Introdução
Há muito tempo, doutrina e jurisprudência pátrias têm discutido acerca da possibilidade de reparação civil em razão do abandono afetivo/moral. O cerne da questão se fundamenta no afeto inexistente nos “pais abandônicos”, que, por qualquer razão (na maioria das vezes, a separação do casal) deixam de participar da vida de seu filho e se seria possível mensurar o amor. Como não poderia deixar de ser, o tema é polêmico, haja vista que se trata de uma invasão da responsabilidade civil em sede de direitos pessoais e familiares.
A modificação da família. A figura do afeto
É certo que, ao longo dos anos, as famílias vêm se transformando, surgindo novas formas de família, com o evidente declínio da ideologia patriarcal.
Ademais, as mulheres passaram a trabalhar, sendo inseridas no mercado de trabalho, o que modificou, bruscamente, toda a estrutura familiar existente.
Foram reconhecidas outras formas de família, abandonando-se uma visão conservadora e ganhando relevo a figura do afeto.
O homossexualismo foi reconhecido como uma opção de vida e as famílias homoafetivas vêm ganhando o seu espaço, em especial após a decisão do Supremo Tribunal Federal que admitiu a possibilidade de união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Neste contexto, discorre Eliane Goulart Martins Carossi, destacando que o atual conceito de família considera a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a afetividade (2010):
“A partir do reconhecimento de outras formas de constituição da família previstas no Constituição Federal de 1988, o direito de família deixou de ser conservador, discriminador e autoritário, pois passa a ser visto sob a ótica da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da afetividade. Família não significa mais casamento, sexo e procriação. Sexo e casamento não estão necessariamente mais juntos, nem sexo e procriação. A família perdeu valores que não mais se adequavam à realidade social e ganhou outros mais condizentes como dignidade, igualdade, solidariedade, responsabilidade e afeto. Ao conceber tais valores a Constituição Federal de 1988 muda o curso, a trajetória, a estrutura do direito de família. (...) Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e despatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto”.
A figura do afeto alterou toda a interpretação do direito de família, sendo que, para as figuras paternas não basta tão somente o dever alimentar, mas sim o dever de possibilitar um desenvolvimento sadio dos filhos. Noutras palavras, não basta que os pais custeiem as despesas dos filhos, sendo imprescindível que com eles convivam, dêem carinho.
Ocorre que, muitos pais, hoje em dia, não mais participam da vida e do cotidiano dos filhos, quer pelo divórcio (ou separação) do casal, quer pela desestruturação familiar ou pela constituição de uma nova família. Não se pode falar que tenha havido, verdadeiramente, uma evolução, no que tange ao aspeco familiar.
Explicita Rodrigo da Cunha Pereira (2008) em seu ensaio “Nem só de pão vive o homem: Responsabilidade Civil por abandono afetivo”:
“O declínio da autoridade paterna, conseqüência do fim da ideologia patriarcal, apresenta hoje sintomas sociais sérios e alarmantes. Se os pais fossem mais presentes na vida de seus filhos, certamente não haveria tantas crianças e adolescentes com evidentes sinais de desestruturação familiar. Seria ingenuidade pensar que esses sintomas sociais que o cotidiano nos escancara é conseqüência apenas do descaso do Estado e de uma economia perversa. (...) Histórias de pais "abandônicos" têm sido quase um "lugar-comum", quase uma repetição de histórias de centenas ou milhares de crianças: o casal se separa e uma das partes vai viver outra relação amorosa, constitui nova família e encontra muitas justificativas para não estar mais presente na vida do(s) filho(s) do casamento anterior; pais que não se comprometem com seus filhos e empurram para a mãe a função paterna, etc.”
A responsabilidade civil por abandono afetivo/moral
A doutrina e a jurisprudências pátrias têm debatido se seria possível a responsabilidade civil em razão do abandono afetivo/ moral.
Embora o assunto esteja longe da passividade, é evidente que todos aqueles que se sentirem lesados, podem deduzir a sua pretensão junto ao Poder Judiciário, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Se por um lado, é inegável que o abandono afetivo/moral causa danos à personalidade, atingindo a dignidade da pessoa humana, por outro, é deveras complicado aplicar a teoria da responsabilidade civil em sede de relações familiares, haja vista as características peculiares destas. Não seria possível responsabilizar ninguém por não sentir amor e, ao mesmo tempo, o Judiciário pode ser alvo de demandas infundadas, no contexto da banalização dos danos morais. Qualquer discussão ou briga familiar poderia motivar uma demanda por suposto abandono afetivo.
O amor (a falta de amor) passaria a ter um preço?
O abandono afetivo é um ato ilícito? Quais são os deveres dos pais?
Como pondera o doutrinador Rodrigo da Cunha Pereira (2008) a questão do abandono afetivo transcenderia a esfera particular e traria uma nova reflexão ao direito, ou seja, se seria possível que um pai ou uma mãe que se negasse a conviver com o filho ou lhe negasse afeto estaria infringindo a lei e seria civilmente responsabilizado. A seu turno, embora não seja possível obrigar uma pessoa amar a outra, o pai ou a mãe que não dessem carinho poderiam receber uma sanção da sociedade:
“(...) A importância deste caso, que transcende a esfera do particular, é que ele traz uma nova reflexão ao direito: um pai ou uma mãe que se nega a conviver com seu filho menor ou não dá afeto, está infringindo a lei e deve, ou pode, ser punido por esta falta? (...) Não é possível obrigar ninguém a amar. No entanto, a esta desatenção e a este desafeto devem corresponder uma sanção, sob pena de termos um direito acéfalo, um direito vazio, um direito inexigível. Se um pai ou uma mãe não quiserem dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, ninguém pode obrigá-los, mas à sociedade cumpre o papel solidário de lhes dizer, de alguma forma, que isso não está certo e que tal atitude pode comprometer a formação e o caráter dessas pessoas abandonadas, afetivamente”.
Para Maria Berenice Dias (2007), a indenização por abandono afetivo teria um papel pedagógico nas esferas familiares:
“A indenização por abandono afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares”.
A seu turno, Leandro Soares Lomeu (2009), em seu ensaio “Afeto, abandono, responsabilidade e limite: diálogos sobre ponderação (2009), complementa que, uma vez admitido que todo dano deve ser indenizado, observa-se também a possibilidade de aplicação dos artigos186 e 187 do Código Civil às relações familiares:
“Uma vez estabelecido que todo dano há de ser indenizado, conforme se observa dos artigos 186 e 187 do Código Civil, observa-se sua possibilidade também nas relações familiares, especialmente, levando-se em conta que o afeto ocupa um lugar significativo, demonstrando seu gradativo ingresso na esfera jurídica. Algumas hipóteses da possibilidade dos danos morais embarcam perfeitamente nas relações familiares, situações diversas em que os deveres de família são violados. (...) O dano causado pelo abandono afetivo é antes de tudo um dano à personalidade do indivíduo. Macula o ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, sendo certo que esta personalidade existe e se manifesta por meio do grupo familiar, responsável que é por incutir na criança o sentimento de responsabilidade social, por meio do cumprimento das prescrições, de forma a que ela possa, no futuro, assumir a sua plena capacidade de forma juridicamente aceita e socialmente aprovada”.
Por outro lado, Fernando Porfírio assevera que a tal matéria preocupa os magistrados, ante ao risco de banalização e pelo fato de que, inexistindo a obrigação legal, não haveria ato ilícito. In verbis:
“A matéria que envolve responsabilidade civil por abandono afetivo divide e preocupa magistrados, principalmente, por conta do risco da banalização, da criação de uma indústria do dano moral ou de servir de meio de revanche. Quem defende a tese intransigentemente contrária ao dano moral argumenta que, não existindo a obrigação legal, não há ato ilícito, ainda que da falta de amor resulte algum dano afetivo ao filho”.
Neste contexto, imprescindível trazer à lume recentes decisões sobre o tema:
“Direito Civil. Responsabilidade civil. Abandono afetivo por parte do genitor. Indenização por danos morais. Impossibilidade. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916. O abandono afetivo é incapaz de reparação pecuniária. (...)” (RESP 757411 / MG, 4ª TURMA, RELATOR MINISTRO FERNANDO GONÇALVES, DJ 27.03.2006 P. 299)". 2. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.. CONHECER E NEGAR PROVIMENTO. (TJDF - APELACAO CIVEL APC 20050610110755 DF - Data de Publicação: 07/04/2008)
“Indenização. Dano moral. Abandono afetivo do genitor. Ausência de ato ilícito. Ao relacionamento desprovido de vínculo afetivo entre pai e filho não se atribui dolo ou culpa aptos a ensejar reparação civil. Inexistência de ato ilícito no âmbito do direito obrigacional. Indenização indevida. Recurso provido”. (TJSP - Apelação Cível AC 5995064900 SP - Data de Publicação: 18/12/2008)
“INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. Não se pode obrigar alguém a amar ou a manter relacionamento afetivo, mas se o abandono ultrapassa os limites do desinteresse e causa lesões no direito da personalidade do filho, com atos de humilhações e discriminações, cabe, sim, reparação pelo dano moral causado”. (TJSP – Julgamento em 13/01/2010 – 4ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Ênio Zuliani)
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ABANDONO AFETIVO - ATO ILÍCITO - INEXISTÊNCIA - DEVER DE INDENIZAR - AUSÊNCIA. A omissão do pai quanto à assistência afetiva pretendida pelo filho não se reveste de ato ilícito por absoluta falta de previsão legal, porquanto ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor. Inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do Código Civil, eis que ausente o ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como passível de indenização.(TJMG- Processo Número 1.0024.07.7909, Relator: Alvimar de Ávila; Data da Publicação: 16/03/2009)
“INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.” (Tribunal de Alçada de Minas Gerais - AC nº 408.550-5, de 01.04.2004 - Sétima Câmara Cível,
Ora, enquanto alguns julgados prestigiam o princípio da afetividade e responsabilizam o genitor que privou o filho do direito à convivência e lhe negou amor, outras decisões asseveram inexistir previsão legal para a reparação pretendida e que a ausência de amor não configuraria ato ilícito.
Conclusões
Há tempos, o afeto é que tem permeado as relações familiares e, por tal razão, seria merecedor de tutela jurídica.
Neste contexto, insere-se a possibilidade de responsabilidade civil por abandono afetivo.
Debatem os doutrinadores e julgadores se seria admitida a aplicação da teoria da responsabilidade civil em sede de relações familiares, admitindo-se a mensuração do amor, do convívio e do carinho.
Seria o Poder Judiciário o local ideal para a resolução de tais problemas? Haveria (Haverá) uma banalização desta espécie de danos morais? Reveste-se a omissão de amor dos pais como um ato ilícito?
Tais perguntas podem ser respondidas de diferentes maneiras e será indispensável a prudente análise do caso concreto, verificando-se eventual ocorrência de dano e ferimento da dignidade da pessoa humana.
Referências Bibliográficas:
CAROSSI, Eliane Goulart Martins. O valor jurídico do afeto na atual ordem civil constitucional brasileira. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/impressao.php?t=artigos&n=659. Acesso em 18.abr.2011.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
FREIRE, Denise Dias. O preço do amor. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=162. Acesso em 14.mai.2011.
LOMEU, Leandro Soares. Afeto, abandono, responsabilidade e limite: diálogos sobre ponderação. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=569. Acesso em 05.dez.2011.
OLIVEIRA, Luciane Dias de. Indenização civil por abandono afetivo de menor perante a lei brasileira. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9057. Acesso em 05.dez.2011.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Nem só de pão vive o homem: Responsabilidade civil por abandono afetivo. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/impressao.php?t=artigos&n=392. Acesso em 18.abr.2011.
PORFÍRIO, Fernando. Preço do Amor – Pai deve indenizar filho por abandono afetivo. Disponível em http://www.conjur.com.br/2010-jan-13/justica-sp-condena-pai-indenizar-filho-abandono-afetivo. Acesso em 05.dez.2011.
Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Breves considerações sobre a responsabilidade civil por abandono afetivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2011, 09:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1091/breves-consideracoes-sobre-a-responsabilidade-civil-por-abandono-afetivo. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Remo Higashi Battaglia
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: Remo Higashi Battaglia
Precisa estar logado para fazer comentários.