AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 2008.71.02.004712-8/RS
AUTOR
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
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MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR
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RÉU
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UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃ
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DECISÃO (liminar/antecipação da tutela)
Vistos, etc.
O Ministério Público Militar ajuizou a presente ação civil pública, com pedido liminar, em face da União Federal, objetivando compelir a demandada, no âmbito das Forças Armadas, em todo o território nacional, a abster-se de utilizar militares subalternos em atividades de cunho eminentemente doméstico nas residências de seus oficiais superiores.
Segundo narrativa inicial, os militares subalternos, normalmente do grau "taifeiros", são designados para realizar tarefas de natureza preponderantemente domésticas nas residências, inclusive particulares, de autoridades de altas patentes das Forças Armadas, como generais, coronéis e tenentes-coronéis, havendo, até mesmo, normas internas autorizando a prática (Portaria Ministerial nº 585/88 do Exército e Portaria nº C-14/GM-6/98, da Aeronáutica). Defende a parte autora, em suma, que a situação fustigada afronta os princípios norteadores da Administração Pública, ao permitir que administradores se beneficiem com a utilização de servidores para executar atividades em benefício próprio, de interesse eminentemente particular, em suas residências, auferindo, dessa maneira, vantagem indevida, em detrimento do interesse público, configurando ato de improbidade que enseja enriquecimento ilícito, por representar forma de salário indireto, combatido pela Lei nº 8.429/92. Ainda, ressalta que os militares subalternos alocados nessas atividades são, por vezes, submetidos a constrangimentos, porquanto, em razão de prestarem serviço circunscrito às residências dos superiores, ficam subordinados diretamente à esposa da autoridade militar, cujas ponderações de índole eminentemente privada acabam, inadvertidamente, refletindo nas avaliações do militar, ensejando até mesmo retardo nas promoções da carreira e realização de inspeções de saúde mais frequentemente do que os demais integrantes das Forças Armadas, sem razão aparente.
Em liminar, a parte autora pretende seja vedado o trabalho de militares subalternos em lides domésticas nas residências de autoridades de alta patente, com efeitos incidentes sobre todo o território nacional. Rogou a intimação pessoal do Ministro da Defesa, a fixação de multa em caso de descumprimento da liminar, além da requisição de informações a autoridades e a oitiva de militares. Acostou documentação em expediente apartado, apensado aos presentes.
No prazo do art. 2º da Lei nº 8.437/92, a União manifestou-se (fls. 41/78). Em breve síntese, aduziu a ilegitimidade do Ministério Público Militar para intentar ação civil pública, bem como para atuar na defesa de interesses individuais. Sustentou ausente verossimilhança e risco concreto de dano, havendo, ainda, óbice legal à concessão de liminar contra a Fazenda Pública, mormente quando esgote, ainda que parcialmente, o objeto da ação, cujo pleito reflete indevida interferência na esfera de discricionariedade da Administração. Opôs-se à imputação de multa cominatória, alegando improfícua contra a Administração, devendo prevalecer o interesse público, notadamente em razão do valor excessivo pretendido. Propugnou o acolhimento da ilegitimidade ativa do MPM, a extinção do processo, o indeferimento da liminar e a não imposição de multa.
Reconhecida a ilegitimidade do Ministério Público Militar, foi o processo extinto sem resolução de mérito (fls. 79/80).
Em sede recursal, foi reconhecida a legitimidade ativa do Ministério Público Militar, desde que em litisconsórcio com o Ministério Público Federal, o qual requereu ingresso no feito, sendo, por conseguinte, determinado o prosseguimento da ação (fls. 139/143).
Interpostos recursos especial e extraordinário, foram digitalizados os autos para processamento daqueles e o processo físico retornou à origem (fls. 264), para prosseguimento.
Acolhendo pedido do Ministério Público Militar, foi retomado o processamento do feito.
O Ministério Público Federal aditou a inicial (fls. 276/278).
A União noticiou a solicitação de informações veiculada na via administrativa pelo MPM e pediu que requerimentos dessa natureza fossem obstados (fls. 280).
O MPM, por sua vez, pleiteou que as autoridades militares sejam instadas a prestar as informações solicitadas (fls. 291/293).
Vieram os autos conclusos.
Eis o sumário relato dos autos.
Decido.
Fundamentação
1 - PRELIMINARMENTE
1.1 - Competência do Juízo e extensão territorial dos efeitos da decisão
Invoca a União a incompetência absoluta do Juízo para apreciação de pedido com extensão de efeitos em todo o território nacional, porquanto tais reflexos só poderiam ocorrer se a ação tivesse sido proposta no foro da Capital ou do Distrito Federal, consoante dispõe o art. 93, II, do CDC c/c os arts. 2º e 16, da Lei nº 7.347/85.
A respeito, cabe transcrever o apontado dispositivo do Código Consumerista, in verbis:
Art. 93. Ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local:
I - no foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local;
II - no foro da Capital do Estado ou no do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional, aplicando-se as regras do Código de Processo civil aos casos de competência concorrente.
A norma, note-se, ressalva as demandas de competência da Justiça Federal dos critérios vertidos em seus incisos.
Sobre o tema, colaciono excerto de decisão monocrática proferida pelo Egrégio TRF da 4ª Região, cujos fundamentos adoto como razão de decidir, in verbis (grifos não constantes no original):
Ademais, Rodolfo de Camargo Mancuso, em "Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor", afirma que:
" (...) A mesma solução se dará no caso de ocorrer interesse da União, entidade autárquica ou empresa pública federal (CF, art. 109, I), quando a "vis attractiva" será da Justiça Federal de 1º grau. É para casos que tais a nota do "caput" do art. 93 do CDC: "Ressalvada a competência de justiça federal (...)"."
Nesses excertos, os autores deixam claro que o próprio dispositivo legal em estudo faz reserva à justiça federal. A competência da justiça federal, por seu turno, é expressão constitucional, não sendo cabível alterá-la por mecanismos infraconstitucionais. A expressão justiça local, escrita na lei, refere-se tão-somente à justiça estadual e à justiça do Distrito Federal, que, nesse contexto, equipara-se aos demais entes da federação. A ressalva à justiça federal retira do alcance dos incisos a aplicabilidade referente às causas relacionadas à União.
O legislador determinou a justiça competente. Ou seja, cabe à justiça federal o disposto na Magna Carta (arts. 106 a 110). Em contrapartida, não havendo interesse da União, a competência fica a cargo da justiça estadual. Nesse contexto, se o dano for de âmbito local, o julgamento da lide se dará no próprio lugar do dano. Entretanto, sendo o dano âmbito regional ou nacional, a competência é da capital do estado em que se der o dano ou a do Distrito Federal.
Depreende-se, então, que embora o dano combatido na referida ação civil pública seja de âmbito nacional, dever-se-á seguir o processamento dos autos na Subseção de Francisco Beltrão. A amplitude do dano importa, pois, somente à justiça estadual.
Outrossim, no tocante a eficácia nacional de sentença proferida em Subseção Federal do interior do Estado do Paraná, entendo que a União pode ser demandada em qualquer seção judiciária do território nacional, impedindo, assim, controles sobre a propositura e processamento da ação civil pública federal, vez que não há monopólios, seja da propositura da ação, seja de seu processamento e julgamento, sob pena de aferir ameaça ao princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CRFB). Tal princípio, sob a ótica da ação coletiva e da tutela dos direitos individuais e homogêneos, veio a atenuar a desigualdade entre as partes, ainda mais quando o litígio envolve consumidor e poder econômico.
Ademais, os juízes federais, bem como o Ministério Público Federal e os demais co-legitimados ativos, são heterogêneos na forma de interpretar o Direito. Assim, evita-se que um só juizo federal possa ditar os rumos das ações civis públicas contra a União. Tem-se, então, que a propositura de ação civil pública federal pode ser feita em qualquer município, desde que, no local, haja - ao menos - uma vara federal.
Nesta senda, conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal e deste Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é possível a atribuição de eficácia nacional à decisão proferida em ação civil pública, não se aplicando a limitação do artigo 16 da Lei nº 7.347/85 (redação da Lei nº 9.494/97), em virtude da natureza do direito pleiteado e das graves conseqüências da restrição espacial para outros bens jurídicos tutelados.
Em suma, entendo ser o juízo da Subseção Federal de Francisco Beltrão o competente para julgar a lide que ora apresentada, não sendo plausível a aplicabilidade do art. 93 CDC, a fim de justificar a remessa dos autos à capital Curitiba. (TRF da 4ª Região, A.I. nº 2009.04.00.003023-8, Terceira Turma, Rel. Juiz Federal Roger Raupp Rios, D.E.26/02/2009)
Assim, reconheço a competência do Juízo para processo e julgamento da presente ação, com projeção dos respectivos efeitos decisórios no âmbito de todo o território nacional.
1.2 - Legitimidade do Ministério Público: interesses defendidos nesta demanda
Equivoca-se a União quando alega que o Ministério Público está defendendo direitos individuais e disponíveis.
A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127).
A intervenção do Ministério Público, mediante o ajuizamento da ação civil pública, revela-se autorizada pelo art. 129, III, da Magna Carta, art. 25, IV, a, da Lei Orgânica do Ministério Público, art. 5º da Lei Complementar nº 75/93, bem como art. 5º da Lei nº 7.347/85. Tais dispositivos atribuem ao Parquet, por exemplo, o dever de fiscalizar a observância dos princípios constitucionais concernentes ao sistema tributário, à seguridade social, bem como a proteção do patrimônio público e de outros interesses individuais indisponíveis homogêneos, sociais, difusos e coletivos. Vale dizer: faculta-se ao Parquet promover ação coletiva, nesses casos, sempre que haja interesse social para tanto.
Contrariamente ao que defende a União, a presente lide não objetiva conferir proteção a direito individuais. Embora sejam identificáveis os servidores militares atingíveis pela decisão judicial, evidente que o foco da demanda é a defesa do interesse público, em razão da alocação de militares para prestar serviços de cunho eminentemente doméstico, no âmbito residencial de seus superiores, para atender a interesses familiares privativos. Deflui, disso, a legitimidade ativa ad causam.
Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, verbis:
PROCESSUAL CIVIL - SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO - JULGAMENTO EXTRA PETITA - SÚMULA 282/STF - LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
1. Inviável a esta Corte emitir juízo de valor sobre tese que não foi debatida na instância de origem. Aplicação da Súmula 282/STF.
2. O Ministério Público está legitimado a defender direitos individuais homogêneos quando esses direitos têm repercussão no interesse público.
3. O parquet é parte legítima para propor ação civil pública objetivando a tutela do direito de mutuários vinculados ao Sistema Financeiro de Habitação.
4. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido.
(REsp 1126708/PB, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/09/2009, DJe 25/09/2009)
Portanto, os autores detêm legitimidade para a propositura da presente ação coletiva.
1.3 - Legitimidade do Ministério Público Militar: ações coletivas
A legitimidade ativa do Ministério Público Militar, em litisconsórcio facultativo com o Ministério Público Federal, foi pronunciada pelo Juízo ad quem, embora ainda pendam recursos sobre a matéria nos Tribunais superiores.
Nesse norte, a questão ora resta superada, subsistindo a legitimação ativa do Ministério Público Militar no feito.
2 - MEDIDA LIMINAR
2.1 - Requisitos da medida de urgência
É sabido que, para o deferimento da antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, é mister que o Juiz se convença da verossimilhança da alegação, com base na prova inequívoca do direito do autor, além de se fazer necessária a presença do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, conforme dispõe o artigo 273, caput e inciso I, do CPC.
O deferimento de tutela antecipatória demanda, assim, a presença concomitante dos requisitos de verossimilhança das alegações e perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, acaso não prestada de imediato a tutela pretendida pela parte.
Quanto ao primeiro requisito, é oportuno trazer à colação o ensinamento do eminente Ministro do STJ, Teori Albino Zavascki (grifei):
Atento, certamente, à gravidade do ato que opera restrições a direitos fundamentais, estabeleceu o legislador, como pressupostos genéricos, indispensáveis a qualquer das espécies de antecipação de tutela, que haja (a) prova inequívoca e (b) verossimilhança da alegação. O "fumus boni iuris" deverá estar especialmente qualificado: exige-se que os fatos, examinados com base na prova já carreada, possam ser tidos como fatos certos. Em outras palavras: diferentemente do que ocorre no processo cautelar (onde há juízo de plausibilidade quanto ao direito e de probabilidade quanto aos fatos alegados), a antecipação da tutela de mérito supõe verossimilhança quanto ao fundamento de direito, que decorre de (relativa) certeza quanto à verdade dos fatos. (Antecipação da Tutela, p. 75/76, Saraiva, 1999, 2ª edição).
Com relação ao perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, sua exegese deve ser feita não só à luz de situações de efetivo dano, mas, sim, aliada ao conceito de urgência na prestação jurisdicional. Nesse sentido, segue o ilustre jurista (grifei):
(...) o risco de dano irreparável ou de difícil reparação e que enseja a antecipação assecuratória é o risco concreto (e não o hipotético ou eventual), atual (ou seja, o que se apresenta iminente no curso do processo) e grave (vale dizer, o potencialmente apto a fazer perecer ou a prejudicar o direito afirmado pela parte). Se o risco, mesmo grave, não é iminente, não se justifica a antecipação de tutela. É conseqüência lógica do princípio da necessidade antes mencionado." (Teori Albino Zavascki, ob. cit., p. 77).
Assim, a concessão da tutela antecipada, in casu, além da prova inequívoca do alegado (do que deriva a verossimilhança), pressupõe a demonstração do perigo nos parâmetros apontados acima.
Vale mencionar, ainda, que, em se tratando de ações civis públicas, a concessão de liminar encontra respaldo no art. 12 da Lei n. 7.347/85.
2.2 - Caso concreto
2.2.1 - Linhas introdutórias
Antes de adentrar no exame dos fatos, releva fixar, desde já, a função conferida às Forças Armadas pela Constituição Federal. Opta-se por tal ponto de partida em razão do princípio da supremacia da Constituição, segundo o qual o ápice do ordenamento jurídico é a Magna Carta, a cujas disposições todos devem submeter-se.
Nesse passo, transcreve-se o art. 142 da Constituição Federal:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
O texto é claríssimo no atinente à finalidade institucional das Forças Armadas: defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Perceba-se que, neste aspecto, a Constituição é taxativa, não permitindo, via de consequência, destinação diversa às Forças Armadas. Em verdade, conferir tratamento estrito às funções institucionais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica significa garantir que as Forças Armadas não sejam empregadas para fins circunstanciais ou políticos.
Sendo assim, importa verificar se as funções taxativas constitucionalmente traçadas para as Forças Armadas contemplam a utilização do serviço militar em atividades de cunho estritamente doméstico nas residências de oficiais superiores.
2.2.2 - Verossimilhança das alegações
Liminarmente, pretendem os autores seja vedado o trabalho de militares subalternos em tarefas domésticas realizadas no âmbito residencial de autoridades militares, com efeitos incidentes sobre todo o território nacional.
Adiante-se, desde já, que existem elementos comprovando os fatos narrados na inicial, os quais aparentemente ofendem diversos princípios constitucionais e infraconstitucionais e, por isso, devem ser suspensos de imediato. Nesse exame perfunctório, os fatos relatados serão conectados apenas aos princípios constitucionais explícitos do Direito Administrativo, deixando-se para o julgamento final a análise de eventual desatendimento a princípios implícitos e/ou infraconstitucionais.
(a) Princípio da legalidade
Refere-se, aqui, à legalidade de que trata o art. 37 da Constituição Federal. Tal primado, em sua fórmula prevalente, "exprime a exigência de que Administração tenha habilitação legal para adotar atos e medidas; desse modo, a Administração poderá justificar cada uma de suas decisões por uma disposição legal; exige-se base legal no exercício dos seus poderes" (Odete Medauer, Direito Administrativo Moderno, p. 129, Revista dos Tribunais, 2010, 14ª ed.).
Ainda sobre o princípio da legalidade, prossegue a doutrinadora:
O sentido do princípio da legalidade não se exaure com o significado de habilitação legal. Este deve ser combinado com o primeiro significado, com o sentido de ser vedado à Administração editar atos ou tomar medidas contrárias às normas do ordenamento. A Administração, no desempenho de suas atividades, tem o dever de respeitar todas as normas do ordenamento (op. cit., p. 129)
Conclui-se, portanto, que além de a Administração Pública estar obrigada a respaldar suas ações em dispositivos legais, ao editar atos ou tomar medidas, deve fazê-lo em respeito ao ordenamento jurídico como um todo.
Com base nessas premissas, pode-se concluir que, ao menos em tese, os fatos narrados na peça portal violam a legalidade sob dois aspectos: (1) não possuem habilitação legal; (2) não guardam coerência com o ordenamento jurídico.
Segue explicação.
(1) Relativamente ao primeiro aspecto, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello que "a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar" (Curso de Direito Administrativo, p. 109, Moderna, 2007, 23ª ed.).
Na hipótese vertente, Exército e Aeronáutica valeram-se de Portarias para "respaldar" a utilização do serviço de taifeiros nas residências de autoridades militares em atividades puramente domésticas. Tais Portarias, todavia, aparentemente não possuem base em lei (são normas autônomas), do que se pode inferir que lhes falta habilitação legal, um dos aspectos do princípio da legalidade.
Ainda que seja considerado que referidas Portarias são internas, dirigidas não ao administrado, mas aos servidores militares, mesmo assim haverá afronta à legalidade, eis que sua edição não encontra autorização no art. 87 da CF. Veja-se a redação desse dispositivo constitucional:
Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:
I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;
II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;
III - apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão no Ministério;
IV - praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República.
Perceba-se que nenhum dos incisos do art. 87 permite a edição das Portarias em questão, as quais verdadeiramente impuseram nova atribuição aos taifeiros, diversa (e contrária) daquelas previstas no art. 142 do texto constitucional.
Em relação à Marinha, vale ressaltar que sequer possuía norma interna autorizando o uso dos serviços de taifeiros para atividades domésticas nas residências de autoridades militares, muito embora o fizessem na prática.
(2) Quanto ao segundo aspecto do princípio da legalidade, gize-se que as Portarias em comento - bem como os atos concretos que lhe são relacionados - são contrárias ao ordenamento jurídico. Apenas a título exemplificativo, citam-se alguns dispositivos legais diretamente afrontados: art. 1º, parágrafo primeiro da LC n. 97/99, art. 5º da Lei n. 6.880/1980 e art. 9º, IV, da Lei n. 8.429/92, verbis:
LC n. 97/99
Art. 1o As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
Parágrafo único. Sem comprometimento de sua destinação constitucional, cabe também às Forças Armadas o cumprimento das atribuições subsidiárias explicitadas nesta Lei Complementar.
Lei n. 6.880/80
Art. 5º A carreira militar é caracterizada por atividade continuada e inteiramente devotada às finalidades precípuas das Forças Armadas, denominada atividade militar.
Lei n. 8.429/92
Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente:
(...)
IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades;
À evidência, existe total discrepância entre a missão das Forças Armadas (fixada taxativamente no texto constitucional e repetida na Lei Complementar e Leis Ordinárias supracitadas) e as atividades referidas na inicial desta ação, denotando, assim, a ilegalidade das condutas perpetradas pelas autoridades militares.
É necessário ressaltar, por fim, que a exata compreensão do princípio da legalidade não exclui o exercício de atuação discricionária do administrador, levando-se em conta a conveniência e a oportunidade do interesse público. O ato discricionário é praticado nos limites da lei; o ato arbitrário é contrário à lei.
Os atos em questão, todavia, não se amoldam à figura da discricionariedade, já que contrários ao ordenamento, como visto acima. Assim, ao determinar a cessação dos serviços domésticos realizados por taifeiros em residências de autoridades militares, estará o Poder Judiciário levando a efeito o controle da legalidade (e não de discricionariedade) dos atos do Administrador Público. Portanto, não há que se falar em indevida ingerência de um Poder no outro.
Em verdade, ainda que estivéssemos diante de atos discricionários, mesmo assim não se poderia alegar que tais são imunes ao controle jurisdicional. Como bem alertou Hely Lopes Meirelles, "erro é considerar-se o ato discricionário imune à apreciação judicial, pois só a Justiça poderá dizer da legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de opção do agente administrativo. O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo do administrador pelo juiz. Mas pode sempre proclamar as nulidades e coibir os abusos da Administração" (Curso de Direito Administrativo, p. 104/105, Malheiros, 2000, 12ª ed.).
(b) Princípio da impessoalidade
O primado da impessoalidade também está inserido no rol dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública. Odete Medauer tece as seguintes considerações a respeito:
Com o princípio da impessoalidade, a Constituição visa obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos de vingança, represálias, nepotismo, favorecimentos diversos (...). Busca, desse modo, que predomine o sentido de função, isto é, a idéia de que os poderes atribuídos finalizam-se ao interesse de toda a coletividade, portanto a resultados desconectados de razões pessoais. (op. cit., p. 130)
Há, nos autos, elementos indicando o benefício de determinado número de pessoas (militares do mais alto escalão) em desfavor do interesse da coletividade. Melhor explicando, a fim de possibilitar que certas autoridades militares sejam servidas em sua residência (note-se que a benesse é individualizada, em favor de pessoas ocupantes de cargos definidos), retiram-se taifeiros da organização militar, local em que realmente estariam prestando serviço à coletividade,
Dito de outro modo, se os taifeiros referidos nesta ação exercessem suas atividades junto ao quartel (organizando o rancho, preparando o alimento para os demais colegas, controlando a dispensa, etc) seus serviços efetivamente estariam inseridos na função institucional das Forças Armadas, prevista no art. 142 da CF. Todavia, ao exercerem atividades eminentemente domésticas em residências de autoridades militares previamente definidas, acabam favorecendo número determinado de pessoas, em detrimento de toda a sociedade.
Vale lembrar, ainda, que os taifeiros, muito embora prestem serviço nas residências dos oficiais superiores, são remunerados, é óbvio, pelos cofres da União, o que parece ser uma forma de remuneração indireta das autoridades militares, já que não necessitam contratar empregados para a realização das tarefas domésticas.
Por fim, cabe mencionar que há indícios, nos autos, de que os taifeiros "alocados" nas residências dos oficiais têm maior dificuldade de promoção, são obrigados a realizar exames médicos mais frequentemente, além de não possuírem jornada de trabalho. Tais elementos, ao menos em tese, confirmam que, para a Administração Militar, o único objetivo de seus préstimos é servir ao superior e sua família. Melhor explicando, conquanto remunerados pela União, não prestam serviços à coletividade, o que, repise-se, configura grave afronta ao princípio constitucional da impessoalidade.
(c) Princípio da moralidade
Inserto também no rol do art. 37 da CF, tal primado é de difícil conceituação. Odete Medauer tenta delimitá-lo a partir da concepção da imoralidade administrativa. Veja-se:
Em geral, a percepção da imoralidade administrativa ocorre no enfoque contextual, ou melhor, ao se considerar o contexto em que a decisão foi ou será tomada. A decisão, de regra, destoa do contexto, e do conjunto de regras de conduta extraídas da disciplina geral norteadora da Administração. Exemplo: em momento de crise financeira, numa época de redução de mordomias, num período de agravamento de problemas sociais, configura imoralidade efetuar gastos com aquisições de automóveis de luxo para "servir" autoridades, mesmo que tal aquisição de revista de legalidade (op. cit,. p. 131).
Note-se que o exemplo citado pela doutrinadora guarda, ao que parece, certa semelhança com o caso sub judice, em que há dispêndio de dinheiro público (pagamento dos soldos dos taifeiros) para o fim único de servir militares do alto escalão.
Não releva, outrossim, a alegação de que a conduta em referência tenha previsão em norma. De um lado, porque a previsão em norma (no caso, Portarias) não significa atendimento ao princípio da legalidade, como já explicado nesta decisão e, de outro, porque um ato pode atender ao princípio da legalidade e, mesmo assim, ser imoral.
(d) Principio da publicidade
A publicidade traduz-se em relevante pilar da democracia. Sem ela, não há controle dos cidadãos sobre o governo. Sem esse controle, o "poder do povo" perde sua razão existencial.
Na condição de premissa fundamental do Estado Democrático, o princípio da publicidade vigora sobre toda a atividade administrativa.
Fácil perceber, portanto, que a Portaria n. C-14/GM6/98, da Aeronáutica, viola frontalmente o princípio da publicidade, dado o seu status confidencial (fls. 24/26 dos autos anexos).
(e) Princípio da eficiência
Acerca da eficiência, leciona Odete Medauer:
O vocábulo liga-se à idéia de ação, para produzir resultado de modo rápido e preciso. Associado à Administração Pública, o princípio da eficiência determina que a Administração deve agir, de modo rápido e preciso, para produzir resultados que satisfaçam as necessidades da população (op. cit., p. 133).
Neste ponto, importa novamente cotejar a missão constitucional das Forças Armadas com os fatos narrados na inicial. Ora, se a Marinha, o Exército e a Aeronáutica possuem, como precípua função, defender a Pátria, garantir os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a lei e a ordem, torna-se evidente que a utilização de recurso humano militar no âmbito residencial das autoridades, em serviços eminentemente domésticos, prejudica a eficiência do serviço militar lato sensu. De fato, se os recursos humanos e materiais das Forças Armadas fossem integralmente empregados para o desiderato constitucional em comento, o serviço castrense seria, por motivos lógicos, mais efetivo.
2.2.3 - Periculum in mora
O periculum in mora é evidente, na medida em que os procedimentos inquinados pela inobservância aos princípios constitucionais estão em curso, despendendo recursos do erário.
2.2.4 - Reversibilidade da medida
Dispõe o § 2º do art. 273 do CPC:
§ 2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado
Ainda, prevê o § 3º do art. 1º da Lei nº 8.437/92:
§ 3° Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação.
Examinando o objeto da pretensão apresentada, não verifico, de plano, a irreversibilidade da medida. Na hipótese de cassação da liminar ou julgamento de improcedência da ação, os taifeiros poderão ser redirecionados às residências das autoridades militares, para que lá prestem seus serviços.
2.2.5 - Linhas conclusivas
Tendo-se em conta que há elementos confirmando a afronta aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública, as alegações expendidas pela parte autora são verossímeis. Verificado, também, o perigo de demora e a reversibilidade da medida, há que se conceder a liminar pretendida, a fim de que as Forças Armadas deixem de fazer uso de militares subalternos (especialmente taifeiros) em tarefas de caráter eminentemente doméstico nas residências de seus superiores, em todo o território nacional.
O atendimento do pleito traz, como efeito, a suspensão da Portaria Ministerial 585/88 (Exército) e da Portaria C-14/GC-6/98 (Aeronáutica), normas internas que respaldariam, ao menos no âmbito do Exército e da Aeronáutica, a conduta atacada na presente ação.
3 - OUTRAS PROVIDÊNCIAS
Neste tópico, serão examinados os requerimentos pendentes de apreciação, não vinculados ao pedido liminar.
3.1 - Requerimentos formulados pelo MPM
O Ministério Público Militar, na inicial, formulou as seguintes postulações, relativamente à produção de prova documental: (a) requisição, ao Presidente da Câmara dos Deputados, de cópia integral da Proposição RIC-741/1991, que possui a seguinte ementa: "Solicita informações ao Ministério da Aeronáutica sobre o número e lotação de taifeiros do Ministério"; (b) requisição, à Diretoria de Avaliação e Promoções do Exército, de informações sobre a média de tempo de efetivo serviço na data de promoção dos cabos e taifeiros, desde 01/12/2004.
Posteriormente, em petição juntada às fls. 291/293, requereu fosse solicitado às Forças Armadas o seguinte: (c) dados das autoridades militares e civis pertencentes à estrutura organizacional da Marinha que tenham militares subalternos realizando tarefas domésticas em suas residências; (d) dados dos militares subalternos que realizam tarefas domésticas nas residências das autoridades supracitadas.
Os requerimentos mencionados nas letras (a), (c) e (d) foram abrangidos pelos requerimentos formulados pelo MPF, e serão a seguir analisados.
O pleito de que trata a letra (b) segue deferido, considerando sua pertinência com os fundamentos de fato expendidos na inicial.
3.2 - Requerimento formulado pelo MPF
Em aditamento à inicial (fls. 276/278), o MPF requereu: (a) alteração do valor da causa para R$ 100.000,00; (b) expedição de ofício aos Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, ao Ministro-Presidente do STM e ao Ministro da Defesa para que informem dados das autoridades militares e civis que utilizam militares subalternos em suas residências, para fins eminentemente domésticos, bem como os dados dos militares subalternos submetidos a tal espécie de atividade.
(a) O valor da causa deve corresponder ao proveito econômico buscado na demanda. O MPF, ao postular a alteração do valor atribuído à causa para R$ 100.000,00, não justificou como chegou ao montante indicado, ou seja, qual a relação entre a quantia apontada (R$ 10.000,00) e o proveito econômico buscado com a presente lide. Deverá fazê-lo, então, no prazo de 10 (dez) dias.
(b) No tangente à expedição de ofícios, a postulação segue deferida, exatamente como formulada.
3.3 - Requerimento da União
A União, na petição da fl. 280, pediu que cessem as requisições extrajudiciais, pelo MPM, de documentos e informações referentes aos fatos tratados na presente ação civil pública. Tal requerimento perdeu o objeto, em face da manifestação do MPM juntada às fls. 291/293.
Decisão
Ante o exposto, reconheço a legitimidade ativa ad causam da parte autora e, no mérito, defiro o pedido de antecipação de tutela, para determinar à União que as Forças Armadas deixem de fazer uso de militares subalternos (especialmente taifeiros) em tarefas de caráter eminentemente doméstico nas residências de seus superiores, em todo o território nacional. Em consequência, fica suspensa a Portaria Ministerial 585/88 (Exército) e a Portaria C-14/GC-6/98 (Aeronáutica).
As medidas ora determinadas deverão ser cumpridas no prazo de 90 (noventa) dias, devendo a União Federal, nos 10 (dez) dias subsequentes ao transcurso daquele prazo, informar e comprovar nos autos as providências adotadas, tendentes ao cumprimento da medida liminar, sob pena de arbitramento de multa diária.
1. Intimem-se as partes, cientificando o MPF de que deverá justificar o valor atribuído à causa (item 3.2, letra "a" supra). Descabe oficiar pessoalmente ao Ministro da Defesa, porquanto o respectivo Ministério constitui órgão da Administração Pública Direta, devidamente representada pela Advocacia Geral da União.
2. Após, oficie-se exatamente conforme requerido pelo MPM, à fl. 37, letra "g". Oficie-se, ainda, conforme postulado pelo MPF, à fl. 278, item "c" e subitens "ci" e "cii".
3. Na sequência, cite-se a ré para, querendo, contestar, no prazo de 60 (sessenta dias), sob pena de revelia (CPC 322).
4. Em havendo arguição, pela parte ré, de preliminar (dentre as enumeradas no art. 301 do CPC) ou algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito pleiteado, abra-se vista ao(à,s) autor(a,s,es) para réplica, pelo prazo de 10 (dez) dias (CPC, art. 327).
5. Ausentes tais alegações ou após o prazo da réplica, independentemente de aproveitamento, intimem-se as partes para que especifiquem, justificadamente, no prazo comum de 05 (cinco) dias, as provas que pretendem produzir.
Cópia desta decisão, instruída com as peças pertinentes, pode servir como mandado/ofício de intimação/citação.
Santa Maria, 27 de maio de 2011.
SIMONE BARBISAN FORTES
Juíza Federal Titular
Documento eletrônico assinado por SIMONE BARBISAN FORTES, Juíza Federal Titular, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.jfrs.jus.br/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador 6874969v4 e, se solicitado, do código CRC 76547F74. |
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Simone Barbisan Fortes |
Data e Hora: |
03/06/2011 16:19 |
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