Ext 1.085 Petição avulsa/República Italiana
Rcl 11.243/República Italiana
Redator para o acórdão: Min. Luiz Fux
A presente reclamação foi proposta pela República Italiana em face de ato do Presidente da República Federativa do Brasil, com fulcro no art. 102, l, da Constituição, para a garantia da autoridade da decisão prolatada por esta Corte na Extradição nº 1.085. Julga-se, em conjunto, Petição Avulsa nos autos da Extradição nº 1.085, no qual se requer o relaxamento da prisão preventiva do extraditando ** e a sua imediata soltura, em cumprimento à decisão do Presidente da República, visto que a decisão presidencial estaria em conformidade com o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália e com o acórdão proferido por essa Corte.
Na oportunidade do julgamento da Extradição, após declarar a nulidade do ato administrativo proferido pelo Ministro da Justiça, que concedeu ao extraditando a condição de refugiado político, este Pretório Excelso entendeu que os crimes cometidos pelo cidadão italiano não teriam conotação política, e, portanto, deferiu o pedido de extradição.
Devo, aqui, me abster por completo de analisar os atos delituosos que supostamente foram praticados por **. Conquanto paire razoável dúvida sobre a participação do ora extraditando nos homicídios de Antonio Santoro, Andrea Campagna, Lino Sabbadin e Pierluigi Terregiani, entre 6 de junho de 1977 e 19 de abril de 1979, e sobre a lisura do processo criminal que deu origem ao título executivo penal que a República Italiana pretende fazer cumprir, entendo que tais argumentos restaram preclusos quando do julgamento da Extradição nº 1.085.
Inclusive, não cumpre a esta Corte revolver todos os acórdãos que deram origem à condenação de ** na Itália para pretender agravar sua situação jurídica, na medida em que, além da prefalada preclusão, isto importaria verdadeira utilização de prova emprestada sem a observância do Contraditório – prova ilícita, portanto.
O caso sob análise não se refere ao passado ou futuro de um homem, mas à Soberania Nacional frente à irresignação da República Italiana.
A questão que se coloca, no momento, diz respeito à vinculação do Presidente da República à decisão do Supremo Tribunal Federal. Noutras palavras, uma vez deferida a Extradição pelo Judiciário, estaria o Chefe do Executivo obrigado a entregar o extraditando?
Essa indagação já foi enfrentada pela Corte, em Questão de Ordem resolvida no aludido processo extradicional, onde se entendeu que “a decisão de deferimento da extradição não vincula o Presidente da República, nos termos dos votos proferidos pelos Senhores Ministros Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Marco Aurélio e Eros Grau” (Tribunal Pleno, 16/12/2009).
Do voto proferido pelo Ministro Eros Grau na aludida Questão de Ordem, colhe-se que Sua Excelência entendeu que “não se trata (...) de ato discricionário, porém, de ato regrado, ato vinculado ao que dispõe o tratado”. Tal afirmação deve ser considerada à luz do voto pronunciado pelo mesmo Ministro na questão principal da Extradição nº 1.085, onde se lê: “O conceito de ato vinculado que o relator tomou como premissa (...) é, no entanto, excessivamente rigoroso. (...) o conceito que se adotou de ato vinculado, excessivamente rigoroso, exclui qualquer possibilidade de interpretação/aplicação, pelo Poder Executivo, da noção de fundado temor de perseguição” (p. 522).
De modo mais enfático, o Min. Joaquim Barbosa afirmou: “o Chefe de Estado pode, não obstante a decisão favorável deste Tribunal, simplesmente decidir não extraditar o estrangeiro procurado por outro país” (p. 225). Unissonamente, registrou o Min. Marco Aurélio:
“A decisão do Supremo é constitutiva negativa no tocante à entrega, quando assentada a ilegitimidade do pedido de extradição. Se declarada a legitimidade do pleito, abre-se salutar oportunidade ao Presidente da República não de modificar o pronunciamento judicial, mas de, à frente da política brasileira no campo internacional, entregar, ou não, o estrangeiro” (p. 372-373)
“Mas ressalto que é cedo, muito cedo, para a abordagem da matéria em termos de definição.
Ao menos em relação ao Presidente da República, já que não o fez o Tribunal quanto ao ato do Ministro de Estado da Justiça – de refúgio –, aguardemos, em primeiro lugar, a assunção de postura por Sua Excelência, a prática do ato, a um só tempo, de Governo e de Estado.” (p. 375)
Do cotejo dos votos em comento, resulta que a Questão de Ordem foi julgada no sentido de que o Presidente da República não está jungido à decisão do Supremo Tribunal Federal, e, de acordo com o Min. Eros Grau, conquanto seu ato seja vinculado aos termos do Tratado, lhe resta razoável margem interpretativa para definir se há, atualmente, fundado temor de perseguição contra o extraditando.
O Tratado a ser interpretado in casu, existente entre a República Italiana e a República Federativa do Brasil, foi internalizado pelo decreto n. 863 de 1993, e celebra, em seu art. I, o compromisso de extradição, de acordo com os casos delimitados nos arts. II, III e IV. Nestes dispositivos são fixadas as situações autorizadoras de extradição, bem como se destacam proibições. Consta, ainda, no texto do tratado a previsão de entrega do extraditando no prazo de 20 dias, a contar da decisão (art. XIV).
Artigo I. Cada uma das partes obriga-se a entregar à outra, mediante solicitação, segundo as normas e condições estabelecidas no presente tratado, as pessoas que se encontrem em seu território e que sejam procuradas pelas autoridades judiciais da parte requerente, para serem submetidas a processo penal ou para a execução de uma pena restritiva de liberdade pessoal.
Artigo II. Casos que autorizam a Extradição. 1. Será concedida a extradição por fatos que, segundo a lei de ambas as partes, constituírem crimes puníveis com uma pena privativa de liberdade pessoal cuja duração máxima prevista for superior a um ano, ou mais grave. 2. Ademais, se a extradição for solicitada para execução de uma pena, será necessário que o período da pena ainda por cumprir seja superior a nove meses. 3. Quando o pedido de extradição referir-se a mais de um crime e algum ou alguns deles não atenderem às condições previstas no primeiro parágrafo, a extradição, se concedida por um crime que preencha tais condições, poderá ser estendida também para os demais. Ademais, quando a extradição for solicitada para a execução de penas privativas de liberdade pessoal e aplicada por crimes diversos, será concedida se o total de penas ainda por cumprir for superior a 9 meses. 4. Em matéria de taxas, impostos, alfândega e câmbio, a extradição não poderá ser negada pelo fato da lei da parte requerida não prever o mesmo tipo de tributo ou obrigação, ou não contemplar a mesma disciplina em matéria fiscal, alfandegária ou cambial que a lei da parte requerente.
Artigo III. Casos de Recusa da Extradição. 1. A Extradição não será concedida: a) se, pelo mesmo fato, a pessoa reclamada estiver sendo submetida a processo penal, ou já tiver sido julgada pelas autoridades judiciárias da parte requerida; b) se, na ocasião do recebimento do pedido, segundo a lei de uma das partes, houver ocorrido prescrição do crime ou da pena; c) se o fato pelo qual é pedida tiver sido objeto de anistia na parte requerida, e estiver sob a jurisdição penal desta; d) se a pessoa reclamada tiver sido ou vier a ser submetida a julgamento por um tribunal de exceção na parte requerente; e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela parte requerida, crime político; f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados; g) se o fato pelo qual é pedida constituir, segundo a lei da parte requerida, crime exclusivamente militar. Para fins deste tratado, consideram-se exclusivamente militares os crimes previstos e puníveis pela lei militar, que não constituam crimes de direito comum.
Artigo IV. Pena de Morte. A Extradição tampouco será concedida quando a infração determinante do pedido de extradição for punível com pena de morte. A parte requerida poderá condicionar a extradição a garantia prévia, dada pela parte requerente, e tida como suficiente pela parte requerida, de que tal pena não será imposta, e, caso já o tenha sido, não será executada.
Artigo XIV. Decisão e Entrega. 1. A parte requerida informará sem demora à parte requerente sua decisão quanto ao pedido de extradição. A recusa, mesmo parcial, deverá ser motivada. 2. Se a extradição for concedida, a parte requerida informará à parte requerente, especificando o lugar da entrega e a data a partir da qual esta poderá ter lugar, dando também informações precisas sobre as limitações da liberdade pessoal que a pessoa reclamada tiver sofrido em decorrência da extradição. 3. O prazo para a entrega será de 20 dias a partir da data mencionada no parágrafo anterior. Mediante solicitação fundamentada da parte requerente, poderá ser prorrogado por mais 20 dias. 4. A decisão de concessão da extradição perderá a eficácia se, no prazo determinado, a parte requerente não preceder à retirada do extraditando. Neste caso, este será posto em liberdade, e a parte requerida poderá recusar-se a extraditá-lo pelo mesmo motivo.(Grifo nosso)
Consigno, no ponto, trecho do Voto do Ministro Eros Grau que demonstra sua inequívoca posição sobre o tema:
Tem-se bem claro, aí, que o Supremo Tribunal Federal autoriza, ou não, a extradição. Há de fazê-lo, para autorizar ou não autorizar a extradição, observadas as regras do tratado e as leis. Mas quem defere ou recusa a extradição é o Presidente da República, a quem incumbe manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII, da Constituição), presentando a soberania nacional [veja-se os incisos XVIII, XIX e XX desse mesmo artigo 84].
(...) Daí que o Presidente da República está ou não obrigado a deferir extradição autorizada pelo tribunal nos termos do Tratado.
(...) Pode recusá-la em algumas hipóteses que, seguramente, fora de qualquer dúvida, não são examinadas, nem examináveis, pelo tribunal, as descritas na alínea f do seu Artigo 3.1. Tanto é assim que o Artigo 14 1 dispõe que a recusa da extradição pela Parte requerida – e a ‘Parte requerida’, repito, é presentada pelo Presidente da República – ‘mesmo parcial, deverá ser motivada’.
Pois esse Artigo 3.1, alínea I do tratado estabelece que a extradição não será concedida se a Parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que sua situação [isto é, da pessoa reclamada] ‘possa ser agravada’ – vale dizer, afetada – mercê de condição pessoal. A Parte requerida [isto é, o Presidente da República] poderá, nessa hipótese, não conceder a extradição.
(...) Aqui se trata de requisitos de caráter puramente subjetivos da Parte requerida, de conteúdo indeterminado, que não se pode contestar. Exatamente o que a doutrina chama de ‘conceito indeterminado’.
Nesses limites, nos termos do Tratado, o Presidente da República deferirá, ou não, a extradição autorizada pelo tribunal, sem que com isso esteja a desafiar sua decisão.
Esse ponto é muito importante estabelecer porque o tratado é que abre a possibilidade de a extradição ser recusada, sem que isso – eu digo e insisto – represente, da parte do Presidente da República, qualquer desafio à decisão do Tribunal.
Voto nesse sentido. O que obriga o Presidente da República é o Tratado de Extradição celebrado entre o Brasil e a Itália, aprovado pelo decreto 863/93. Retorno ao voto de Victor Nunes Leal: ‘Mesmo que o Tribunal consinta na extradição — por ser regular o pedido —, a obrigação, do Executivo, de efetivá-la, ‘só existe nos limites do direito convencional’.
E, nesse caso, a mim parece que o Presidente da República pode perfeitamente, sem desafiar a decisão do Supremo Tribunal, decidir no sentido do que dispõe o art. 3º do Tratado, recusando a extradição. Depende única e exclusivamente do Presidente da República.
Verifica-se, desde logo, a existência de questão preliminar, cuja análise prévia se impõe. O art. 560 do CPC, aplicável subsidiariamente ao rito da Reclamação, dispõe que “Qualquer questão preliminar suscitada no julgamento será decidida antes do mérito, deste não se conhecendo se incompatível com a decisão daquela”.
No caso em exame, o acolhimento da preliminar impede o conhecimento das questões de mérito. Antes de deliberar sobre a existência de poderes discricionários do Presidente da República em matéria de extradição, ou mesmo se essa autoridade se manteve nos lindes da decisão proferida pelo Colegiado anteriormente – o que seria o mérito da Reclamação –, é necessário definir se o ato do Chefe de Estado é insindicável pelo Judiciário, em abstrato.
Caso, numa análise genérica, se entenda que o ato do Presidente da República não pode ser reexaminado por esta Corte, claro está que ele não descumpriu qualquer determinação judicial, não sendo cabível, portanto, a Reclamação.
O art. 1º da Constituição dispõe que um dos Fundamentos do Estado Brasileiro é a sua soberania – que significa o poder político supremo dentro do território. A soberania se projeta, no plano internacional, para as relações da República Federativa do Brasil com outros Estados Soberanos. O art. 4º da Carta Magna completa o ideário da nação através de outro princípio fundamental, qual o de que nas suas relações internacionais o princípio prevalente é o da independência nacional e quem tem o dever de fazê-la valer é o Presidente da República, nos termos de sua competência Constitucional, prevista no art. 84, o qual prevê, dentre outras atribuições, a de manter relações entre os Estados estrangeiros, celebrar e denunciar tratados, etc.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I - independência nacional;
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;
Um Estado que não tem soberania não é um Estado; nele não se identifica uma nação, nem um território, senão um “campo de refugiados”. Todo Estado almeja o reconhecimento expressivo de sua soberania, assim como as pessoas incapazes lutam pelo reconhecimento de sua capacidade.
A soberania brasileira, hoje, alcança patamares, os quais inserem a República Federativa do Brasil na constelação das nações mais desenvolvidas. Hodiernamente se cogita da sua inserção no Conselho de Segurança das Nações Unidas; o Brasil é instado a atos solidários transnacionais, como no caso do Haiti; atua como mediador em conflitos mundiais e é uma grande esperança do mundo. Nos dias atuais, – e, aqui, me valho do lema utilizado pela nação economicamente mais desenvolvida no mundo, “yes we can” – nós, do Brasil, é que podemos.
A soberania, dicotomizada em interna e externa, tem na primeira a exteriorização da vontade popular (art. 14 da CRFB) através dos representantes do povo no parlamento e no governo; na segunda, a sua expressão no plano internacional, por meio do Presidente da República.
No campo da soberania, relativamente à extradição, é assente que o ato de entrega do extraditando é exclusivo, da competência indeclinável do Presidente da República. Isso está consagrado na Constituição, nas Leis, nos Tratados e na própria decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal.
Entretanto, duas questões se põem; a saber: ou o Presidente cumpre o Tratado, no uso de sua competência exclusiva, e tollitur quaestio; ou o Presidente não cumpre o Tratado, e com isso cria uma lide entre o Estado brasileiro e o Estado italiano. Nesta última hipótese, a competência, com absoluta segurança, não é do Supremo Tribunal Federal, que não exerce soberania internacional, máxime para impor a vontade da República Italiana ao Chefe de Estado brasileiro – tal competência é da Corte Internacional de Haia, nos termos do art. 92 da Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco em 26 de junho de 1945.
Por isso, o papel do Supremo Tribunal Federal, como órgão juridicamente existente apenas no âmbito do direito interno, é o de examinar apenas a legalidade da extradição, é dizer, seus aspectos formais, nos termos do art. 83 da Lei 6.815/80 (“Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão”). A previsão é clara ao determinar a esta Corte tão somente o poder e o dever de analisar o pedido de extradição de acordo com os quesitos apontados nos arts. 77 e 78 do mesmo diploma legal, além dos demais elementos previstos em tratado.
Enfaticamente, assevera o art. 84, VII, da Carta Magna que cabe ao Presidente da República “manter relações com Estados estrangeiros”. Portanto, uma análise meritória do pedido extradicional pelo Judiciário geraria um conflito institucional, ao arrepio do aludido comando expresso da Constituição, bem como do princípio da separação dos Poderes (art. 2º CRFB). Neste diapasão, em sede doutrinária, preleciona o Min. Gilmar Mendes, verbis: “o procedimento adotado pela legislação brasileira quanto ao processo de extradição é o da chamada contenciosidade limitada (sistema belga), que não contempla a discussão sobre o mérito da acusação” (MENDES, Gilmar et alii. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 727).
O sistema da contenciosidade limitada existe no Brasil desde a edição da Lei n. 2.416 de 1911, a primeira que estabeleceu um processo extradicional com efetiva participação do Poder Judiciário, pois determinava que “nenhum pedido de extradição será atendido sem prévio pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, de cuja decisão não caberá recurso” (Art. 10, da Lei n. 2.416 de 1911). A partir deste marco, a extradição passou a contar com um processo misto e complexo, de atuação dos Poderes Executivo e Judiciário. Os regulamentos posteriores – Decreto-Lei n. 394 de 1938, Decreto-Lei n. 941 de 1969 e a atual Lei n. 6.815 de 1980 – mantiveram a participação do Poder Judiciário, especificamente do Supremo Tribunal Federal, mas para um “controle de legalidade” da entrega do extraditando. O objetivo, assim, desde o princípio, era o de resguardar as garantias dos indivíduos extraditados, ou seja, um modo de proteção dos direitos humanos.
No sistema vigente, denominado “sistema belga”, a decisão do Supremo Tribunal Federal só vincula o Presidente da República quando reconhecida alguma irregularidade no processo extradicional, de modo a impedir a remessa do extraditando ao arrepio do ordenamento jurídico. Nunca, contudo, para determinar semelhante remessa. A explicação para a dicotomia é simples: o Judiciário deve ser o último guardião dos direitos fundamentais de um indivíduo, seja ele nacional ou estrangeiro, mas não dos interesses políticos de Estados alienígenas, os quais devem entabular entendimentos com o Chefe de Estado, em vez de tentar impor sua vontade através dos Tribunais internos.
O Supremo cumpre a sua parte – afere os requisitos legais e constitucionais, definindo se é possível ou não extraditar o súdito alienígena, e, em caso afirmativo, precisamente por não dispor de soberania nacional, entrega o extraditando aos critérios internacionais do Presidente da República. Diversos fatores, de natureza estritamente política, podem interferir na decisão soberana do Chefe de Estado. Pode ocorrer que as relações entre as Partes não estejam harmônicas, em virtude de o outro Estado recusar as extradições solicitadas pela República Federativa do Brasil; podem concorrer, enfim, questões outras, as quais não podem ser sindicadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Ao julgar a extradição no sentido de que é possível a entrega do cidadão estrangeiro, por inexistirem óbices, o Pretório Excelso functus officio est – cumpre e acaba a sua função jurisdicional. Quando muito, o que se pode admitir é que, caso a Corte assente a inextraditabilidade, por estar presente violação à Constituição – v. g., é brasileiro, o crime é político, será aplicada pena desumana –, e o Presidente da República, contrariamente à decisão do Supremo, decida extraditar o indivíduo, seria, em tese, cabível a Reclamação.
A Lei, a jurisprudência e a doutrina não discrepam desse entendimento, que conduz ao acolhimento da preliminar de descabimento da Reclamação.
Assim entendeu esta Corte, por unanimidade, na Extradição nº 1.114, assentando que:
“O Supremo Tribunal limita-se a analisar a legalidade e a procedência do pedido de extradição (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, art. 207; Constituição da República, art. 102, Inc. I, alínea g; e Lei n. 6.815/80, art. 83): indeferido o pedido, deixa-se de constituir o título jurídico sem o qual o Presidente da República não pode efetivar a extradição; se deferida, a entrega do súdito ao Estado requerente fica a critério discricionário do Presidente da República.”
(Ext 1114, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 12/06/2008, DJe-157 DIVULG 21-08-2008 PUBLIC 22-08-2008 EMENT VOL-02329-01 PP-00011 RTJ VOL-00206-01 PP-00016 RT v. 97, n. 877, 2008, p. 487-492 LEXSTF v. 30, n. 360, 2008, p. 265-276)
Nada diverso ocorreu na Extradição nº 1.085, cujo acórdão, sucintamente, assenta, verbis: “acordam os Ministros, por maioria, deferir o pedido de extradição” e “por maioria, reconhecer que a decisão de deferimento da extradição não vincula o Presidente da República”. Observe-se que, à luz da principiologia constitucional, não exigiu a Corte a imediata entrega do cidadão italiano, até porque, se o fizesse, sua decisão careceria de executoriedade.
Como a análise meritória, conforme já referido, é vedada em sede de processo de extradição, forçoso concluir que a conclusão a que chegou o Pretório Excelso, pela inexistência de caráter político nos crimes cometidos, deve ser compreendida como mero conselho ou admoestação. Esta a conclusão necessária em vista da já aludida falta de executoriedade do decisum, pois a Constituição, no seu artigo 84, VII, confere apenas ao Presidente da República a prerrogativa de entregar o estrangeiro ao Estado solicitante.
Malgrado tenha este Supremo Tribunal anulado a decisão do Ministro da Justiça que concedeu refúgio político ao extraditando, não pode, agora, substituir-se ao Chefe de Estado e determinar a remessa de ** às autoridades italianas. Uma decisão com comando semelhante, exigindo que o Presidente da República proceda à extradição, seria tão aberrante e tão contrária aos cânones constitucionais quanto um imaginário acórdão que determinasse a secessão de um Estado-membro. Além disso, trata-se de novo ato, de autoridade distinta, não sujeito à anulação da concessão de refúgio pelo Ministro da Justiça, nulidade essa reconhecida – incidentalmente, é de se ressaltar – no bojo da Extradição nº 1.085.
Em face do princípio da separação dos Poderes (art. 2º CRFB), não compete ao Supremo Tribunal Federal rever o mérito de decisão do Presidente da República, enquanto no exercício da soberania do país, tendo em vista que o texto constitucional atribui a este, e não ao Egrégio Tribunal, a função de representação externa do país. Assim, ao se considerar os princípios da separação dos poderes e da soberania, bem como as previsões constitucionais de competência privativa do Presidente da República (especialmente o tantas vezes citado art. 84, inciso VII), o ato presidencial objeto da presente Reclamação é constitucional e legal.
Deveras, a decisão presidencial que negou a extradição é autêntico ato de soberania, esta definida por Marie-Joëlle Redor como o “poder que possui o Estado para impor sua vontade aos indivíduos que vivem sobre seu território” (Tradução livre do texto: “le pouvoir qu’a l’Etat d’imposer sa volonté aux individus vivant sur son territoire”. De L’Etat Legal a L’Etat de Droit. L’Evolution des Conceptions de la Doctrine Publiciste Française. 1879-1914. Presses Universitaires d’Aix-Marseille, p. 61). O conceito clássico de soberania, consignado no tratado de Paz de Vestfália de 1648, atrela a soberania ao Estado territorial, em caráter supremo visando a garantir a paz e a liberdade de seus súditos. Os documentos internacionais, como a Carta da ONU e a Carta da OEA, prevêem o respeito à soberania (art. 1º, da Carta da ONU e art. 3º, alínea b, da Carta da OEA).
Ora, o ato de extraditar consiste em “ato de vontade soberana de um Estado que entrega à justiça repressiva de outro Estado um indivíduo, por este perseguido e reclamado, como acusado ou já condenado por determinado fato sujeito à aplicação da lei penal” (RODRIGUES, Manuel Coelho. A Extradição no Direito Brasileiro e na Legislação Comparada. Tomo I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1930. p. 3). Trata-se de relação de direito internacional, promovida por intermédio dos Chefes de Estado, com base em tratados internacionais ou, na ausência destes, através de promessas de reciprocidade. O descumprimento dessa obrigação de direito internacional gera consequências também internacionais, mas nunca no plano interno. Desse modo, não pode o Judiciário compelir o Chefe de Estado a adotar tal ou qual posição, na medida em que não lhe cabe interpretar uma norma de direito internacional, sem repercussões no ordenamento interno.
“[O] atendimento do pedido [extradicional], que significa a concessão da extradição, não é ato do Poder Judiciário e, sim, do Poder Executivo. O Supremo Tribunal Federal, a rigor, não concede a extradição: autoriza o Poder Executivo a que o faça” – é a lição de Gilda Russomano (A extradição no direito internacional e no direito brasileiro. 3ª Ed. São Paulo: RT, 1981. p 138-139). Este já era o entendimento defendido por Anor Butler Maciel, na vigência da Constituição de 1946, ao tratar da natureza jurídica da decisão judiciária no processo extradicional:
Quem concede a extradição não é o Poder Judiciário, mas sim o Poder Executivo, nos têrmos do art. 7º, uma vez que o têrmo Gôverno se refere, obviamente, ao Poder Executivo e é o Chefe dêsse Poder quem mantém relações com os Estados estrangeiros, nos têrmos da Constituição Federal, art. 87, nº VI.
(MACIEL, Anor Butler. Extradição Internacional. Brasília: Imprensa Nacional; 1957. p. 144)
Melhor definindo, a extradição não é ato de nenhum Poder do Estado, mas da República Federativa do Brasil, pessoa jurídica de direito público externo, representada na pessoa de seu Chefe de Estado, o Presidente da República.
Conforme já assentado, a Constituição de 1988 estabelece que a soberania deve ser exercida, em âmbito interno, pelos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e, no plano internacional, pelo Chefe de Estado.
A impossibilidade de vincular o Presidente da República à decisão do Supremo Tribunal Federal se evidencia quando recordamos que inexiste um conceito rígido e absoluto de crime político. Na percuciente observação de Celso de Albuquerque Mello, “[é] mais fácil dizer o que não é crime político do que definir este. (...) a discussão do que venha a ser crime político é tão ampla que se pode dizer que só será crime político o que o STF desejar (...). A conceituação de um crime como político é, por sua vez, um ato político em si mesmo, com toda a relatividade da política.” (Extradição. Algumas observações. In: O Direito Internacional Contemporâneo. Org: Carmen Tiburcio; Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 222-223).
Neste ponto, à luz da lição narrada, cumpre definir a quem compete exercer o juízo de valor sobre a existência, ou não, de perseguição política em face do referido extraditando. Por se tratar de relação eminentemente internacional, o diálogo entre os Estados requerente e requerido deve ser feito através das autoridades que representam tais pessoas jurídicas de direito público externo. No Brasil, como é sabido, o Chefe de Estado é o Presidente da República. Ao decidir sobre a extradição de um estrangeiro, o Presidente não age como Chefe do Poder Executivo Federal (art. 76 da CRFB), mas sim como representante da República Federativa do Brasil.
Compete ao Presidente da República, dentro da liberdade interpretativa que decorre de suas atribuições de Chefe de Estado, para caracterizar a natureza dos delitos, apreciar o contexto político atual e as possíveis perseguições contra o extraditando relativas ao presente, o que é permitido pelo texto do Tratado firmado (art. III, 1, f). O Supremo Tribunal Federal, além de não dispor de competência constitucional para proceder a semelhante exame, carece de capacidade institucional para tanto. Aplicável, aqui, a noção de “institutional capacities”, cunhada por Cass Sunstein e Adrian Vermeule (Interpretation and Institutions. U Chicago Law & Economics, Olin Working Paper, Nº 156, 2002; U Chicago Public Law Research Paper nº 28. Disponível em: , acesso em 27/05/2011) – o Judiciário não foi projetado constitucionalmente para tomar decisões políticas na esfera internacional, cabendo tal papel ao Presidente da República, eleito democraticamente e com legitimidade para defender os interesses do Estado no exterior.
Não por acaso, diretamente subordinado ao Presidente da República está o Ministério das Relações Exteriores, com profissionais capacitados para informá-lo a respeito de todos os elementos de política internacional necessários à tomada desta sorte de decisão. Com efeito, é o Presidente da República que se encontra com Chefes de Estados estrangeiros, que tem experiência em planejar suas decisões com base na geografia política e que, portanto, tem maior capacidade para prever as consequências políticas das decisões do Brasil no plano internacional.
Expressamente consignou-se, quando da análise da questão principal da Extradição nº 1.085, o precedente da Extradição nº 272, o “caso Franz Paul Stangl”, onde se entendeu que “a efetivação, pelo governo, da entrega do extraditando, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal, depende do Direito Internacional Convencional” (Relator(a): Min. VICTOR NUNES, Tribunal Pleno, julgado em 07/06/1967, DJ 20-12-1967 PP-04385 EMENT VOL-00714-01 PP-00020 RTJ VOL-00043-01 PP-00168).
Não impressiona, nem constitui óbice, o fato de se ter afirmado durante os debates no julgamento da Extradição nº 1.085 que, embora a prerrogativa caiba ao Presidente da República, o ato é vinculado aos termos do tratado. O pós-positivismo jurídico, conforme argutamente aponta Gustavo Binenbojm, “não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade” (Uma Teoria do Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 208). Esses diferentes graus de vinculação ao ordenamento se pautam por uma escala decrescente de densidade normativa vinculativa, a saber: (i) atos vinculados por regras; (ii) atos vinculados por conceitos jurídicos indeterminados; e (iii) atos vinculados diretamente por princípios.
O ato de extradição ora analisado situa-se na segunda escala de vinculação: a vinculação a conceitos jurídicos indeterminados – ou, na expressão do Ministro Eros Grau, “noções”. Isso porque o artigo III, 1, f, do Tratado suprarreferido estabelece hipóteses nas quais é possível que um Estado-parte rejeite a entrega pleiteada pelo outro, todas expressas por termos jurídicos indefinidos, os quais servirão de base para que o intérprete, de posse de suas pré-compreensões, faça surgir a norma aplicável ao caso. Eis o teor do dispositivo:
Artigo III
Casos de Recusa da Extradição
1. A Extradição não será concedida:
[...]
f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados;
Precisamente neste inciso se baseou o Presidente da República para negar a entrega do indivíduo extraditando. A cláusula, mais que mera convenção entre os Estados contratantes, é expressão do respeito suprapositivo aos direitos fundamentais dos refugiados.
Regra de vital importância na matéria consiste no chamado non-refoulement, segundo o qual é vedada a entrega do solicitante de refúgio a um Estado quando houver ameaça de lesão aos direitos fundamentais do indivíduo. O non-refoulement é uma norma de Direito Internacional, considerada ius cogens, e está prevista no art. 33 da Convenção de Genebra de 1951, sobre o Estatuto dos Refugiados, ratificada pela República Federativa do Brasil, verbis:
Artigo 33 – Proibição de expulsão ou de rechaço
(1) Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas.
A extradição, instrumento de cooperação jurídica internacional entre Estados, sofre limitação por parte do Direito dos refugiados. Hans Kelsen doutrinava que o status jurídico concedido aos estrangeiros não pode ser inferior a um standard mínimo de civilização (Principles of International Law. 2ª ed. New York: Halt-Rinehart and Winston, 1967. p. 366). Malgrado nenhum Estado seja obrigado a admitir a entrada de estrangeiros em seu território, cabe-lhe zelar pela garantia dos direitos fundamentais de qualquer ser humano. O art. 5º, LII, da Constituição da República, nesta esteira, reza que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”. O fundamento dessa limitação é humanitário, e por isso entende-se que “na problemática dos refugiados, o interesse daquele que busca refúgio ou asilo como ser humano deve prevalecer sobre eventuais conflitos de interesse entre Estados” (M. SYRAN, Claudena. “The International Refugee Regime: The Historical and Contemporary Context of International Responses to Asylum Problems” In: LOESCHER, Gil. Refugges and the Asylum Dilemma in the West. Pennsylvania, The Pennsylvania State Univesity Press, 1992, p. 15).
O ato de concessão de refúgio, desta feita, não acarreta abalo nas relações internacionais com o Estado que requer a extradição. Entendendo existir “razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição”, qualquer dos sujeitos de Direito Internacional que pactuaram o Tratado Extradicional pode negar a entrega do súdito da parte requerente.
Conclui-se do exposto que, ainda que se entenda que o ato do Presidente da República é vinculado aos termos do Tratado de Extradição, apenas ele, como Chefe de Estado, dispõe de capacidade institucional para avaliar a existência dos requisitos autorizadores da não entrega, especialmente a expressão “atos de perseguição” – trata-se de ato político-administrativo vinculado a conceitos jurídicos indeterminados. Nas palavras de Adrian Vermeule, “a revisão judicial da constitucionalidade de textos legais e os processos decisórios judiciais destinados à interpretação constitucional devem ser realizados à luz das capacidades institucionais” (Tradução livre do texto: “Judicial review of statutes for constitutionality and judicial decision-procedures for constitutional interpretation must be assessed in light of institutional capacities”. Judging under Uncertainty: an institutional theory of legal interpretation. London: Harvard University Press, 2006. p. 230). Não é da alçada do Judiciário envolver-se na política externa do país.
No mesmo trabalho citado alhures, o saudoso prof. Celso Mello faz um cotejo entre o sistema extradicional brasileiro e o de outros países, para, em seguida, atribuir ao Presidente da República a palavra final sobre a remessa do cidadão estrangeiro:
“Na Inglaterra, o Poder Judiciário aprecia o mérito. O Executivo é um executor do Judiciário.
O STF apreciará a legalidade do pedido (...). Cabe ao Poder Executivo decidir da extradição ou não de um indivíduo. (...)
Ele pode recusar mesmo quando o STF tenha declarado a legalidade e a procedência do pedido. (...)
A doutrina tem afirmado que a extradição no Brasil é um ato misto, isto é, judiciário e administrativo. Entretanto, é o Executivo que tem atuação decisiva. É preciso lembrar que a extradição está vinculada à política externa, que é da competência do Poder Executivo.”
(Op. cit. p. 226-227) (grifei)
Conclui-se, dessa maneira, que a existência de Tratado de extradição entre Brasil e Itália não faz surgir uma obrigação de direito interno, que possa ser imposta judicialmente ao Executivo, mas apenas uma obrigação internacional, com consequências estritamente políticas para as relações entre os Estados. Precisamente por isso, reza o art. 76 da Lei 6.815/80 que “A extradição poderá – e não ‘deverá’ – ser concedida quando o governo requerente se fundamentar em tratado”. Esse juízo de conveniência da extradição caberá, repita-se, ao Presidente da República.
As premissas aqui utilizadas foram reproduzidas por esta Corte na Extradição nº 855 (Ministro Relator Celso de Mello, DJ de 1º.7.2006), onde se entendeu que a decisão extradicional é conferida ao “Presidente da República, com apoio em juízo discricionário, de caráter eminentemente político, fundado em razões de oportunidade, de conveniência e/ou de utilidade (...) na condição de Chefe de Estado”. Noutra oportunidade, analisando pedido de extradição fundado em Tratado entre Brasil e Argentina, o Pretório Excelso decidiu que “caberá ao presidente da República avaliar a conveniência e a oportunidade da entrega do estrangeiro” (EXT. n. 985, Min. Rel. Joaquim Barbosa, DJ de 18.8.2006).
No direito comparado, essa discricionariedade de entrega do extraditando – em casos recentes – foi devidamente considerada. São de referência obrigatória, no ponto, os pedidos de extradição negados pelos Chefes de Estado da França e da Inglaterra nos célebres casos Petrella e Pinochet, respectivamente.
No caso Pinochet, a Espanha requereu sua extradição ao Reino Unido, para ser julgado pelos delitos de tortura, conspiração com tortura, manutenção de reféns, conspiração para tomar reféns e conspiração para cometer homicídio, todos eles perpetrados contra inimigos políticos enquanto o extraditando ainda era Chefe de Estado do Chile, nos anos 1970 e 80, durante o chamado Plan Códor. Além disso, a Argentina requeria a extradição de Pinochet por participação em assassinato. Em 2 de março de 2000, a Inglaterra negou o pedido de extradição de Pinochet, conquanto estivesse ele livre para deixar o Reino Unido, em fundamentos semelhantes aos apresentados no ato presidencial em análise nestes autos: por razões de saúde, de integridade física e mental, de humanidade, o que impossibilitaria o extraditando de suportar um julgamento (Cf. GONZÁLEZ-OLAECHEA, Javier Valle-Riestra. La extradición y los delitos políticos. The Global Law Collection. Navarra (Espanha): Editorial Aranzadi, 2006).
Em 2008, em caso precisamente idêntico ao dos autos, o Presidente francês, Nicolas Sarkozy, negou o pedido de extradição de Marina Petrella à Itália, com fundamento em razões humanitárias, devido ao seu débil estado de saúde e ao risco que se apresentava à sua integridade física e mental. Petrella foi condenada em 1992 à prisão perpétua, por crimes perpetrados no mesmo período (décadas de 70 e 80). A extradição de Petrella, que era revolucionária ao lado do ora extraditando **, dentre outros, passou, igualmente, pelo crivo jurisdicional. A Corte de Apelação de Versalhes decidiu favoravelmente à extradição de Petrella, sendo que, seguidamente, a Corte de Cassação e o Conselho de Estado francês confirmaram a decisão. Todavia, mesmo após a chancela jurisdicional, o Presidente da França determinou a não extradição de Petrella.
Assim, é de se repetir, a decisão de entrega do extraditando é um ato de soberania a ser exercido, em última palavra, pelo Chefe de Estado. No Brasil, assim como em outros países, a atribuição é atrelada, historicamente, ao Presidente da República, responsável pela política internacional, pelas relações com outros Estados soberanos.
O provimento jurisdicional que pretende a República Italiana é vedado pela Constituição, seja porque seu art. 4º, I e V, estabelece que a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelos princípios da independência nacional e da igualdade entre os Estados, seja pelo fato de, no supracitado art. 84, VII, conferir apenas ao Presidente da República a função de manter relações com Estados estrangeiros.
Ex positis, conclui-se pelo não conhecimento da Reclamação, em razão do não cabimento desta medida processual, com a consequente manutenção da decisão da Presidência da República impgunada. Nada obstante, impõe-se o provimento da Petição Avulsa nos autos da Extradição 1.085, para deferir o pedido de imediata liberação do extraditando, se por al não estiver preso, em razão da não subsistência de motivos para a manutenção da prisão.
É como voto.
*acórdão pendente de publicação
** nome suprimido pelo Informativo
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STJ - Superior Tribunal de Justiça. STF - Constitucional e Internacional. Ext 1.085 Petição avulsa/República Italiana - Rcl 11.243/República Italiana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 nov 2011, 21:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/jurisprudências/27038/stf-constitucional-e-internacional-ext-1-085-peticao-avulsa-republica-italiana-rcl-11-243-republica-italiana. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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