“Ainda que agrade a traição, ao traidor tem-se aversão” (Cervantes, Dom Quixote, Parte Primeira, Cap. XXXIX).
Recentemente foi promulgada a Lei nº. 12.529/2011, estruturando o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispondo sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; no seu art. 86, estabelece-se que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica poderá celebrar acordo de leniência com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, “desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na infração; e II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação”. Tal acordo, segundo o art. 87 da mesma lei, nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e os tipificados no art. 288 do Código Penal, “determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência.” Cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade nos referidos crimes.
Evidentemente não é a primeira norma jurídica brasileira que trata deste tipo de delação premiada. No ano de 1990, mais precisamente no dia 26 de julho, publicava-se no Diário Oficial da União o texto de uma nova lei, vinda como uma resposta aos anseios populares de diminuição da violência urbana que, já àquela época, beirava a insuportabilidade (tal como hoje, nada obstante os vários anos de sua vigência). Sancionada pelo então Presidente da República tentava em seus treze artigos (dois destes vetados) resolver por intermédio do Direito Penal um problema que definitivamente não é dele.[1] Exasperaram penas de determinados crimes, impossibilitando-se, também, a concessão de benefícios aos sentenciados, tais como a anistia, a graça e o indulto, além de proibir o gozo de direitos subjetivos individuais (mesmo estando presentes os requisitos específicos para a sua fruição) como a fiança, tudo a atender “ao contagiante clima psicológico de pavor criado pelos meios de comunicação social e aos interesses imediatos de extratos sociais privilegiados”, como acentuou Alberto Silva Franco.[2] Como não poderia deixar de ser inúmeras vozes levantaram-se contra a sua edição, taxando-a de inoportuna e, sob certos aspectos, inconstitucional. Estamos falando da Lei n. 8.072/90 que dispõe “sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5o., XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências”, cujos defeitos não iremos aqui abordar, pois não é este o nosso escopo no momento.[3]
Trataremos, tão-somente, de um instituto por ela trazido: a delação premiada (ou, na expressão feliz de José Carlos Dias, extorsão premiada), como causa obrigatória de diminuição da pena em favor de autor, co-autor ou partícipe nos crimes de extorsão mediante sequestro e quadrilha ou bando (este último quando a societas sceleris tiver sido formada com o intuito de praticar os crimes considerados hediondos e outros a eles assemelhados).
Já no dia 03 de maio do ano de 1995 foi sancionada a Lei nº. 9.034/95 dispondo “sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.” Tal como a anterior esta lei, criada para definir e regular “meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando“, também considera causa compulsória de diminuição da pena a delação de um dos participantes na organização criminosa. Aliás, na lei dos crimes hediondos o legislador foi mais explícito e utilizou o verbo denunciar como sinônimo de delação, enquanto que nesta segunda norma preferiu a expressão colaboração espontânea, como que para escamotear a vergonhosa presença da traição premiada em um diploma legal.
Em 19 de julho de 1995 foi sancionada a Lei nº. 9.080/95, prevendo, igualmente, a delação como prêmio ao co-autor ou partícipe de crime cometido contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo quando cometidos em quadrilha ou co-autoria. Agora se preferiu a expressão confissão espontânea, o que resulta no mesmo. Em 1998, surgiu entre nós a Lei n. 9.613/98, a chamada lei de “lavagem de dinheiro”, disciplinando, outrossim, a diminuição de pena para o “colaborador espontâneo”. Temos, ainda, como exemplo a Lei nº. 9.807/99, de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, que também prevê a delação premiada, além da Lei nº. 8.137/90 (art 16, parágrafo único). Faz-se referência também à Lei nº. 11.343/06 (a Lei de Drogas), que no art. 41 dispõe de forma semelhante e ao art. 159, § 4º. do Código Penal.
Pois bem; “no espectro do recrudescimento da legislação processual penal, visto como um reflexo da expansão tresloucada da cultura da emergência, ganhou vigor a figura da delação premiada, sobretudo com a sua propagação no processo criminal italiano e estadunidense.”[4]
Segundo Damásio de Jesus, “a origem da "delação premiada" no Direito brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, cuja parte criminal, constante do Livro V, vigorou de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. O Título VI do "Código Filipino", que definia o crime de "Lesa Magestade" (sic), tratava da "delação premiada" no item 12; o Título CXVI, por sua vez, cuidava especificamente do tema, sob a rubrica "Como se perdoará aos malfeitores que derem outros á prisão" e tinha abrangência, inclusive, para premiar, com o perdão, criminosos delatores de delitos alheios.”[5] Já na Inquisição, “um filho delator não incorre nas penas fulminadas por direito contra os filhos dos hereges e este é o prêmio pela sua delação. In proemium delationis.”[6]
Alguns doutrinadores costumam distinguir a delação[7] como aberta ou fechada, aduzindo que naquela primeira o delator aparece e se identifica, inclusive favorecendo-se de alguma forma com o seu gesto, seja na redução da pena, seja no recebimento de recompensa pecuniária ou mesmo com o perdão judicial; nesta, ao contrário, o delator se assombra no manto do anonimato “propiciando auxílio desinteressado e sem qualquer perigo“, como assevera Paulo Lúcio Nogueira.[8]
Afora questões de natureza prática como, por exemplo, a inutilidade, no Brasil, desse instituto por conta, principalmente, do fato de que o nosso Estado não tem condições de garantir a integridade física do delator criminis nem a de sua família, o que serviria como elemento desencorajador para a delação, aspectos outros, estes de natureza ético-moral informam a profunda e irremediável infelicidade cometida mais uma vez pelo legislador brasileiro, muito demagogo e pouco cuidadoso quando se trata dos aspectos jurídicos de seus respectivos projetos de lei.
Sem dúvidas, “o tema da delação premiada desafia diversos questionamentos: desde sua conveniência político-criminal, passando por sua apreciação sob o ponto de vista da quebra da ética ínsita ao proceder dentro de um Estado Democrático de Direito, ou pelas questões relativas ao seu valor probatório(1), até sua natureza jurídico-penal, sua função processual penal e as implicações daí decorrentes para o postulado do devido processo legal em nosso direito positivo. Nesta oportunidade, passaremos os olhos por estes três últimos aspectos quanto à delação que tem por objeto a identificação dos demais coautores ou partícipes.”[9] Como diz Hassemer, “não é permitido ao Estado utilizar os meios empregados pelos criminosos, se não quer perder, por razões simbólicas e práticas, a sua superioridade moral.”[10]
Também a propósito, veja-se a opinião de João Baptista Herkenhoff: “A meu ver, a delação premiada associa criminosos e autoridades, num pacto macabro. De um lado, esse expediente pode revelar tessituras reais do mundo do crime. Numa outra vertente, a delação que emerge do mundo do crime, quando falsa, pode enredar, como vítimas, justamente aquelas pessoas que estejam incomodando ou combatendo o crime. Na maioria das situações, creio que o uso da delação premiada tem pequena eficácia, uma vez que a prova relevante, no Direito Penal moderno, é a prova pericial, técnica, científica, e não a prova testemunhal e muito menos o testemunho pouco confiável de pessoas condenadas pela Justiça. Ao premiar a delação, o Estado eleva ao grau de virtude a traição. Em pesquisa sócio-jurídica que realizamos, publicada em livro, constatei que, entre os presos, o companheirismo e a solidariedade granjeiam respeito, enquanto a delação é considerada uma conduta abjeta (Crime, Tratamento sem Prisão, Livraria do Advogado Editora, página 98). Então, é de se perguntar: Pode o Estado ter menos ética do que os cidadãos que o Estado encarcera? Pode o Estado barganhar vantagens para o preso em troca de atitudes que o degradam, que o violentam, e alcançam, de soslaio, a autoridade estatal?”[11]
Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos se, respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo. Que não se corra o perigo, já advertido e vislumbrado pelo poeta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale quando afirma que o “Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a.“[12]
Diante dessa sombria constatação, como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo? Como afirma Paulo Cláudio Tovo, “a delação premiada de comparsa nos parece uma violação ética com perigosas conseqüências no mundo do crime (...). Este não é o verdadeiro caminho da Justiça, importa, isto sim, na confissão que o Estado não tem capacidade científica de chegar à verdade.”[13]
É certo que em outras legislações, inclusive em países desenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, por exemplo, a americana), a figura da delatio já existe há algum tempo (diga-se de passagem, assegurando-se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) e na Itália (pattegiamento), entre outros países. São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois desprovidos de qualquer caráter moral ou ético, como já acentuamos.
Tão-somente para se argumentar, pode-se dizer que o bem jurídico visado pela delação (a segurança pública), justificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal princípio é de todo amoralista, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando-se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc...
O próprio Rui Barbosa já afirmava não se dever combater um exagero (no caso a violência desenfreada) com um absurdo (a delação premiada).
Em um artigo intitulado “Prêmio para o ´dedo duro`, o advogado mineiro Tarcísio Delgado afirmou com muita propriedade: “Contam uma história muito conhecida, aconteceu há muitos e muitos anos e, de geração em geração, tão sagrada e consagrada, que estabeleceu o mais importante marco no caminho da humanidade. Trata-se da saga de um "Sujeito", altamente perigoso, indisciplinado e subversivo, que andava atormentando e tirando o sono do Poder Soberano. O "Cara" não era mole, dizia defender os fracos e os oprimidos. Fazia até milagre. Formou uma "quadrilha" de seguidores fanáticos, e andava com seu "bando", infernizando o Poder constituído. Não respeitava nem o Imperador. Era uma ameaça permanente às instituições. "Pior" que "Esse", nunca se viu. Precisava pegá-lo, mas ele era "danado", se misturava no meio do povo, e não tinha como prendê-lo. Preso, o castigo seria severo e inapelável. Eis que aparece a figura canhestra do delator, para "colaborar" com a polícia e com os detentores do Poder. Um dos seus vende-se por trinta dinheiros e articula a prisão do chefe: "O traidor tinha combinado com eles um sinal, dizendo: Jesus é aquele que eu beijar; prendam" (Mateus, 26, 48). Estava consumada a mais famosa e repugnante traição de todas as épocas. Judas se transformou em sinônimo de traidor. Podemos fixar aqui a origem da delação premiada, que se confunde com o nascimento de nossa Era. Este famigerado instituto tem vida recente em nosso Direito. Importado dos Estados Unidos e da Itália, que o recepcionam com grande entusiasmo, foi positivado em nosso País, pela Lei nº 8.072/ 90, art.8º, § único - O participante que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços). O art.159, do Código Penal, no seu § 4º, estabelece coisa parecida. Como esta legislação contraria a natureza de nossos sentimentos, nossas tradições e a formação de nossa cultura, permaneceu durante esses anos como letra morta, sem qualquer aplicação noticiada. Só agora, recentemente, foi, imprópria e equivocadamente, cogitada. (...) Faz quase 60 anos, lembro-me muito bem, quando cursava o primeiro grau, certa feita nossa professora enérgica e diligente, magnífica mestra, que saudade!... surpreendeu um grupo de alunos com um caso grave de indisciplina que, embora praticada por um só, não havia como identificá-lo, sem que houvesse confissão. O indisciplinado calou-se. A professora ameaçava punir o grupo inteiro, se não aparecesse o responsável. Eis que surge o "dedo duro" e delata o colega, apontando aquele dedo de "bom moço" para o culpado. Aquela mestra exemplar passou-lhe uma descompostura. Disse que a indisciplina mais grave praticara o delator do seu colega. Aplicou-lhe a penalidade mais forte, e ensinou que nunca mais deveria dedurar quem quer que fosse. O resto daquela aula foi sobre o papel sujo e condenável de delatar. Esta foi uma lição que me marcou para sempre. (...) Por estas e por outras, tenho fundadas e irremovíveis restrições à chamada delação premiada. Repugna-me o acordo de autoridade instituída com bandidos. Parece-me mais um comodismo de quem tem o dever de investigar, uma redução de trabalho, um falso pragmatismo utilitarista, que encontra utilidade numa prática que corrompe e avilta. O argumento de que os criminosos modernos dispõem de técnicas e arranjos difíceis de serem apanhados, nada mais é do que a confissão de que o Estado está perdendo uma batalha que não pode perder, sob pena do desmantelamento total da organização social. Pegar um acusado, sem qualquer culpa formada, no início da apuração de possíveis atos criminosos, prendê-lo, algemá-lo e oferecer-lhe o benefício da "deduragem" é de arrepiar os cabelos. Os momentos em que prevaleceu o crédito à delação não enaltecem a história, pelo contrário, são períodos soturnos no caminho da humanidade. A delação mais conhecida é aquela que está na origem de nossa Era, resumidamente descrita na introdução deste artigo. Aí, os personagens são nominados, a vítima foi simplesmente Jesus Cristo e, o delator, aquele que virou sinônimo de traidor, Judas Iscariote. Todavia, a história universal está repleta de exemplos tenebrosos de milhares de pessoas inocentes e anônimas que, por causa da delação, foram queimadas vivas nas fogueiras da inquisição; levadas à guilhotina para serem decapitadas depois da Tomada da Bastilha nos anos que se seguiram à Revolução Francesa. Além disso, na Rússia do comunismo Stalinista, por um canto, e no Nazismo Hitlerista, por outro, a delação desempenhou papel absolutamente fundamental. E não citamos, ainda, o caso clássico e típico de delação premiada, que marca a história pátria com sangue e vergonha, daquele que delatou o "bando perigosíssimo" comandado por aquele desvairado de amor à Pátria, Tiradentes, na Inconfidência Mineira - o fraco e pusilânime Joaquim Silvério dos Reis, em troca de vantagens pessoais. A história registra incontáveis casos de delação que, sem nenhuma exceção, marcam sempre os momentos mais obscuros e vergonhosos da humanidade. Só quem não quer ver, em virtude de uma formação utilitarista, não reconhece que a delação sempre foi um instrumento do autoritarismo, da violência, da injustiça. Está na teoria que justifica os meios pelo fim e, ainda assim, no caso, impropriamente, porque, aqui, por meios corrompidos, quase sempre se chega a fim distorcido e injusto. "A árvore má não dá bons frutos". Enganam-se os que buscam tirar proveito de quem só pensa em se aproveitar. A prova não pode fundar-se no testemunho daquele que antes fora pego como comparsa do crime. Sua palavra é suspeita e inconfiável. Todo delator, para amenizar sua situação no processo, joga a culpa no outro, seu comparsa ou não. Não é de se acolher, também, o argumento dos defensores da adoção deste instituto jurídico, de que hoje ele é aplicado com tais cautelas que impossibilitariam qualquer abuso contra inocentes. Claro que, em nossos dias, a delação não levaria ninguém à fogueira ou à guilhotina, mas pode criar constrangimentos e danos morais, ferir direitos inalienáveis, que precisam ser respeitados numa sociedade civilizada e livre, durante o processo investigatório, isto para admitir, o que não é nosso caso, alguma utilidade ou alguma força moral na aplicação dessa norma positiva. É aconselhável que, em se tratando de assuntos desse nível de especulação e com tantas manifestações do pensamento universal, procure-se exemplares na vasta doutrina existente. André Comte-Sponville, desculpando-se por citar poucos, trabalha com conceitos de Kant, Bérgson, Camus, Dostoievski, Jankélévitch para indagar e responder: "se para salvar a humanidade fosse preciso condenar um inocente (torturar uma criança, diz Dostoievski), teríamos de nos resignar e fazê -lo? Não, respondem eles. A cartada não valeria o jogo, ou antes, não seria uma cartada, mas uma ignomínia. Porque, se a justiça desaparece, é coisa sem valor o fato de os homens viverem na Terra. O utilitarismo chega aqui ao seu limite. Se a justiça fosse apenas um contrato de utilidade, apenas uma otimização do bem-estar coletivo, poderia ser justo, para a felicidade de quase todos, sacrificar alguns, sem seu acordo e ainda que fossem perfeitamente inocentes e indefesos", e avança, utilizando-se ainda de Kant e Rawls: "a justiça é mais e melhor do que o bem estar e a eficácia, e não poderia ser sacrificada a eles, nem mesmo em nome da felicidade da maioria". Estes conceitos, certamente, soam como devaneios aos "idiotas da objetividade", de Nelson Rodrigues, mas, só assim, poderemos "criar uma sociedade de Homens, não de brutos", como acentua Spinoza. Premiar o delator é premiar o crime.” Fonte: JURID Publicações Eletrônicas – 06/09/2005.
Em crônica publicada no jornal O Globo, na edição do dia 17 de dezembro de 1995, João Ubaldo Ribeiro, após lembrar que as expressões “dedo-duro” e “dedurismo” surgiram ou generalizaram-se após o golpe militar de 1964, escreveu: “Os próprios militares e policiais encarregados dos inquéritos tinham desprezo pelos dedos-duros – como, imagino, todo mundo tem, a não ser, possivelmente, eles mesmos. E, superado aquele clima terrível seria de se esperar que algo tão universalmente rejeitado, epítome da deslealdade, do oportunismo e da falta de caráter, também se juntasse a um passado que ninguém, ou quase ninguém, quer reviver. Mas não. O dedurismo permanece vivo e atuante, ameaçando impor traços cada vez mais policialescos à nossa sociedade.” E, conclui: “Sei que as intenções dos autores da idéia são boas, mas sei também que vêm do desespero e da impotência e que terminam por ajudar a compor o quadro lamentável em que vivemos, pois o buraco é bem, mas bem mesmo, mais embaixo.”
Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos. O aparato policial tem a obrigação de, por si próprio, valer-se de meios legítimos para a consecução satisfatória de seus fins não sendo necessário, portanto, que uma lei ordinária use do prêmio ao delator (crownwitness), como expediente facilitador da investigação policial e da efetividade da punição.
Ademais, no próprio Código Penal já existe a figura da atenuante genérica do art. 65, III, b, onde a pena será sempre atenuada quando o agente tiver “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano”, que poderia muito apropriadamente compensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxílio à autoridade investigante ou judiciária. Além da atenuante referida há o instituto do arrependimento eficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede voluntariamente que o resultado da execução do delito se produza, fazendo-o responder, apenas, pelos atos já praticados (art. 15 do Código Penal). Pode-se, ainda, referir-se ao preceito do art. 16, arrependimento posterior, bem verdade que este limitado àqueles crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorável por parte do delinqüente, reduzindo-lhe a pena.
Vê-se, destarte, que o ordenamento jurídico existente e consubstanciado no Código Penal já permitia beneficiar o réu em determinadas circunstâncias, quando demonstrasse “menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimento de humanidade e de justiça que o levam, passado o ímpeto do crime, a procurar detê-lo em seu processo agressivo ao bem jurídico, impedindo-lhe as conseqüências”, como já acentuou o mestre Aníbal Bruno.[14] Não necessita, portanto, o legislador, em lei extravagante, vir a prever a delação premiada, como causa de diminuição da pena. Também por isso é inoportuno.
A traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multidão temerosa e indefesa (aliás, por culpa do próprio Estado) ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da repressão à extorsão mediante sequestro). Em nome da segurança pública, falida devido à inoperância social do Poder e não por falta de leis repressivas, edita-se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever.
Repita-se uma observação de Damásio de Jesus:
“A polêmica em torno da "delação premiada", em razão de seu absurdo ético, nunca deixará de existir. Se, de um lado, representa importante mecanismo de combate à criminalidade organizada, de outro, parte traduz-se num incentivo legal à traição. A nós, estudiosos e aplicadores do Direito, incumbe o dever de utilizá-la cum grano salis, notadamente em razão da ausência de uniformidade em seu regramento. Não se pode fazer dela um fim em si mesma, vale dizer, não podem as autoridades encarregadas da persecução penal contentarem-se com a "delação", sem buscar outros meios probatórios tendentes a confirmá-la.”
Incita-se, então, à traição, este mal que já matou os conjurados delatados pelo crápula Silvério dos Reis; que levou Jesus à cruz por conta da fraqueza de Judas e deu novo alento aos invasores holandeses graças à ajuda de Calabar. Esses traidores históricos, e tantos outros poderiam ser citados, são símbolos do que há de pior na espécie humana; serão sempre lembrados como figuras desprezíveis. Advirta-se, que não estamos a fazer comparações, pois sequer são neste caso cabíveis. Apenas tencionamos mostrar a nossa indignação com a utilização da ordem jurídica como instrumento incentivador da traição, ainda que se traia um seqüestrador, um latrocida ou um estuprador.
Em conclusão, não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida. Esta nossa posição, sem sombra de dúvidas, sofre forte contestação; de toda maneira, valhemo-nos da lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, segundo a qual “autores sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível), mas têm o direito de produzir um Direito Processual Penal rompendo com o saber tradicional, em muitos setores vesgo e defasado (...).”[15]
[1] Em conferência realizada no Brasil, em Guarujá, no dia 16 de setembro de 2001, Zaffaroni contou a parábola do açougueiro: “El canicero es un señor que está en una carnicería, con la carne, con un cuchillo y todas esas cosas. Si alguien le hiciera una broma al canicero y robase carteles de otros comércios que dijeran: ‘Banco de Brasil’, Agencia de viages’, ‘Médico’, ‘Farmacia’, y los pegara junto a la puerta de la carnicería; el carnicero comenzaria a ser visitado por los feligreses, quienes le pedirían pasajes a Nueva Zelanda, intentarían dejar dinero en una cuenta, le consultarían: ‘tengo dolor de estómago, que puede hacer?’. Y el carnicero sensatamente responderia: ‘no sé, yo soy carnicero. Tiene que ir a otro comercio, a otro lugar, consultar a otras personas’. Y los feligreses se enojarían: ‘Cómo puede ser que usted está ofreciendo un servicio, tiene carteles que ofrecen algo, y después de no presta el servicio que dice?’. Entonces tendríamos que pensar que el carnicero se iría volviendo loco y empezaria a pensar que él tiene condiciones para vender pasajes a Nueva Zelanda, hacer el trabajo de un banco, resolver los problemas de dolor de estómago. Y puede pasar que se vuelva totalmente loco y comience a tratar de hacer todas esas cosas que no puede hacer, y el cliente termine con el estómago agujereado, el otro pierda el dinero, etc. Pero si los feligreses también se volvieran locos y volvieran a repetir las mismas cosas, volvieran al carnicero; el carnicero se vería confirmado en ese rol de incumbencia totalitaria de resolver todo.” Conclui, então, o mestre portenho: “Bueno, yo creo que eso pasó y sigue pasando con el penalista. Tenemos incumbencia en todo.”
[2] Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5a. ed., 1995, p. 2.074.
[3] Por todos, leia-se a excelente obra de Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 4a. ed., 2000.
[4] Natália Oliveira de Carvalho, A Delação Premiada no Brasil, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 78.
[5] https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina&ID=16323&Id_Cliente=10487
[6] Manual da Inquisição, por Nicolau Eymereco, Curitiba: Juruá, 2001, (tradução de A. C. Godoy).
[7] Hoje, inclusive e principalmente a doutrina estrangeira, prefere a expressão “colaboração processual”, ainda que tal colaboração se dê, também, na fase pré-processual, como informa Eduardo Araújo da Silva (Boletim do IBCCrim. nº. 121, dezembro/2002).
[8] Crimes Hediondos, LEUD, 4ª. ed., p. 126.
[9] Estellita, Heloísa. A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 202, p. 2-4, set. 2009Para nós é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais do que isso incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de se obter um prêmio ou um favor jurídico.
[10] Apud Paulo Rangel, in Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 7ª. ed., 2003, p. 605.
[11]https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina&ID=14287&Id_Cliente=10487
[12] Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 19a. ed. 1991, p. 60.
[13] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ano 13, nº. 154, setembro/2005, p. 9.
[14] Direito Penal, 4a. ed. Tomo. III, p. 140, 1984.
[15] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. A mais nova previsão de delação premiada no direito brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2011, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1088/a-mais-nova-previsao-de-delacao-premiada-no-direito-brasileiro. Acesso em: 27 nov 2024.
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