O princípio do devido processo legal é, sem dúvida, um tema que merece destaque dentro do mundo jurídico. Apesar de ser um princípio tratado pela imensa maioria dos processualistas, e talvez uma matéria que já tenha esgotado quase todos os debates, continua sendo um dos princípios mais relevantes com previsão na Constituição Federal de 1988.
Como será visto, o devido processo legal abrange outros tantos princípios que têm ligação direta com um processo justo. O que se espera com a garantia do acesso à justiça é exatamente se obter um resultado justo ao final do processo, e não apenas o acesso à jurisdição. Entende-se como justa àquela decisão que seja efetiva, tempestiva e adequada, respeitando todas as garantias fundamentais estabelecidas pela Lei Maior.
O presente estudo não tem por objetivo esgotar o tema, tarefa esta, que merece ser feita em nível de monografia ou dissertação de mestrado. O que se busca nesta pesquisa é esclarecer alguns aspectos relevantes do princípio do devido processo legal e sua relação direta com um processo justo.
Está expresso no inciso LIV da Constituição Federal de 1988 que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Trata-se do princípio constitucional do qual todos os outros decorrem, pode-se dizer que o due process of law como também é conhecido é o gênero do qual os demais princípios do processo constitucional são espécies.[1]
Nesse mesmo sentido, Misael Montenegro Filho aduz que o princípio do devido processo legal, pode ser considerado como um supra princípio, ou seja, envolve todos os demais, visto que a motivação das decisões, o contraditório, a ampla defesa, a coisa julgada, o princípio do juiz natural dentre outros, são na verdade uma exigência de que o processo deve seguir uma forma prevista em lei, sendo vedados todos os atos não previstos na norma legal que acarretem prejuízos às partes.[2]
Conforme bem lembra Marcus Vinicius Rios Gonçalves:
O princípio do devido processo legal teve origem na Magna Carta, de João Sem Terra, datada de 1215, em que se ressaltava o seu aspecto protetivo no âmbito do processo penal. Ao longo do tempo, ele foi ganhando maior amplitude e generalizando-se. Hoje em dia, não se limita à tutela processual (procedural due process), tendo adquirido também em sentido substancial (substantive due process).[3]
Que quer dizer que o devido processo legal não indica apenas a tutela processual e sim tem um sentido bipartido, atuando no que respeita ao direito material, e de outro lado ao processual judicial e administrativo.[1]
Pode-se dizer, portanto, que o devido processo legal compreende duas ordens de direito, uma a garantia processual que foi a primeira a se desenvolver e, por outro lado, o aspecto substancial, “que alcança a razoabilidade, a justiça da norma. Com base neste, o juiz exerce um verdadeiro controle sobre o conteúdo da norma que vai aplicar”.[4]
Em seu sentido genérico o due process of law pode ser caracterizado pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, ou seja, estará sobre a proteção deste princípio tudo que disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade.[1] Como visto, o sentido substancial pressupõe razoabilidade, “assim, ainda que determinado ato jurídico processual não atrite com o direito fundamental que assegura a vida-liberdade-propriedade, se ele padecer de falta de razoabilidade, não será dado aplicá-lo”.[5]
Cassio Scarpinella Bueno ao tratar do devido processo legal argumenta que:
Se o princípio do ‘acesso à justiça’ representa, fundamentalmente, a ideia de que o Judiciário está aberto, desde o plano constitucional, a quaisquer situações de ‘ameaças ou lesões a direito’, o princípio do ‘devido processo legal’ volta-se, basicamente, a indicar as condições mínimas em que o desenvolvimento do processo, isto é, o método de atuação do Estado-juiz para lidar com a afirmação de uma situação de ameaça ou lesão a direito, deve se dar.[6]
O autor, que define o devido processo legal como devido processo constitucional, pois a pauta de reflexão deve partir da Constituição e não da lei, entende que o Estado-juiz deve atuar de acordo com normas pré-estabelecidas, atuando conforme um padrão adequado, tendo assim, um especial modelo de agir. O Estado não deve atuar de qualquer forma, e sim, de uma forma específica dando às partes as possibilidades de ataque e de defesa, por isso o termo “devido” processo.[6]
Esta forma adequada que o Estado deve agir, deve sempre respeitar as garantias do contraditório e ampla defesa, além da isonomia entre as partes. Deve ser dado aos litigantes aquilo que lhes pertence, sendo feita de forma correta a prestação jurisdicional.[7]
Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco asseveram que:
Entende-se com essa fórmula, o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimante do exercício da jurisdição.[8]
Princípios decorrentes de forma direta do devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa estão expressos no inc. LV do art. 5º da CF/88 “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”. Apesar de grande parte da doutrina apontar os princípios em tela como sinônimos, sabe-se que trata-se de dois princípios distintos, prova disso é o texto expresso ora referido, pois fica evidente que o legislador pretendeu garantir dois direitos quando utiliza o termo “contraditório e ampla defesa”(grifou-se).
Alexandre de Moraes faz a distinção:
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito de defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.[9]
O devido processo legal, como se pode perceber segundo a doutrina majoritária, é um princípio que abrange outros tantos, para a condução de um processo considerado justo. No momento que o Estado assume o monopólio da jurisdição, a sociedade espera um resultado satisfatório nos conflitos existentes, e a garantia do acesso à justiça não pode ser entendida apenas como acesso ao Poder Judiciário, e sim como um julgamento, respeitando todas as garantias insculpidas na Constituição Federal de 1988. No tópico seguinte serão analisados os caminhos para se alcançar a justiça no processo.
Quando se fala em justiça até mesmo os operadores do direito apresentam dificuldades em dar uma conceituação adequada ao vocábulo. Para definir o termo “justiça” extrai-se o conceito do dicionário jurídico: “O que se faz conforme o Direito ou segundo as regras prescritas em lei. A prática do justo ou a razão de ser do próprio Direito, visto que por ela se reconhece a legitimidade dos direitos e se estabelece o império da lei”.[10]
Segundo doutrina de Humberto Theodoro Júnior, o direito à jurisdição também é o direito ao processo, que é uma garantia individual da parte para a realização da justiça. O Direito Processual Civil estabelece as regras que deverão ser cumpridas no processo, não podendo o Estado abdicar de alguma(s) dela(s). Sendo assim, o juiz terá todos os instrumentos necessários para a busca da verdade real, alcançando a justa composição da lide. O devido processo legal compreende, de fato, algumas garantias fundamentais inseridas na Carta Magna, tais como a garantia do juiz natural (CF, art. 5º inc. XXXVII), a garantia do acesso à justiça (CF, art. 5º inc. XXXV), da ampla defesa e do contraditório (CF, art. 5º inc. LV) e da fundamentação e motivação das decisões judiciais (CF, art. 93, inc. IX).
Nesta moderna concepção do processo justo, entram preocupações que não se restringem aos aspectos formais ou procedimentais ligados à garantia de contraditório e ampla defesa. Integram-na também escopos de ordem substancial, quando se exige do juiz que não seja apenas a ‘boca da lei’ a repetir na sentença a literalidade dos enunciados das normas ditadas pelo legislador. Na interpretação e aplicação do direito positivo, ao julgar a causa, cabe-lhe, sem dúvida, uma tarefa integrativa, consistente em atualizar e adequar o enunciado da norma aos fatos e valores em jogo no caso concreto. O juiz tem, pois, de complementar a obra do legislador, servindo-se de critérios éticos e consuetudinários, para que o resultado final do processo seja realmente justo, no plano substancial. É assim que o processo será, efetivamente, um instrumento de justiça.[11]
O devido processo legal tem a função de garantir a efetividade dos direitos fundamentais dentro do processo, sendo um princípio extremamente relevante, pois organiza os demais princípios e garantias constitucionais, estabelecendo um procedimento adequado às partes.[11]
No entendimento de Sérgio Gilberto Porto e Daniel Ustárroz ao analisarem o devido processo e suas condições de se obter justiça elencam diversos requisitos para se alcançar o fim almejado:
Diante da natureza sintética do devido processo, ele será justo no Brasil, quando: (a) o acesso à justiça é assegurado, antes, durante e depois da relação processual; (b) as partes encontrarem condições para exercer o contraditório de maneira proveitosa; (c) os atos do processo forem públicos, para viabilizar o controle do exercício jurisdicional; (d) os provimentos forem motivados adequadamente; (e) os poderes públicos respeitarem os valores da imparcialidade impostos pelo juiz natural; (f) não for tolerada a obtenção de prova por meio ilícito; (g) as partes receberem tratamento paritário ou quando a diferença for criteriosa e juridicamente justificada; (h) for respeitado o duplo grau de jurisdição, ao menos naqueles casos que implicam risco de maior restrição aos direitos fundamentais; (i) for obedecida a coisa julgada; (j) o processo se desenvolver em tempo razoável, propiciando aos litigantes desfrutarem dos direitos reconhecidos; e, ainda, (l) os princípios reconhecidos em Tratados Internacionais ou compatíveis com a dignidade da pessoa humana e com o Estado Republicano forem também respeitados.[12]
Os autores abordam, de forma clara, todas as garantias que decorrem do devido processo legal, e que são essenciais para a justiça do processo, pois caso alguma delas não seja respeitada a finalidade de todo o processo se torna comprometida.
O processo, portanto, deve ter garantias mínimas de meios e de resultados, deve dar oportunidades reais e equilibradas aos litigantes, o que torna a tutela jurisdicional adequada e efetiva, ou seja, justa.[13]
O devido processo legal, ou como alguns autores classificam como devido processo constitucional, talvez seja o princípio mais importante dentro do processo, pois dele decorrem os outros princípios também garantidos pela Constituição Federal de 1988.
O princípio da isonomia, do contraditório, da ampla defesa, da motivação das decisões, do acesso à justiça, dentre outros, estão totalmente interligados ao devido processo legal, e são tidos como mecanismos para se alcançar o propósito principal do processo: a realização de justiça. Ora, o objetivo das partes quando procuram o Poder Judiciário é exatamente resolver seus litígios de forma justa, recebendo do Estado somente aquilo que tem direito, nada mais e nada menos. O Estado por sua vez, deve, através dos procedimentos e instrumentos pré-estabelecidos buscar a verdade.
Para se chegar ao resultado justo o julgador deve respeitar o devido processo legal, e para isso deve atender às partes da mesma forma, sempre de acordo com a garantia da isonomia, analisando as provas obtidas de maneira lícita, e ouvindo o pedido de uma e a resposta da outra parte, sendo respeitado o direito de defesa dos litigantes.
1 JUNIOR, Nelson Nery. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6.ed. rev. ampl. atual. com a lei da ação direta de inconstitucionalidade (9.868/99), Lei de arguição de descumprimento de preceito fundamental (9.882/99), e a Lei do processo administrativo (9.784/99). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. pp.31;34;36.
2 MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Processo Civil. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 2.ed. São Paulo: Altas, 2006. p.55. v.1.
3 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de processo civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p.36. v.1.
4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.123.
5 CONRADO, Paulo Cesar. Introdução à teoria geral do processo civil. São Paulo: Max Limonad, 2000. p.72.
6 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil, 1. 2.ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2008. p.104-6.
7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p.431.
8 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.84.
9 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.106.
10 COSTA, Wagner Veneziani; AQUAROLI, Marcelo. Dicionário Jurídico. São Paulo: Madras, 2005. p.204.
11 THEODORO JÚNIOR Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. In: ASSIS, Araken de; MOLINARO, Carlos Alberto; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro (Orgs.). Processo coletivo e outros temas de direito processual: homenagem 50 anos de docência do professor José Maria Rosa Tesheiner, 30 anos de docência do professor Sérgio Gilberto Porto. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p.263-5.
Advogado militante (OAB/RS 73.357), trabalha nas áreas cível e trabalhista. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS no ano de 2007. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo IDC-RS no ano de 2010. Mestre em Direito Processual Civil pela PUCRS no ano de 2014. Professor de Direito da Graduação e Pós-Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul -UNISC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KRIEGER, Mauricio Antonacci. O princípio do devido processo legal: requisito fundamental para se alcançar justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2012, 07:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1250/o-principio-do-devido-processo-legal-requisito-fundamental-para-se-alcancar-justica. Acesso em: 26 nov 2024.
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