Considerações Iniciais
De acordo com a doutrina civilista, para a caracterização da responsabilidade civil é necessário a ação ou omissão do agente, a ocorrência de dano e o liame, isto é, o nexo causal entre o dano e a conduta do agente. A necessidade da existência de dolo ou culpa define se a responsabilidade será objetiva ou subjetiva, ou seja, prescindindo ou não de elemento subjetivo, respectivamente.
O Código Civil de 2002 explicita hipótese de responsabilização objetiva decorrente da atividade de risco propriamente exercida, independente da aferição de culpa ou dolo, nos termos do parágrafo único do artigo 927:
“Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Ademais, o Código de Defesa do Consumidor estabelece que ao prestador de serviços é atribuída responsabilidade objetiva, independente da ocorrência de elemento subjetivo doloso ou culposo pela reparação dos danos causados, consoante o artigo 14 do Código Consumerista.
No que toca à responsabilidade objetiva Gustavo Tepedino preleciona que a doutrina e jurisprudência
“Com o intuito de não deixar desamparada a vítima, desenvolveram paulatinamente o novo sistema de responsabilização com base na teoria do risco, segundo a qual quem exerce determinadas atividades deve ser responsável também pelos seus riscos, independente de quais considerações em torno do seu comportamento pessoal. A esta nova espécie de responsabilidade fundada no risco, convencionou-se chamar responsabilidade objetiva, porque desvinculada da valoração da conduta do sujeito. São requisitos da responsabilidade objetiva: 1) o exercício de certa atividade; II) o dano; III) o nexo de causalidade entre o dano e a atividade.” (TEPEDINO, 2006, p. 805).
Destarte, a responsabilização objetiva, inerente às relações de consumo independem da ocorrência de dolo ou culpa, sobretudo em razão da disparidade entre fornecedores/prestadores de serviço, a responsabilização objetiva é condição que se impõe a atingir a igualdade material nas relações de consumo.
Responsabilidade de instituições bancárias pela provisão de fundos
É de se saber que para a abertura de conta bancária, a instituição bancária necessariamente deverá se certificar da capacidade patrimonial do correntista, sobretudo para a emissão de talonário de cheques.
A ausência de cautela quanto à análise do perfil do cliente para a liberação de talonário, por si só constitui atividade de risco, suscetível de causar danos a terceiros que, ainda que não tenham relação jurídica direta com a instituição bancária são objeto de proteção pelo Código de Defesa do Consumidor, intitulados pela doutrina consumerista como “Bystander”, amparo firmado pelo artigo 17 do CDC que equipara a consumidor todas as vítimas do evento.
Saliente-se que nos termos do artigo 14 da Resolução 1.682/1990 do Banco Central do Brasil, as instituições bancárias obtém vantagem patrimonial com a devolução das cártulas, como taxa de serviço no montante de 1 (um) BTN. Dessa forma, além das atividades bancárias serem atividades de risco, isto é, potencialmente danosas ao patrimônio de terceiros, obtém vantagem patrimonial com a ocorrência de devolução dos cheques.
Ademais, com fulcro na Resolução 2.025/1993 do Banco Central do Brasil, acerca das condições a serem exigidas pelos bancos de seus correntistas, consta obrigação de que a ficha-proposta relativa a contas de depósitos à vista deverá conter o saldo exigido para a manutenção da conta e a existência de condições estipuladas para fornecimento de talonário de cheques (artigo 2º).
Dessa feita, as instituições bancárias, obrigatoriamente, devem apresentar condições adequadas a reduzir a incidência de inadimplemento quanto à transformação de cheque em pecúnia, evitando que se prolifere a frustração quanto à regularidade de relações jurídicas cotidianas.
Ressalte-se que, atualmente as instituições bancárias não exercem qualquer controle sobre a emissão de cheques, autorizando a liberação de talonário a qualquer correntista ainda mesmo pelo caixa eletrônico, sem base de análise de saldo da conta corrente, alargando brechas à ocorrência de fraudes pelo emitente.
No que tange à aplicabilidade do CDC às instituições financeiras, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 297 que consolidou entendimento de incidência do Código de Defesa do Consumidor a instituições financeiras, corroborando a proteção consumerista decorrente de hipossuficiência existente também em relações bancárias.
No conceito legal de prestador de serviços, as instituições bancárias se subsumem ao artigo 3º da Lei 8.078/90 e seu parágrafo segundo, sendo que este explicita que “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”
Na lição irretocável de Carlos Roberto Gonçalves:
“O Código de Defesa do Consumidor incluiu expressamente as atividades bancárias, financeiras, de crédito e securitárias no conceito de serviço (art. 3º, § 2º). Malgrado a resistência das referidas instituições em se sujeitarem às suas normas, sustentando que nem toda atividade que exercem (empréstimos financiamentos, poupança etc.) encontra-se sob sua égide, o Superior Tribunal de Justiça não vem admitindo qualquer interpretação restritiva ao aludido § 2º do art. 3º, afirmando que a expressão "natureza bancária, financeira, de crédito" nele contida não comporta que se afirme referir-se apenas a determinadas operações de crédito ao consumidor.” (GONÇALVES, 2009, p.236)
Nesse diapasão, o Código de Defesa do Consumidor, inequivocamente, constitui modelo legislativo aplicável às instituições bancárias, sendo inafastável a responsabilidade objetiva inerente ao preceito legal situado no artigo 14 do CDC.
Repercussão jurisprudencial de responsabilidade civil
Em virtude da relação de direito cambiário entre emitente e beneficiário, a responsabilização imediata, evidentemente, atribui-se ao emitente. No entanto, atualmente há o desenvolvimento de precedentes jurisprudenciais no sentido de manter a responsabilização bancária para a ausência de provisão de fundos quanto à emissão de cheque, pois, cabe aos bancos apresentarem políticas de controle para a liberação de cártulas que apresentem fundos idôneos a satisfazer o crédito do beneficiário.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em jurisprudência incipiente abre precedente importante à responsabilização bancária decorrente da emissão de cheques sem provisão de fundos de seus correntistas, objeto de julgado das apelações cíveis: 2012.017315-9 e 2012.010350-9, pelo desembargador Fernando Carioni, ambas do ano de 2012, que julgaram procedente o recurso interposto em face de sentença proferida pelo juízo monocrático.
Ademais, no primeiro acórdão, há explícita menção à decisão em sede de embargos infringentes (nº 2010.016337-2) julgado pelo Grupo de Câmaras de Direito Civil daquele Estado, em 10 de novembro de 2010, quando decidiu, outrossim, pela responsabilização bancária.
Este Tribunal apresenta tradição em demonstrar bravura em judiciosas decisões em contraposição ao poder econômico exercido pelas instituições bancárias, referente ao Agravo de Instrumento nº 1999.017295-3, Relator Desembargador Carlos Prudêncio, publicado em 25 de Março de 2000. Cumpre trazer à baila excerto das razões expendidas pelo Egrégio Tribunal:
“Temos que romper com essa letargia e isso só acontecerá se o judiciário cumprir rigorosamente seu papel, que é o de expurgar das leis e dos costumes referidos atos ditatoriais, determinando que as autoridades públicas - infelizmente aí incluídos os banqueiros, pois estes mandam mais que aqueles devido à simbiose que há entre ambos - se acordem para o fato de que a grande transformação social por que passa o mundo não permite que a maioria numérica com direitos democráticos se submeta aos poucos que ainda estão impregnados de conceitos da monarquia absolutista. Penso estar na hora de enfrentarmos uma realidade atual, qual seja a da supremacia das teses das instituições financeiras em detrimento da interpretação as leis. Acredito que devemos repensar as decisões que interfiram no setor econômico, até mesmo para darmos uma resposta aos empresários e à população em geral no sentido de que o Poder judiciário não permitirá abusos contra quem quer que seja e que somente a lei, aliada ao seu fim social, prevalecerá.”
Nesse norte, o entendimento jurisprudencial no sentido da responsabilização de instituição bancárias pela ausência de provisão de fundos caminha a passos curtos, porém, na direção de estimular o rigor quanto à concessão de talonário de cheque, em contraponto à busca voraz pelo aumento de lucros cada vez mais vultosos das instituições bancárias pela concessão aleatória e sem critério.
Notas conclusivas
A relação jurídica das instituições bancárias com terceiros que recebem cheques sem provisão de fundos de correntistas decorre de responsabilização civil com origem no Código de Defesa do Consumidor, por ser vítima de dano patrimonial decorrente de fato do serviço prestado, caracterizando a responsabilidade objetiva do prestador de serviços bancários.
Outrossim, a atividade de risco assumida pelas instituições bancárias quanto à emissão de talonário de cheques por si só desincumbe da prova de dolo ou culpa, corroborando a responsabilização de natureza objetiva destas instituições.
É cabível aos bancos tão-somente a ação de regresso contra seus correntistas que contribuíram para a frustração das expectativas de pagamento inerentes ao título de crédito fornecido pelas instituições bancárias para emissão.
Ressalte-se que, havendo atribuição reiterada de responsabilidade às instituições bancárias pela emissão de cheques sem provisão de fundos, haverá redução dos prejuízos das demais classes empresárias, que, cotidianamente decorre do inadimplemento de correntistas, tendo os beneficiários, na maioria das vezes, tão somente a posse de mera folha de papel por não ter aqueles patrimônio exequível.
A responsabilização bancária nessas hipóteses, também, certamente forçará as instituições bancárias a submeterem com maior rigor a emissão de talonário de cheques, em igual sentido às políticas bancárias de concessão de empréstimos, com a análise aprofundada da possibilidade financeira de seus correntistas para o pagamento de títulos de créditos fornecidos, minimizando a própria perda patrimonial, de terceiros e, sobretudo, combatendo o enriquecimento ilícito.
O entendimento esposado neste estudo ainda é considerado como incipiente doutrinária e jurisprudencialmente, contudo, as bases legais e interpretativas, sob as quais se funda são plenamente adequadas aos paradigmas constitucionais e construções doutrinárias de responsabilidade civil e consumerista, tendo vasto campo quanto à aplicação do caso concreto para se estabelecer como posicionamento a ser adotado.
Referências
_______________ TJSC – Apelações Cíveis 2012.017315-9 e 2012.010350-9, Des. Rel. Fernando Carioni.
_______________ TJSC – Agravo de Instrumento nº 1999.017295-3. Des. Rel. Carlos Prudêncio.
Código Civil Brasileiro. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível_em_<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 02 set. 2012.
Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.079 de 11 de setembro de 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em 06 set. 2012.
FLOR, GEOVANO PRUDENCIO. Cheques sem fundos: Responsabilidade da Instituição Financeira. Recanto das Letras. Disponível em: < http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/3682090>. Acesso em: 09 set. 2012.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Volume 4.
Resolução 2.025/1993 do Banco Central do Brasil. Disponível em < http://www.bcb.gov.br/pre/normativos/res/1993/pdf/res_2025_v6_L.pdf>. Acesso em: 04 set. 2012.
Resolução 1.682/1990 do Banco Central do Brasil. Disponível em < http://www.bcb.gov.br/pre/normativos/res/1990/pdf/res_1682_v1_O.pdf>. Acesso em: 04 set. 2012.
TEPEDINO, Gustavo; DIVERSOS. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, v. 2. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. volume. 4.
Advogado Especialista e Consultor Jurídico.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Marco Túlio Rios. Responsabilidade Civil bancária quanto a cheques sem provisão de fundos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 set 2012, 07:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1307/responsabilidade-civil-bancaria-quanto-a-cheques-sem-provisao-de-fundos. Acesso em: 26 nov 2024.
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