EMENTA: AÇÃO PENAL PÚBLICA. MONOPÓLIO CONSTITUCIONAL OUTORGADO AO MINISTÉRIO PÚBLICO (CF, ART. 129, I). FORMAÇÃO DA “OPINIO DELICTI” NAS AÇÕES PENAIS PÚBLICAS: JUÍZO PRIVATIVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL OU DE PEÇAS INFORMATIVAS POR DELIBERAÇÃO JUDICIAL “EX OFFICIO”. NECESSIDADE, PARA TANTO, DE PROVOCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRECEDENTES.
- Inviável, em nosso sistema normativo, o arquivamento, “ex officio”, por iniciativa do Poder Judiciário, de peças informativas e/ou de inquéritos policiais, pois, tratando-se de delitos perseguíveis mediante ação penal pública, a proposta de arquivamento só pode emanar, legítima e exclusivamente, do próprio Ministério Público.
- Essa prerrogativa do “Parquet”, contudo, não impede que o magistrado, se eventualmente vislumbrar ausente a tipicidade penal dos fatos investigados, reconheça caracterizada situação de injusto constrangimento, tornando-se conseqüentemente lícita a concessão, “ex officio”, de ordem de “habeas corpus” em favor daquele submetido a ilegal coação por parte do Estado (CPP, art. 654, § 2º).
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA SUPOSTAMENTE PRATICADO POR PREFEITO MUNICIPAL. (DL Nº 201/67, ART. 1º, XIV). DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL. DETERMINAÇÃO (NÃO ATENDIDA) DE INCLUSÃO, NO ORÇAMENTO DO MUNICÍPIO, DE VERBA NECESSÁRIA AO PAGAMENTO DE DÉBITO CONSTANTE DE PRECATÓRIO. DECISÃO QUE, EMBORA EMANADA DE AUTORIDADE JUDICIAL, FOI PROFERIDA EM SEDE MATERIALMENTE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE ELEMENTO ESSENCIAL DO TIPO. CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A INSTAURAÇÃO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- Não basta, para efeito de caracterização típica do delito definido no inciso XIV do art. 1º do Decreto-lei nº 201/67 – “deixar de cumprir ordem judicial” -, que exista determinação emanada de autoridade judiciária, pois se mostra igualmente necessário que o magistrado tenha proferido decisão em procedimento revestido de natureza jurisdicional, uma vez que a locução constitucional “causa” encerra conteúdo específico e possui sentido conceitual próprio. Precedentes.
- A atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal no processamento dos precatórios decorre do exercício, por ele, de função eminentemente administrativa (RTJ 161/796 – RTJ 173/958-960 – RTJ 181/772), não exercendo, em conseqüência, nesse estrito contexto procedimental, qualquer parcela de poder jurisdicional.
DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado:
“PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. INQUÉRITO PARA APURAÇÃO DE CRIME ATRIBUÍDO A PREFEITO. ARQUIVAMENTO DE OFÍCIO. INEXISTÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. VIOLAÇÃO AO ART. 3º, DA LEI Nº 8.038/1990.
I - Somente o Ministério Público, a quem, no processo acusatório, pertence a titularidade privativa da persecução penal, tem a legitimidade para pedir o arquivamento do inquérito (Precedentes).
II – ‘Incumbe exclusivamente ao ‘Parquet’ avaliar se os elementos de informação de que dispõe são ou não suficientes para a apresentação da denúncia, entendida esta como ato-condição de uma bem caracterizada ação penal. Pelo que nenhum inquérito é de ser arquivado sem o expresso requerimento ministerial público.’ (HC 88589, 1ª Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 23/03/2007).
III - Destarte, nos termos do art. 3º, da Lei n 8.038/1990, compete ao Relator determinar o arquivamento do inquérito ou de peças informativas, somente quando o requerer o Ministério Público.
IV - Assim, na hipótese, deve ser cassado o v. acórdão objurgado que, ao deixar de remeter os autos ao titular privativo da ação penal pública e determinar o arquivamento do inquérito sem que houvesse manifestação neste sentido, subtraiu ao órgão do ‘Parquet’ a atribuição constitucional de ‘dominus littis’, violando o dispositivo federal apontado.
Recurso especial provido.”
(REsp 1.177.681/PR, Rel. Min. FELIX FISCHER - grifei)
Sustenta-se, na presente impetração, a “ausência de justa causa para a continuação da investigação preliminar”, eis que se apura, consoante alegado nesta sede processual, “fato reconhecidamente atípico, gerando injusto constrangimento ao paciente” (grifei).
Não se desconhece que o monopólio da titularidade da ação penal pública pertence ao Ministério Público, que a exerce, com exclusividade, em nome do Estado. Trata-se, hoje, de atribuição de índole constitucional deferida, em situação de monopólio jurídico, à instituição do Ministério Público. A nova ordem normativa instaurada no Brasil, formalmente plasmada na Constituição da República, outorgou ao “Parquet”, dentre as múltiplas e relevantes funções institucionais que lhe são inerentes, a de “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” (art. 129, I).
Essa cláusula de reserva, pertinente à titularidade da ação penal pública, apenas acentuou - desta vez no plano constitucional -a condição de “dominus litis” do Ministério Público, por ele sempre ostentada no regime anterior, não obstante as exceções legais então existentes.
Essa regra constitucional (CF, art. 129, I) - consoante adverte a doutrina (CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/302, 2001, Saraiva; HUGO NIGRO MAZZILLI, “Introdução ao Ministério Público”, p. 124, item n. 24, 7ª ed., 2008, Saraiva, v.g.) – provocou, em face da absoluta supremacia de que se revestem as normas da Constituição, a imediata derrogação de diplomas legislativos editados sob a égide do regime anterior (RTJ 134/369, Rel. Min. CELSO DE MELLO), que deferiam a titularidade do poder de agir, mediante ação penal pública, dentre outros, a magistrados e a autoridades policiais.
Em conseqüência do monopólio constitucional do poder de agir outorgado, ao Ministério Público, em sede de infrações delituosas perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública, somente ao “Parquet” – e ao “Parquet”, apenas – compete a prerrogativa de propor o arquivamento de quaisquer peças de informação ou de inquérito policial, sempre que inviável a formação da “opinio delicti”.
Esse entendimento tem o beneplácito de expressivo magistério doutrinário (FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Processo Penal”, vol. I/244-245, 11ª ed., 1989, Saraiva; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código de Processo Penal Comentado”, p. 121/122, 10ª ed., 2011, RT; ALBERTO SILVA FRANCO e RUI STOCO, “Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial”, vol. II/181-184, 2ª ed., 2004, RT; CARLOS FREDERICO COELHO NOGUEIRA, “Comentários ao Código de Processo Penal”, vol. I/394-395, 1ª ed., 2002, Edipro; DAMÁSIO DE JESUS, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 39, 23ª ed., 2009, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 116, item n. 17.1, 7ª ed., 2000, Atlas; EDILSON MOUGENOT BONFIM, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 115, 3ª ed., 2010, Saraiva; PAULO RANGEL, “Direito Processual Penal”, p. 191, item n. 3.13, 16ª ed., 2009, Lumen Juris), bem assim da jurisprudência que esta Suprema Corte firmou na matéria (RTJ 92/910, Rel. Min. RAFAEL MAYER):
“‘HABEAS CORPUS’. PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO DA SUPOSTA PARTICIPAÇÃO DE SARGENTO DE POLÍCIA NA PRÁTICA DE ILÍCITOS. ARQUIVAMENTO, PELO JUÍZO, SEM EXPRESSO REQUERIMENTO MINISTERIAL PÚBLICO. (...).
1. O inquérito policial é procedimento de investigação que se destina a apetrechar o Ministério Público (que é o titular da ação penal) de elementos que lhe permitam exercer de modo eficiente o poder de formalizar denúncia. Sendo que ele, MP, pode, até mesmo, prescindir da prévia abertura de inquérito policial para a propositura da ação penal, se já dispuser de informações suficientes para esse mister de deflagrar o processo-crime.
2. É por esse motivo que incumbe exclusivamente ao ‘Parquet’ avaliar se os elementos de informação de que dispõe são ou não suficientes para a apresentação da denúncia, entendida esta como ato-condição de uma bem caracterizada ação penal. Pelo que nenhum inquérito é de ser arquivado sem o expresso requerimento ministerial público.
.......................................................
5. Ordem denegada.”
(HC 88.589/GO, Rel. Min. AYRES BRITTO - grifei)
Vê-se, portanto, que se mostra inviável, em nosso sistema normativo, o arquivamento, “ex officio”, por iniciativa do Poder Judiciário, de peças informativas e/ou de inquéritos policiais, pois, tratando-se de delitos perseguíveis mediante ação penal pública, o ato de arquivamento só pode ser legitimamente determinado, pela autoridade judiciária, em face de pedido expresso formulado, em caráter exclusivo, pelo próprio Ministério Público.
Irrecusável, desse modo, quanto a esse específico aspecto da matéria, a correção do julgamento emanado do E. Superior Tribunal de Justiça e que, no caso ora em exame, reconheceu não ser lícito, ao Poder Judiciário, ordenar o arquivamento de inquérito policial (ou de peças de informação), sem prévio requerimento do Ministério Público.
Ocorre, no entanto, que a Defensoria Pública da União sustenta que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao recurso especial interposto pelo Ministério Público Federal, permitiu que se reabrisse “procedimento investigativo” em torno de fato alegadamente destituído de tipicidade penal, aí residindo, segundo enfatizado nesta impetração, a caracterização de injusto constrangimento ao “status libertatis” do ora paciente.
Estabelecidas tais premissas, passo a examinar o pleito cautelar ora formulado pela parte impetrante. E, ao fazê-lo, observo que os elementos produzidos nesta sede processual revelam-se suficientes para justificar, na espécie, o acolhimento do pedido de liminar, eis que concorrem, no caso, os requisitos autorizadores da concessão da medida em causa.
É certo, como anteriormente acentuado, que o inquérito policial não pode ter o seu arquivamento ordenado, “ex officio”, pelo Poder Judiciário, cuja decisão, nesse tema, depende de pedido expressamente formulado pelo Ministério Público, nos casos de delitos suscetíveis de persecução mediante ação penal de iniciativa pública.
Não obstante tal entendimento, pode, o magistrado, se eventualmente vislumbrar, em determinado procedimento persecutório, a ausência de tipicidade penal dos fatos investigados, reconhecer a configuração de injusto constrangimento, e, em conseqüência, exercendo o dever-poder que lhe confere o ordenamento positivo (CPP, art. 654, § 2º), conceder, “ex officio”, ordem de “habeas corpus” em favor daquele que sofre ilegal coação por parte do Estado, consoante tem proclamado tanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Pet 3.825-QO/MT, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES – RT 527/455, Rel. Min. THOMPSON FLORES) quanto aquela emanada do E. Superior Tribunal de Justiça (HC 28.796/SP, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA – RHC 4.311/RJ, Rel. Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO).
Tal, porém, não sucedeu na espécie, eis que o Tribunal apontado como coator deixou de exercer a prerrogativa fundada no art. 654, § 2º, do CPP, muito embora o fato sob apuração aparentasse desprovido da necessária adequação típica.
Faço tal afirmação, considerada a circunstância de que não estaria configurado, no plano da tipicidade penal, o crime de desobediência objeto da investigação estatal ora questionada, pois, como se sabe, a atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal no processamento dos precatórios decorre do exercício, por ele, de função eminentemente administrativa:
“Inquérito. Recurso em sentido estrito. Sentença que não recebe a denúncia. Ex-Prefeito. Não-pagamento de precatório. Descumprimento de ordem judicial. Art. 1º, inciso XIV, segunda parte, do Decreto-Lei nº 201/67.
.......................................................
2. Na linha da firme jurisprudência desta Corte, os atos praticados por Presidentes de Tribunais no tocante ao processamento e pagamento de precatório judicial têm natureza administrativa, não jurisdicional.
3. A expressão ‘ordem judicial’, referida no inciso XIV do art. 1º do Decreto-Lei nº 201/67, não deve ser interpretada ‘lato sensu’, isto é, como qualquer ordem dada por Magistrado, mas, sem dúvida, como uma ordem decorrente, necessariamente, da atividade jurisdicional do Magistrado, vinculada a sua competência constitucional de atuar como julgador.
4. Cuidando os autos de eventual descumprimento de ordem emanada de atividade administrativa do Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, relativa ao pagamento de precatório judicial, não está tipificado o crime definido no art. 1º, inciso XIV, segunda parte, do Decreto-Lei nº 201/67.
5. Recurso em sentido estrito desprovido.”
(Inq 2.605/SP, Rel. Min. MENEZES DIREITO – grifei)
Observa-se, na espécie, a aparente ausência de tipicidade penal do comportamento imputado ao paciente, eis que o preceito primário de incriminação, tal como definido no inciso XIV do art. 1º do Decreto-lei nº 201/67, supõe, para aperfeiçoar-se, a existência de ordem proferida em sede jurisdicional e emanada de autoridade judiciária competente.
É por isso que se tem enfatizado, em diversos julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, que “(...) a atribuição do Presidente do Tribunal, ao processar o precatório, não é sequer jurisdicional. É atividade puramente administrativa”, pois, consoante então ressaltado, “A atividade jurisdicional termina com a expedição do precatório (...)” (RTJ 71/572, 575 - grifei).
Posteriormente, esse mesmo entendimento sobre o tema em análise veio a ser reiterado em voto proferido pelo saudoso Ministro RODRIGUES ALCKMIN, que expendeu lúcido magistério a propósito da matéria em questão (RTJ 80/691):
“A função do Presidente do Tribunal é, no caso, meramente administrativa. Ele não é Juiz da execução. Juiz da execução é o Juiz que expede o precatório. Pelo nosso sistema, é o Presidente do Tribunal, a cuja disposição estão as verbas, quem expede a ordem de pagamento. Encerra-se a execução com a expedição do precatório. Esta é a função executória.
.......................................................
Não pode, assim, haver conflito de atribuições, porque compete ao Juiz da execução expedir o precatório. Essa função é jurisdicional, de execução. Compete ao Presidente do Tribunal determinar o pagamento: função administrativa de outro órgão. E ninguém quer invadir a atribuição de outro, para praticar-lhe a função.
Acontece que o Presidente do Tribunal, ao examinar formalmente o precatório, foi além da marca; passou a examinar o mérito do precatório. Terá cometido, como autoridade administrativa, uma demasia, que não se corrige através de conflito de jurisdição, nem de atribuição, que não há.” (grifei)
Esta Suprema Corte - ao rejeitar a caracterização jurisdicional da atividade do Presidente do Tribunal, em sede de processamento de precatório - teve o ensejo, uma vez mais, de enfatizar o caráter materialmente administrativo desse procedimento, acentuando, também em voto da lavra do saudoso Min. RODRIGUES ALCKMIN (RTJ 71/574-575), o que se segue:
“(...) Até 1934 os juízes expediam o precatório e se encerrava a fase judicial. A parte, com o precatório, ia ao Executivo, ao Ministério da Fazenda, solicitar o pagamento e ficava na dependência de ato do Ministro ou do Presidente da República, dependendo de solicitação de verba ao Congresso, com a conseqüência de que se uns recebiam, para outros o pagamento demorava dez, quinze, vinte anos, numa desigualdade gritante. Daí a Constituição de 1934 estabelecer o pagamento obedecendo à ordem cronológica.
Surgiu, daí, a necessidade de receber o Presidente do Tribunal os precatórios e fazer um exame destes, antes de solicitar a verba para os respectivos pagamentos. A rigor a atividade do Presidente do Tribunal, nos precatórios, consiste na solicitação de verba, e, quando a verba está à sua disposição, na expedição de ordem de pagamento.
Para solicitação de verba, não sendo evidentemente o Presidente do Tribunal um autômato, cabe um certo exame das formalidades extrínsecas do precatório.
.......................................................
Mas restringe-se o exame a essas formalidades extrínsecas e, quando muito, se estende a erro material, a erro aritmético ou de soma, isto é, àqueles erros que jamais transitam em julgado e que podem ser corrigidos a qualquer tempo. Rever, porém, o próprio cálculo já homologado por sentença, com a devida vênia, considero de todo inadmissível, num processo de precatório, onde se exerce atividade puramente administrativa. Não é possível que, depois de transitar em julgado na Primeira Instância, venha a Subprocuradoria da República ao Tribunal, num processo que não é jurisdicional, com impugnações, e reabra toda a discussão, o que tornava inúteis os recursos e implicava em desconhecimento da preclusão e da coisa julgada formal.
Tenho, assim, que a decisão de natureza exclusivamente administrativa do Presidente, ao atender o precatório, já não comportaria recursos de natureza processual. E por isso, liminarmente, afastaria o conhecimento deste extraordinário. Se houve erro material no precatório, é claro que a autoridade incumbida de dar-lhe cumprimento, em sede administrativa, poderia pedir ao signatário dele que o fizesse corrigir, como o poderia pedir qualquer interessado.
Mas o ofício ou a carta requisitória de pagamento não comportam, à evidência, pareceres, debates, decisões e recursos de natureza jurisdicional.” (grifei)
Vê-se, desse modo, que o Presidente do Tribunal, ao desempenhar as suas atribuições no processamento dos precatórios, atua como autoridade administrativa, não exercendo, em conseqüência, nesse estrito contexto procedimental, qualquer parcela de poder jurisdicional (PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 4/67-68, 1992, Saraiva).
Assentada, pois, tal premissa - que se sustenta no reconhecimento da natureza materialmente administrativa que caracteriza tanto o procedimento quanto a atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal em tema de precatório -, torna-se forçoso concluir que as decisões por ele proferidas com fundamento nessa específica competência apresentam-se desvestidas de conteúdo jurisdicional, circunstância esta que descaracteriza, por completo, a ocorrência do não cumprimento de “ordem judicial” prevista na descrição típica inscrita no inciso XIV do art. 1º do Decreto-lei nº 201/67.
É importante salientar, neste ponto, que essa compreensão da matéria – segundo a qual a configuração típica da conduta definida no inciso XIV do art. 1º do Decreto-lei nº 201/67 depende, para realizar-se, da existência de comando revestido de caráter jurisdicional (inocorrente em sede de mero processamento de precatórios judiciais) – decorre da própria jurisprudência, amplamente consolidada nesta Corte (Súmula 733/STF), que o Supremo Tribunal Federal firmou no exame do tema em questão, como o evidenciam os seguintes julgados:
“(...) 2. Recurso extraordinário: descabimento: natureza administrativa e, não jurisdicional, da decisão proferida pelo Presidente do Tribunal no processamento de precatório, bem como da proferida pelo mesmo Tribunal em agravo regimental contra aquela interposto: precedentes.”
(AI 437.009-AgR/PE, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DECISÃO HOMOLOGATÓRIA. PRECATÓRIO. ATIVIDADE ADMINISTRATIVA.
I. - A atividade do Presidente do Tribunal de Justiça desenvolvida no processamento de precatório tem natureza administrativa e não jurisdicional, não se qualificando, assim, como causa a desafiar o manejo do recurso extraordinário.
II. - Agravo não provido.”
(AI 409.331-AgR/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - grifei)
“Recurso extraordinário. Precatório. Atividade administrativa do Tribunal. Inexistência de causa como pressuposto do recurso extraordinário.
- O Plenário desta Corte, ao julgar o AGRRE 213.696, decidiu que a atividade do Presidente do Tribunal no processamento do precatório não é jurisdicional, mas administrativa, o mesmo ocorrendo com a decisão da Corte em agravo regimental contra despacho do Presidente nessa atividade. Inexiste, assim, o pressuposto do recurso extraordinário que é o da existência de causa decidida em única ou última instância por órgão do Poder Judiciário no exercício de função jurisdicional.
Recurso extraordinário não conhecido.”
(RE 338.849/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES - grifei)
“I - A atividade desenvolvida pelo Presidente do Tribunal, no processamento do precatório, não é jurisdicional, mas administrativa. Também é administrativa a decisão do Tribunal tomada em agravo regimental interposto contra despacho do Presidente na mencionada atividade. Precedente do STF: ADIn 1098-SP.
II - O recurso extraordinário pressupõe a existência de causa decidida em única ou última instância por órgão do Poder Judiciário no exercício de função jurisdicional. Proferida a decisão em sede administrativa, não há falar em causa. Não cabimento do recurso extraordinário.”
(RTJ 173/958-960, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Pleno - grifei)
“Recurso extraordinário. 2. Alegação de ofensa ao art. 100, da Constituição Federal. 3. Recurso interposto de decisão referente a processo de Precatório. Natureza administrativa. 4. ‘Não cabe recurso extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatórios já que esta tem natureza administrativa e não jurisdicional’. Precedentes da Corte. 5. Agravo regimental desprovido.”
(RE 205.182-AgR/PE, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - grifei)
“PRECATÓRIO - PROCESSO - NATUREZA. Uma vez expedido o precatório, a tramitação faz-se no âmbito simplesmente administrativo. Decisão proferida, ainda que originária de órgão Colegiado do Tribunal de Justiça, confirmando ou reformando ato do respectivo Presidente, não é impugnável via recurso extraordinário, por lhe faltar o cunho jurisdicional.”
(RE 215.208-AgR/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)
“PRECATÓRIO - OBJETO. Os preceitos constitucionais direcionam à liquidação dos débitos da Fazenda. O sistema de execução revelado pelos precatórios longe fica de implicar a perpetuação da relação jurídica devedor-credor.
PRECATÓRIO - TRAMITAÇÃO - REGÊNCIA. Observadas as balizas constitucionais e legais, cabe ao Tribunal, mediante dispositivos do Regimento, disciplinar a tramitação dos precatórios, a fim de que possam ser cumpridos.
PRECATÓRIO - TRAMITAÇÃO - CUMPRIMENTO - ATO DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL - NATUREZA. A ordem judicial de pagamento (§ 2º do artigo 100 da Constituição Federal), bem como os demais atos necessários a tal finalidade, concernem ao campo administrativo e não jurisdicional. A respaldá-la tem-se sempre uma sentença exeqüenda.
PRECATÓRIO - VALOR REAL - DISTINÇÃO DE TRATAMENTO. A Carta da República homenageia a igualação dos credores. Com ela colide norma no sentido da satisfação total do débito apenas quando situado em certa faixa quantitativa. (...).”
(ADI 1.098/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - grifei)
Registre-se, por necessário, que essa visão do tema é também consagrada na jurisprudência do E. Superior Tribunal de Justiça, cujos pronunciamentos, a tal propósito, têm ressaltado que “A função do Presidente do Tribunal, no processamento do requisitório de pagamento, é de índole essencialmente administrativa, não abrangendo as decisões ou recursos de natureza jurisdicional” (REsp 96.847/SP, Rel. Min. PEÇANHA MARTINS - grifei).
A natureza administrativa de tal decisão mostra-se relevante no caso presente, pois, dentre os elementos constitutivos do tipo definido no art. 1º, inciso XIV, do Decreto-lei nº 201/67, um há que, por específico, impõe que a ordem judicial não cumprida tenha emergido de uma causa, vale dizer, de um procedimento de índole jurisdicional.
Isso significa que não basta, para efeito de caracterização típica do delito ora em exame, que exista ordem emanada de autoridade judicial. Mostra-se igualmente necessário que essa autoridade tenha proferido, no âmbito de uma causa, decisão revestida de natureza jurisdicional. É que a locução constitucional “causa”, como se sabe, encerra um conteúdo específico e possui um sentido conceitual próprio.
Daí o correto magistério de WALDO FAZZIO JÚNIOR (“Responsabilidade Penal e Político-Administrativa de Prefeitos”, p. 131/132, 2007, Atlas):
“(...) A requisição de pagamento de precatório, contida no art. 100 da Constituição Federal, tem natureza administrativa e não judicial.
Em outras palavras, os atos do Presidente do Tribunal nos processos de precatório são de natureza administrativa. Como ato administrativo está sujeito ao controle pelas vias normais ou por intermédio da ação de mandado de segurança.
É o que fica demonstrado em acórdão do STJ, relatado pelo Ministro Felix Fischer, ao afirmar que
‘consoante entendimento do Pretório Excelso (AI 287779-SP Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 22-6-2006; AI 575298-SP Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28-4-2006; RE 220182-SP Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 15-12-2004; RE 228949-SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 15-12-2004 etc.; e, inclusive, o teor da Súmula nº 733 STF) e desta Corte (HC 34812-MG, Rel. Min. Paulo Medina, DJ de 28-2-2005; AgRg no Ag 663976-SP Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 13-2-2006; RMS 19027-RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 10-10-2005 etc.), a requisição de pagamento de precatório, constante do art. 100 e seus parágrafos da CF, tem natureza administrativa, e não judicial. Logo, no caso concreto, não se perfaz o tipo do art. 1º, XIV, do Decreto-lei nº 201-67, na modalidade ‘deixar de cumprir ordem judicial’.” (grifei)
Resulta claro, desse modo, que, não obstante judiciária a autoridade de que emanou o ato descumprido, ainda assim não se terá por caracterizada, no plano da tipicidade penal, a conduta prevista no inciso XIV do art. 1º do Decreto-lei nº 201/67, se a decisão não cumprida houver sido proferida, como parece suceder na espécie, em sede estritamente administrativa.
Sendo assim, em face das razões expostas, e em juízo de estrita delibação, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, o curso do Inquérito Policial nº 2009.04.00.007012-1/PR, ora em tramitação perante o E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Comunique-se, com urgência, encaminhando-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (REsp
1.177.681/PR), e ao E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Inquérito Policial nº 2009.04.00.007012-1/PR).
2. Solicitem-se, ao E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, informações que permitam esclarecer a fase em que se encontra, presentemente, o procedimento instaurado contra o ora paciente (Inquérito Policial nº 2009.04.00.007012-1/PR).
Publique-se.
Brasília, 1º de agosto de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
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Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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