EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR. PAIS COM INÚMEROS PROBLEMAS COM DROGAS, AGRESSÃO E PROSTITUIÇÃO. VIOLAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA CRIANÇA. CONJUNTO PROBATÓRIO ELUCIDATIVO. INEXISTÊNCIA DE CONDIÇÕES MATERIAIS E MORAIS DOS PAIS PARA A CRIAÇÃO DO MENOR, QUE APRESENTA DEBILIDADE MOTORA E PROBLEMAS ALIMENTARES, MUITO PROVAVELMENTE EM DECORRÊNCIA DO USO DE CRACK PELA MÃE, DURANTE A GESTAÇÃO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1.638 DO CC E 24 DO ECA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2009.058768-8, da comarca de Porto União (1ª Vara), em que é apelante M. G., e apelado Representante do Ministério Público:
ACORDAM, em Segunda Câmara de Direito Civil, por votação unânime, conhecer do recurso, negando-lhe provimento. Custas legais.
RELATÓRIO
Trata-se de apelação cível interposta por M.G. contra sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara de Porto União que, nos nos autos da ação de destituição de poder familiar (n. 052.09.000281-6) ajuizada pelo representante do Ministério Público, julgou procedente o pedido, destituindo os réus do poder familiar do seu filho. Também indeferiu o pedido de guarda da avó.
O réu aduz em síntese que: sua realidade atualmente é muito diferente daquela vivenciada quando do ajuizamento da ação; a mulher o abandonou, mas o pai continua com interesse em ficar com seu filho; faz visitas regulares no abrigo em que a criança está; se encontra trabalhando e inscrito no programa COHAPAR, aguardando uma nova moradia mais condizente com a necessidade do menor; a nova redação da lei de adoção (n. 12.010/09) preconiza a preservação do vínculo familiar.
O representante do Parquet apresentou contra-razões, pugnando pela manutenção da sentença (fls. 91/97).
O Procurador-Geral de Justiça, através de parecer da lavra do Dr. Aurino Alves de Souza, manifestou-se pelo desprovimento do recurso (fls. 102/107).
VOTO
Embora o réu sustente o equívoco na procedência do pedido de destituição do poder familiar, aduzindo que apesar de não mais estar em união estável com a mãe da criança, possui interesse em ficar com o filho. Salienta ainda que está inscrito em um programa de moradia para a obtenção de casa própria, se encontra trabalhando, almejando a preservação do vínculo familiar.
No entanto, razão não lhe assiste.
Inicialmente, faz-se necessário um breve resumo dos fatos elencados na inicial:
A requerida é orfã por parte da genitora e não tem pai declarado no registro civil.
Observa-se que Roberta já foi abrigada por 4 (quatro) vezes no abrigo de crianças e adolescente de Porto União, sempre por irregularidades em seu comportamento.
No que tange ao genitor Marcos consta nos autos que está preso desde 06 de setembro de 2008, por agredir Roberta, que na época estava grávida de 6 (seis) meses e por medida de proteção foi abrigada.
Não obstante diversas diligências realizadas pelas assistentes sociais, não encontraram nesta cidade nenhum parente da adolescente que possuísse condições de cuidá-la.
Ademais, conforme informativo social de fl. 36, no dia 22 de outubro de 2008, por volta das 7h30min, Roberta, juntamente com duas adolescentes, fugiu do abrigo, sendo encontrada no período vespertino, na localidade de Lança, interior de Porto União. Ao retornar do abrigo, Roberta passou mal e foi encaminhada ao Hospital de Caridade São Braz , desta cidade, iniciando o processo de parto normal, nascendo seu filho.
Verifica-se ainda que o requerido nunca buscou qualquer interesse e aproximação do filho. Quanto à requerida abandonou o filho no abrigo no dia 22 de dezembro de 2008, sendo que ainda declarou informalmente que entregaria Cleverson para adoção.
Assim sendo, diante de todos estes fatos é certo que os genitores abandonaram a criança, bem como não apresentam condições de criá-la, cuidá-la e educá-la, a qual necessita de cuidados especiais , em virtude da idade tenra em que conta hoje (fls. 02/03).
Não se olvide que a destituição do poder familiar importa em decisão extrema, no caso de os pais não guardarem condições de permitir o desenvolvimento sadio de sua prole. Funda-se, tão-somente, no nítido descaso com as condições mínimas necessárias ao desenvolvimento adequado da criança, seja afetivo, psicológico, moral, educacional e material.
O art. 1.638 do Código Civil elenca as possibilidades que podem ensejar a destituição do poder familiar:
Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I castigar imoderadamente o filho;
II deixar o filho em abandono;
III praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no trigo antecedente.
Determina o art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.
Doutrina Sílvio de Salvo Venosa:
Como o poder familiar é um múnus que deve ser exercido fundamentalmente no interesse do filho menor, o estado pode interferir nessa relação, que, em síntese, afeta a célula familiar.
[...]
Abandono não é apenas o ato de deixar o filho sem assistência material: abrange também a supressão do apoio intelectual e psicológico. A perda poderá atingir um dos progenitores ou ambos (Direito Civil: direito de família, 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 331-334).
In casu, analisando atentamente toda a prova colacionada aos autos, constata-se que este é mais um triste caso que chega ao Judiciário, demonstrando mais uma situação de descaso e irresponsabilidade de pais para com seus filhos, contrariando os deveres impostos no art. 22 do ECA, que assim dispõe:
Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Tanto o relato do Conselho Tutelar (fls. 09/10), quanto o estudo social (fls. 55/57), fotos do local de moradia da família (fls. 58/62) demonstram a extrema dificuldade dos pais do menor, não só material, mas social, moral, afetiva.
Consta que o casal e a avó paterna residiam no meio de um lixão, tirando seu sustento do lixo reciclável. Ambos tiveram problemas com drogas e o pai já foi preso por agressão à mãe enquanto ela estava grávida.
Com efeito, as fotos de fls. 58/62 retratam as precárias condições de salubridade e higiene em que vive essa família.
Durante a instrução, foram ouvidas a mãe, pai, avó, e três assistentes sociais. Colhe-se do depoimento da mãe (fl. 66):
Moro na Ribeirinha com Marcos na casa que aparece na foto de fl. 61; Isaurina a mãe de Marcos mora na casa da foto de fl. 58; [...] eu passei três vezes pelo abrigo e tive envolvida algumas vezes em furto; já usei crack, mas há três anos não uso e também me prostituía, mas agora já não faço mais; [...] eu apenas cuido da casa; parei de estudar com dez anos; Marcos trabalha com o Décio Pacheco no serviço de roçadas e de limpeza de estradas; [...] não tenho condições mas poso cuidar da criança; Marcos também não quer entregar a criança, mas quer deixar a criança com a mãe dele; eu estava no abrigo e amamentava a criança; mas briguei com a Mari, fiquei braba e bati numa menina; então pedi pra ir embora; naquela época Marcos estava preso; eu não teria condições de criar a criança, então deixei ela lá no abrigo; [...].
Marcos Gonçalves, o ora apelante, disse (fl. 67):
[...] eu entregaria a criança para minha mãe que tem 43 anos, porque acho que ela iria cuidar da criança; acho que Roberta também tem condições de cuidar do bebê; [...] eu já estive preso porque briguei com a Roberta num dia em que eu estava bêbado; não uso drogas, mas já usei crack e parei há quatro anos; também não bebo; estudei até a sexta série; o trabalho qu faço é braçal, limpando canaletas da estrada; [...].
A avó da criança, Isaurina de Jesus Gonçaves aduziu (fl. 68):
[...] eu tenho renda mais ou menos R$ 200,00 por mês e recebo uma cesta da prefeitura; estive amasiada por oito meses com um homem e agora estou separada dele; [...].
A assistente social Neusa Luzia Benoni afirmou (fl. 69):
[...] ela era uma menina em situação de rua e nós a atendíamos muitas vezes com alimentos, agasalhos e outros serviços; também o Conselho Tutelar sempre atendia Roberta e por isso eu sabia alguma coisa; Roberta é muito instável e ela não teria condições de atender satisfatoriamente a criança e dar-lhe um apoio para a criança ter futuro, pois ela também não tem apoio de família; por isso é difícil ela atender a criança, pelas condições dela e pelo seu emocional; [...] eu tinha conhecimento que ela estaria envolvida com drogas e prostituição; pela situação de rua ela era vulnerável e exposta; [...] digo que Roberta não tem condições de cuidar da criança com base nas informações profissionais; [...] eles não estão preparados para viver como casal e para garantir o futuro da criança; ela foi agredida por ele quando ainda era gestante, o que levou ao abrigamento.
Luciana Cristina Kauva confirmou (fl. 70):
Trabalho no programa de medidas sócio-educativas a atendi Roberta algumas vezes; [...] segundo ela me contava ela foi usuária de crack e parou um pouco antes da gravidez; também segundo ela falava o mesmo aconteceu com a prostituição; [...].
Por fim, Maria Singeski falou (fl. 71):
Cleverson nasceu com baixo peso e esteve internado com amarelão; na época era amamentado por Roberta; é uma criança frágil; não firma as pernas; está fazendo fisioterapia e será encaminhada para neuro-pediatria, pois provavelmente a criança tem sequela conturbada vivida por Roberta; a criança usa leite especial e alimentação segue receita rigorosa; enquanto Roberta estava com a criança no abrigo, ela amamentava e atendia a criança; [...] antes de sair do abrigo de Porto União, brigou com outra adolescente e pulou em mim; teve um surto; a motivação é que queria sair de lá; primeiro queria levar o menino; [...] acho que ela queria mesmo era estar com Marcos; [...] atualmente ela e Marcos fazem visitas aos sábados; eu não acompanho, mas são visitas monitoradas por causa do histórico de Roberta; segundo as monitoras eles ficam pouco tempo com a criança e ela não tem demonstrado muito afeto; [...] eles não tem estrutura para receber a criança doente como é; a avó sai pra trabalhar e deixaria a criança com adolescentes, ou seja, com a Roberta ou com as filhas de Isaurina; na minha avaliação o casal não tem maturidade para conviver como casal; e mais pelo conhecimento com a Roberta, afirmo que ela não está preparada para exercer a maturidade com relação a esta criança; [...] não sei se valeria a pena arriscar o futuro dessa criança para aguardar que eles melhorem a situação; [...] quando estava no oitavo mês de gravidez, Roberta e mais duas adolescentes da casa, fugiram a pé; só foram encontradas no final da tarde na localidade de Lança, na beira da Br , usando mini-saia; todo esse esforço acabou redundando no rompimento da bolsa e apressando o parto; [...] elas saíram do abrigo de calça comprida, não sei onde arranjaram as mini-saias; [...] o leite que a criança usa custa de treze a dezessete reais e se utiliza de uma e meia a duas latas por semana. Mas não é só o leite. A alimentação é complementada por outros ingredientes numa dieta balanceada; a criança usa antibióticos e complemento vitamínico; a criança ainda faz fisioterapia na clínica duas vezes por semana e diariamente em casa com uma monitora que foi treinada para isso.
Inobstante, o laudo médico de fl. 73, deixa claro o estado debilitado da criança, que conta atualmente com um ano e dois meses de idade (certidão de nascimento, fl. 33), e possui atraso do desenvolvimento motor, necessitando de fisioterapia, além de possuir intolerância ao leite de magnésio, necessitando de dieta especial.
Há que se registrar também que o Magistrado a quo, ao proferir despacho nos autos em 01.10.2009 (fl. 98), mencionou que o local de residência do apelante encontrava-se alagado pelas cheias do Rio Iguaçu, sendo provável que a família esteja em abrigo do município.
Como se pode observar, a prova amealhada evidencia de maneira inequívoca, os inúmeros problemas da família, como as drogas, as agressões físicas, a falta de organização familiar e as condições insalubres de moradia.
Saliente-se que "a pobreza, como se sabe, não justifica a destituição do poder familiar. No entanto, como está reproduzida no caderno processual, a situação não é unicamente de escassez material, mas, também, de total desleixo e desamparo, o que demonstra que os apelantes não possuem instinto paternal no zelo e responsabilidade com as necessidades básicas de criação da sua prole " (AC n. 2008.007342-3, de Lages, rel. Des. Fernando Carioni, j. 10.06.2008).
Desta feita, de tudo até aqui esposado, inegável que o processo foi muito bem instruído, tanto por parte do Ministério Público quanto pelo Magistrado singular, sendo inconteste que os pais não oferecem condições adequadas ou aconselháveis para assegurar o bom desenvolvimento do infante, que possui sério problema de saúde.
Porque elucidativo, transcreve-se a lição de Gabriela Mistral, poetisa chilena, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura (em 1945):
Nós somos culpados de muitos erros de muitas faltas
Mas nosso maior crime é abandonar as crianças, neglicenciando a fonte da vida.
Muitas coisas de que nós precisamos podem esperar: A criança não pode.
Exatamente agora é o tempo em que os seus ossos estão sendo formados, seu sangue está sendo feito e seus sentidos estão sendo desenvolvidos.
Para ela não podemos responder "amanhã". Seu nome é hoje (in: http://www.pensador.info/autor/Gabriela_Mistral/).
Destarte, a solução mais condizente em prol da supremacia do interesse do menor é aquela preconizada na sentença, ante a absoluta falta de condição social, moral, material, educacional e psicológica do apelante em proporcionar-lhe uma vida digna. Mutatis mutandis, esta Corte já decidiu:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR. MANIFESTO ABANDONO MATERIAL. CONJUNTO PROBATÓRIO ELUCIDATIVO. INEXISTÊNCIA DE CONDIÇÕES MATERIAIS E MORAIS DOS PAIS PARA A CRIAÇÃO DAS MENORES. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1.638 DO CC E 24 DO ECA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO [...] (Apelação Cível n. 2009.058768-8, de Porto União, j. 19.03.2009).
Mais:
Em observância ao princípio do melhor interesse da criança, os pais biológicos devem ser destituídos do poder familiar quando restar demonstrada a falta de capacidade social, psicológica e moral, bem como a possibilidade de oferecer o mínimo de condições para formação saudável e digna do infante (AC n. 2008.033799-4, de Pinhalzinho, rel. Des. Subst. Joel Dias Figueira Júnior, j. 26.08.2008).
E:
É necessária a intervenção do Poder Judiciário para assegurar o bem estar de menores, vítimas da incúria de seus pais, com o fito único de salvaguardar direitos indisponíveis garantidos pela Carta Política de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. É claro que a miserabilidade não é suficiente para ensejar medida tão drástica como a destituição do pátrio poder, mas quando o contexto da prova produzida atesta total desleixo dos pais com seus filhos, não pode o magistrado manter-se indiferente à sorte daqueles que ainda não lograram atingir o desenvolvimento e a maturidade de espírito que lhes permita cuidar, por si mesmos, de suas pessoas e bens (AC n. 2006.023868-3, de Gaspar, rel. Des. Carlos Prudêncio, j. 03.10.2006).
Diante do exposto, vota-se no sentido de negar provimento ao recurso, mantendo-se incólume a sentença vergastada.
DECISÃO
Nos termos do voto do relator, a Câmara, à unanimidade, conheceu do recurso, negando-lhe provimento.
O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Mazoni Ferreira, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Luiz Carlos Freyesleben.
Florianópolis, 10 de dezembro de 2009
Sérgio Izidoro Heil
relator
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Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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