidade, à palavra falada, donde a proveniência de lex do verbo legere (ler, em voz alta). Além disso, o fato de que a deusa grega tinha uma espada e a romana não mostra que os gregos aliavam o conhecer o direito à força para executá-lo (iudicare), donde a necessidade da espada, enquanto aos romanos interessava, sobretudo quando havia o direito, o jus-dicere, atividade precípua do jurista que, para exercê-la, precisava de uma atitude firme (segurar a balança com as duas mãos, sem necessidade de espada); tanto que a atividade do executor, do iudicare, era para eles menos significativa, sendo o iudex (o juiz) um particular, geralmente e a princípio, não versado em direito.
Contudo, o símbolo do Direito modifica-se mais uma vez com a superposição do cristianismo em relação ao paganismo. O Direito passa a ser representado, então, somente pela balança – com dois pratos, mas sem o fiel ao meio para os povos orientais; e com dois pratos com o fiel ao meio para os povos ocidentais. A metáfora da balança a pesar as ações humanas passa a ser frequente nos textos religiosos cristãos.
4. PALAVRAS GREGAS QUE EXPRESSAM A IDEIA DE DIREITO
4.1 Basileus, Thémistes
A palavra “basileus” é considerada, por alguns, a primeira palavra a significar “Direito”, correspondendo às ordens de Zeus. Contudo, essa explicação é refutada por alguns doutrinadores porque não se sabe a origem desse termo. É consensual que a primeira palavra, seguramente, a significar direito seja “thémistes”; usada mais ou menos a partir do séc. IX a.C. Termo acessível somente à classe culta, “thémistes” eram os julgamentos da deusa Têmis inspiradas pelas ordens de Zeus, já que aquela era, primeiramente, uma deusa secundária subordinada a este. Entre os significados de “Thémistes” podemos destacar os que se referem a imposição, exigência coercitiva, decreto, ordenamento, prescrição e estabelecimento de leis.
Os gregos, por estarem na fase cósmica do jusnaturalismo, acreditavam na justiça divina, e que toda expressão de soberania era igualmente divina, sendo proclamada pelo Rei, mas procedente de um Deus.
4.2 Díkaion
Com “thémistes”, surgiu outra palavra designando Direito: “díkaion”, que denota o estabelecimento da justiça, a declaração da sentença/justiça por Diké. As palavras “thémistes” e “díkaion” são, respectivamente, as declarações do Direito por Têmis e Diké; sendo as duas palavras usadas somente pela classe culta grega.
4.3 Íson
A classe menos culta, no entanto, tinha também a necessidade de expressar a ideia de justiça; precisava-se de uma palavra compreendida por todos, pois a ideia de Direito é universal. “Thémistes” e “díkaion” eram julgamentos que estavam subordinados à vontade de Zeus, representando apenas uma parte da simbologia do Direito, fazia-se necessário também o uso de uma palavra que representasse a balança (de preferência quando os dois pratos estivessem nivelados).
“Ísion” passa a ser usado, então, para suprir essa lacuna na simbologia, como era usada apenas pela classe menos culta – assim como “derectum” -, não é encontrada em textos jurídicos oficiais; encontra-se apenas em fontes de caráter popular, como textos religiosos e literários. “Ísion” significa, também, igual/igualdade.
Sobre “díkaion” e “íson”, Ferraz Jr. (2011, p. 11) observa que:
As pequenas diferenças (mas, em termos de símbolo, significativas) entre os dois povos mostram-nos que os gregos aliavam à deusa algumas palavras, das quais as mais representativas eram díkaion, significando algo dito solenemente pela deusa Diké, e ísion, mais popular, significando que os dois pratos estavam iguais. Já em Roma, as palavras mais importantes eram jus, correspondendo ao grego díkaion e significando também o que a deusa diz (quod Iustitia dicit), e derectum, correspondendo ao grego ísion, mas com ligeiras diferenças.
Desse modo, essa semelhança simbólico-estrutural se dá na medida em que tantos os gregos quanto os romanos conferiam grande importância à tradição oral, sendo os procedimentos judiciais dotados da característica da oralidade.
5. DIREITO E JUSTIÇA
A ideia de Justiça possui uma complexidade de expectativas que tornam difícil a sua conceituação. Segundo Lamas (1998, p. 46) os gregos utilizaram duas palavras ou dois grupos de palavras para designar o que hoje entendemos por Direito. Esses dois grupos de palavras designam a lei, por um lado, e a justiça, por outra. Gautério (2013, p. 79), ao se referir aos dois grupos de palavras proposto por Lamas explica o que segue:
Nόµοϛ – uso, costume, norma, lei, estatuto, provém do verbo νέµή – distribuir, reparti, dar, apascentar, conduzir ao pasto, habitar, ocupar, possuir, governar, administrar. Nos encontramos frente a uma família de palavras amplíssima. Nesse sentido veja-se: Υoµή- reparto, distribuição, Υoµίζω- acostumar, julgar, estimar, etc. O ponto central é a norma enquanto regra condutora e resultado do ato de uma autoridade que manda e reparte. Enquanto regra designa o critério de retidão, um certo modelo que vincula o homem na polis, uma medida que não se deve ultrapassar bem como uma orientação racional para o bem comum.
Com efeito, Direito e Justiça não são sinônimos. Toda norma jurídica além de vigência e eficácia, deve ter também um fundamento que vem a ser o valor ou fim visado por ela. Sobre a ideia de Justiça e finalidade do Direito Bittar e Almeida (2016 p. 604) ressaltam o seguinte:
A própria história da humanidade, de suas ideologias bem como de suas tendências político-econômicas, tornou o Direito frágil, suscetível e vassalo aos desmandos do poder político e econômico. O Direito, muitas vezes, arcabouço coercitivo da conduta humana social se desprovido de essência e de finalidade, serve a qualquer finalidade independentemente de qualquer valor podendo ser importante ingrediente de utilidade para a dominação e o interesse de minorias. No entanto, deve-se resgatar a ideia de que o preenchimento semântico do Direito pela ideia de justiça tem a ver com a teleologia do movimento que é jurídico em direção ao que não é jurídico, mas valorativo, e deve ser a axiologia a se realizar: a justiça. A justiça, nesse sentido, passa a ser a ratio essendi do Direito, que por si e em si, sem esse parâmetro valorativo não possui sentido.
Dessa forma, a Justiça pressupõe enquanto valor que norteia a construção histórico-dialética dos direitos como fim e como fundamento para expectativas sociais em torno do Direito. Apesar de a Justiça ser valor de difícil contorno conceitual, ainda assim é um valor essencialmente humano e extremamente necessário para as realizações do convívio humano, pois nela mora a gênese da ideia de igualdade (BITTAR e ALMEIDA, 2016, p. 605).
É de se admitir que entre as tarefas do jurista se encontra propriamente a de discutir o valor da justiça. Nesse caminho, o importante não é encontrar solução para o dilema, mas a aquisição de consciência sobre a sua existência (BITTAR e ALMEIDA, 2016 p. 606). O Direito é fenômeno sem sentido quando dissociado da ideia de justiça. Esse pensamento é algo antigo desde os Romanos, Direito e Justiça já se relacionavam intimamente, como observamos nos estudos de Gautério (2013, p. 81):
Reconhecemos então muitas semelhanças entre as concepções gregas e romanas. “O Direito é uma coisa social, se realiza na vida social e guarda uma relação necessária com normas e valores, sobretudo com a justiça – dikaiosýne ou iustitia. Todos entendiam que nas relações e condutas humanas há que distinguir aspectos meramente fáticos e aspectos relativos ao valor axiológico (questões de validade, “de direito”). Os romanos reconheciam que o Direito (“ius”, “to dikxaion”) guardava uma relação constitutiva com a justiça, considerada esta como valor objetivo.
Nesse sentido sendo o conceito de Justiça algo axiológico, é consubstancial à experiência jurídica a pluralidade de valores: liberdade, igualdade, segurança entre outros. Entretanto Justiça não se identifica, não é sinônimo, de nenhum deles, pois ela é o valor-fim do Direito e não o valor-meio (BETIOLI, 2011 p. 490). A Justiça pode ser considerada o fim do Direito, aquilo que o Direito, pela sua própria natureza, se dirige, e em vista do que ele existe. Por sua vez, a Justiça é uma realidade axiológica, sendo que valores nada mais são do que qualidades que se recomendam às pessoas que correspondem a uma determinada perfeição.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do mesmo modo que o Direito evolui, se transforma e se metamorfoseia, as palavras nele contida e a própria palavra que o nomeia também o faz. Entender origem da palavra “Direito” não fornece conhecimentos tão somente linguísticos, mas também conhecimentos históricos sobre a própria origem e surgimento do direito ocidental.
O Direito possui gênese na práxis da oralidade (“ius”) - em que os jurisconsultos proclamavam a vontade divina, progredindo, logo em seguida, para conter em seu nome a ideia a ser seguida (“derectum”) - estar reto e equilibrado com as partes em conflito (ideia até hoje seguida pelas democracias modernas). A investigação etimológica da palavra “direito”, portanto, tem a importância de evidenciar a evolução que as diversas sociedades e culturas passaram, demonstrando ainda o que significava o direito para cada uma delas.
A ideia de Justiça não pertence apenas ao Direito, contudo, faz parte da sua essência. Discutir o “valor”, o alcance axiológico, do que seria a Justiça é algo de suma importância para a Ciência do Direito, uma vez que esses conceitos não são sinônimos, nem possuem a mesma origem etimológica. O mais importante não é encontrar uma solução final para o dilema, mas a aquisição de consciência sobre a sua existência. O Direito é fenômeno sem sentido quando dissociado da ideia de Justiça, que concretiza a dominação de grupos que estão no poder, se afastando das transformações sociais, e por consequência de ideias de Justiça. O Direito é um meio para se alcançar a Justiça.
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[1]Especialista em Direito Processual Civil pela Damásio Educacional e Ibmec. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Advogado.
MBA Executivo em Gestão Estratégica de Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes; Especialista em Direito Penal pela Damásio Educacional e Ibmec; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Prominas; Especialista em Ciência Política pela UNIBF. Bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora de Direito Constitucional da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF (FACAPE - Faculdade de Petrolina), Advogada.
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