Uma das mais relevantes ações em favor das pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade e risco social foi introduzida na CF 88, no art. 203, V, ou seja, a garantia de receber um salário mínimo, nos seguintes termos:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Tudo em consonância com o Principio Fundamental da Dignidade Humana (art. 1º), somado aos Objetivos Fundamentais plasmados no art. 3º, I, II e III (construção de uma sociedade justa e solidária, erradicação da pobreza e a promoção do bem para todos).
Entretanto o Constituinte Originário remeteu à necessidade de lei para estabelecer condições para a concessão do benefício, quando expressou o comando “conforme dispuser a lei”.
LOAS
Assim, em 07.12.1993 foi sancionada a Lei 8.742/93 (Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS), que estabeleceu critérios subjetivos e objetivos para a concessão do benefício, em dois artigos (art. 2º, “e” mais o art. 20, caput e §§ 3º e 4º), a saber:
Art. 2o A assistência social tem por objetivos:
e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família;
e
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
§ 3o Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
§ 4o O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.
Da analise dos critérios estabelecidos pela Lei 8.742/93 (LOAS), temos que:
a) art. 2º: foram estabelecidos dois critérios subjetivos (“não possuir meios de prover a própria manutenção” e “ou de tê-la provida por sua família”.
b) art. 20 e §§: estabelecidos critérios objetivos:
- renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
- proibição de acumulo do beneficio, pelo beneficiário, com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime.
Dessa forma, tem direito ao Beneficio de Prestação Continuada (doravante denominado apenas “BPC”), no valor de um salário mínimo (valor estabelecido pela Constituição) a pessoa com deficiência, inserida em família cuja renda per capita seja inferior a ¼ do salário-mínimo, não tendo condições de prover a sua própria manutenção, ou, por outro lado, nem na circunstância sua família não possuir condições de provê-la
Atualmente são 1,8 milhões de beneficiários com deficiência recebendo o BPC (dados de agosto de 2011), em expressiva ação socioassistencial que se harmoniza plenamente com o texto do Preâmbulo da Constituição, que proclama
“... para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. ...”
DECRETO 1744, de 08.12.1995 e seguintes
Apesar do largo alcance do BPC, que alcança 1,8 milhões de brasileiros que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade e risco social (extrema, porque aqui temos a pobreza aliada à existência de deficiência, muitas vezes múltiplas), constata-se que reiterado equívoco no Decreto 7617/11 vem excluindo, inconstitucional e antijuridicamente, pessoas com deficiência que tem direito a receber o BPC.
Usamos a expressão “reiterado”, porque o equívoco vem se repetindo e prorrogando no tempo desde o Decreto 1744, de 08.12.95 (que regulamentou o BPC), produzindo os efeitos da “Teoria do Fruto da Árvore Envenenada”, criada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que entende que os vícios da “planta são transmitidos aos seus frutos”. No caso, a “árvore envenenada” é o Decreto 1744, de 08.12.1995 que transmitiu os vícios (seu art. 19) para os frutos (decretos subsequentes, incluindo o Decreto 7617/11).
Vale lembrar que pessoas excluídas fazem parte de um grupo de famílias que, além de pobres (renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo), tragicamente têm dois ou mais portadores de deficiência (ou deficiências múltiplas, tais como de ordem física, mental, sensorial, intelectual), tornando a vulnerabilidade e risco ainda mais severos, implicando que tenham que arcar com sacrifícios, esforços e custos maiores, como por exemplo, a contratação de “cuidadores” para auxilio em casa, pessoas que geralmente residem nas proximidades.
Além disso, por óbvio, as tarefas pertinentes aos cuidados especiais que essas pessoas demandam sobrecarregam demasiadamente os familiares. Por conta disso, muitas vezes membros da família ficam impedidos até mesmo de trabalhar em razão da enorme responsabilidade, dos cuidados e atenções que essas pessoas tão vulneráveis necessitam. O resultado é a exigência da presença constante de membro da família membro da família (geralmente a mãe) diuturnamente ao lado da pessoa deficiente.
Por força das próprias circunstâncias, situações em que famílias pobres tem dois ou mais portadores de deficiência – muitas vezes com deficiências múltiplas - tornam a exclusão ainda mais grave, pela intensa vulnerabilidade e risco social presentes naquele agrupamento familiar.
A exclusão dessas pessoas do direito ao BPC (o “envenenamento da árvore”), por meio de simples Decreto, que impôs restrição que nem a Lei, nem a Constituição impuseram, aconteceu no famigerado art. 19 do Decreto 1744, de 08.12.95, que deu a seguinte redação:
“Art. 19 O benefício da prestação continuada será devido a mais de um membro da mesma família, enquanto for atendido o disposto no inciso III do art. 2º deste Regulamento, passando o valor do benefício a compor a renda familiar, para a concessão de um segundo benefício.” (grifamos)
Ocorre que a equivocada exclusão vem se protelando no tempo, agora em razão do disposto no art. 1º do Decreto 7617/11, quando esse mantém a disposição do art. 19 do Decreto 1744, ainda que com outra redação, pois considera o BPC para efeito do calculo da renda familiar bruta:
“Art. 1º (alterando o art. 4º, VI do Decreto 6214/07, incluindo o seguro-desemprego) - renda mensal bruta familiar: a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, seguro-desemprego, comissões, pro-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 19.”
Vale dizer que o Decreto 7617/11 apenas reproduziu o art. 4º, VI, do Decreto 6214, de 26.09.07, que tinha a mesma redação, apenas sem o seguro-desemprego.
É de sabença geral que os Decretos são atos privativos do Chefe do Executivo para regular a fiel execução da lei que, por sua vez, tem que estar em completa sintonia com o texto constitucional (conforme art. 84, IV, CF).
No caso, não foi o que ocorreu com o art. 19 do Decreto 1744/95, (que se prorroga no tempo por meio dos Decretos 6214/07 e Decreto 7617/11), pois a referida exclusão (por meio da inclusão do BPC para efeitos de composição da renda familiar) não refletiu com fidelidade o espírito do texto legal (LOAS) na sua regulamentação, muito menos se harmonizou com a Constituição, violando-a.
DA INCONTITUCIONALIDADE E ANTIJURIDICIDADE DOS DECRETOS
Dessa forma, o Decreto 7617/11 (nessa questão) segue inconstitucional e antijurídico, um “morto-vivo”, verdadeiro zumbi com dezoito anos, conforme exposição que se segue.
A uma, é inconstitucional uma vez que a Constituição (art. 203, V) garante à pessoa portadora de deficiência um salário mínimo, nem mais, nem menos.
Esse é o mínimo social, o mínimo existencial para essas pessoas, previsto na Carta Magna. Ao incluir o BPC recebido por outra pessoa com deficiência no calculo da “renda familiar”, são várias as inconformidades cometidas pelo Decreto em comento, com gravíssimo dano para pessoas desafortunadas que se encontram em situação de elevada vulnerabilidade e risco social.
A impropriedade mais óbvia de ser visualizada é que a distorção da renda familiar (por meio da inclusão de um BPC recebido por beneficiário na renda familiar) produz como consequência direta a exclusão de outras pessoas com deficiência (da mesma família) que se enquadram no comando constitucional previsto no art. 203, V, em razão da elevação indevida e inadequada da renda per capita desse grupo, que será superior aos ¼ do salário mínimo, em razão da maior base de cálculo.
Dessa forma, outras pessoas portadoras de deficiência inseridas na mesma família, pobres, incapazes de seu próprio sustento, em situação de extrema vulnerabilidade e risco social, não receberão nenhum benefício, contrariando o texto constitucional e em ampla contradição com os objetivos da LOAS. A realidade demonstra que os recursos percebidos pelo único beneficiário são repartidos também para a manutenção da segunda pessoa com deficiência da família, implicando que ambos passarão a receber, de fato (nesse exemplo), apenas ½ salário mínimo, em grave violação constitucional (que prevê, inequivocamente, o benefício de um salário mínimo para a pessoa portadora de deficiência).
Por outro lado, o simples fato do art. 1º do Decreto 7617/11 manter o BPC de um beneficiário pra composição da renda familiar, implica em grave desvio de finalidade, pois legitima, em tese, que o BPC também se destina a todos os outros integrantes da família, mesmo pessoas sem deficiência, e não apenas ao beneficiário. Dessa forma, vislumbra-se a “lógica do absurdo”: enquanto na origem cumpre-se a obrigação constitucional de se destinar um salário mínimo diretamente para a pessoa com deficiência, por outro lado admite-se a hipótese dessa pessoa receber bem menos, em razão da autorização implícita inserida equivocadamente no Decreto, decorrente da distribuição do BPC na composição da renda per capita da família.
Dito de outra forma, ao incluir o BPC de um beneficiário no calculo da renda per capita familiar, é o mesmo que afirmar que cada membro da família tem direito a parte do BPC, quando esse é destinado exclusivamente ao portador de deficiência (LOAS, art. 20: “... garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência...”)
A situação se agrava no caso da família possuir outra pessoa com deficiência, pois a possibilidade dessa ser impedida de receber o BPC será inevitável ante a elevação artificial e indevida da renda per capita, que será maior que 1/4 do salario mínimo na maior parte das vezes.
Importante lembrar que outro relevante programa social, o Bolsa Família, difere-se do BPC exatamente em relação à sua destinação: trata-se de programa de transferência de renda diretamente às famílias. Portanto é lícito afirmar que os recursos do Bolsa Família compõem a renda familiar; todavia, o mesmo não ocorre com os recursos oriundos de BPC.
Na análise do problema, pouco importa se a realidade mostra que parte dos recursos do BPC recebidos são consumidos pela família, sob a forma de alimentos, remédios e roupas adquiridos com aquele beneficio, que de fato passa a integrar a renda família. Integra de fato mas não de direito.
Dessa forma, nenhuma dúvida reside no fato de que a pessoa portadora de deficiência, que não é capaz de sustentar-se, ou que nem sua própria família é capaz de provê-la em seu mínimo existencial e social, tem direito a receber um BPC no valor de um salário mínimo, nunca menos. Também é por demais evidente que o BPC de um beneficiário jamais poderá compor a renda familiar, muito menos a renda per capita da família, eis que esses recursos destinam-se, exclusivamente, à sua manutenção, ao seu “mínimo existencial”, não podendo ser compartilhado com terceiros.
A duas, o Decreto 7617/11 (art. 1º) é antijurídico porque a própria LOAS espelhou, corretamente, o texto constitucional, alcançando a vontade do Legislador Originário, uma vez que o seu art. 2º, “e” LOAS prevê
e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família;
Por sua vez, o art. 20, caput, reproduziu o texto (do art. 2º, “e”), sendo que o seu parágrafo 3º estabeleceu o limite de ¼ do salário mínimo (renda per capita), conforme se lê em
§ 3o Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
Por outro lado, o parágrafo 4º trouxe a única hipótese da não cumulatividade de benefícios, assim mesmo pelo próprio beneficiário, conforme
4o O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.
Em síntese: não há na Constituição (nem na LOAS), qualquer dispositivo que autorize interpretação extensiva para a inclusão de um BPC na renda familiar para fins de apuração da renda per capita, restringindo direitos de quem mais precisa. O art. 1º do Decreto 7617/11 viola a Constituição e a LOAS, ao considerar um BPC recebido por beneficiário como parte da renda familiar (ou considerá-lo como recebido por outra pessoa com deficiência), provocando a exclusão de outras pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade, que não recebem outro benefício da seguridade social.
Essa grave inconstitucionalidade é contrária aos objetivos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro por meio de Decreto Legislativo.
DECISÕES JUDICIAIS. Finalidade Social
Não foi por outra essa razão que a sentença (MAI/2004) da Ação Civil Pública nº 2004.38.03.003762-5, muito bem fundamentada, condenou o INSS e a União a não computarem na renda familiar do idoso ou portador de necessidades especiais, para fins de concessão do benefício assistencial previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas - Lei 8.742/93), o valor de qualquer benefício previdenciário ou assistencial igual a um salário mínimo.
Acesso ao inteiro teor da sentença em www.mp.mg.gov.br/portal/public/interno/arquivo/id/7083
Entretanto – e infelizmente - em ABRIL/2006 a Procuradoria do INSS obteve liminar do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, suspendendo a sentença proferida na Ação Civil Pública (ACP) n° 2004.38.03.003762-5, fato comemorado como “INSS: Procuradoria impede prejuízo de quase R$ 1 bilhão por ano” (http://www.previdencia.gov.br/vejaNoticia.php?id=23235).
Indagamos, laconicamente, para reflexão: prejuízo?
Esqueceram-se do princípio da supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica (LOAS, art. 4º, I).
Simplesmente, rasgaram a Constituição e a LOAS.
Ainda que pairassem dúvidas a respeito, é de conhecimento geral que nos casos em que o texto legal ou constitucional permite mais de uma interpretação, deve-se adotar a interpretação mais razoável e coerente com o tema. Deve-se adotar a que faz sentido, em detrimento à que não faz.
Por outro lado, um dos grandes princípios do Direito na interpretação da lei é que a norma deve ser interpretada de acordo com sua finalidade social, nos seguintes termos (art. 5º, LICC), in verbis:
“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
A finalidade social do disposto na Constituição e na LOAS é clara: a proteção da pessoa com deficiência, pobre, por se encontrar em situação de grave vulnerabilidade e risco social.
A finalidade social da LOAS é de tal magnitude que Tribunais Regionais Federais e o Superior Tribunal de Justiça tem sido sensíveis a questões dessa natureza, sendo pacífico o entendimento de que mesmo a aferição de carência (vulnerabilidade e risco social) no caso concreto deve ser realizada seguindo o princípio da razoabilidade, e não por mero cálculo aritmético (que nem é o foco deste trabalho, mas que reforça o nosso entendimento em relação à gravidade da matéria).
Enfim, o critério objetivo da renda per capita da família da pessoa ser inferior a ¼ do salário mínimo (LOAS, art. 20, § 3º) para fins de percepção do BPC, tem sido desconsiderado pela Justiça, conforme, por exemplo, farta jurisprudência do STJ, que entende que a análise deve ser feita caso a caso, no sentido da aferição do critério miserabilidade ser feito de forma mais completa e com análise mais detalhada do caso concreto:
“Ementa: PREVIDENCIÁRIO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO DA PRESTAÇÃO CONTINUADA. REQUISITOS LEGAIS. ART. 203 DA CF. ART. 20, § 3º, DA LEI Nº 8.742/93. I - A assistência social foi criada com o intuito de beneficiar os miseráveis, pessoas incapazes de sobreviver sem a ação da Previdência. II - O preceito contido no art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93 não é o único critério válido para comprovar a condição de miserabilidade preceituada no artigo 203, V, da Constituição Federal. A renda familiar per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo deve ser considerada como um limite mínimo, um quantum objetivamente considerado insuficiente à subsistência do portador de deficiência e do idoso, o que não impede que o julgador faça uso de outros fatores que tenham o condão de comprovar a condição de miserabilidade da família do autor. Recurso não conhecido. (Acórdão RESP 314264 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2001/0036163-3 DJ DATA:18/06/2001 PG:00185 Relator Min. FELIX FISCHER (1109) Orgão Julgador T.5 - QUINTA TURMA)”
No REsp 756119/MS, da lavra do Ministro HAMILTON CARVALHIDO, temos:
(...) A impossibilidade da própria manutenção, por parte dos portadores de deficiência e dos idosos, que autoriza e determina o benefício assistencial de prestação continuada, não se restringe à hipótese da renda familiar per capita mensal inferior a 1/4 do salário mínimo, podendo caracterizar-se por concretas circunstâncias outras, que é certo, devem ser demonstradas. (...)" (REsp n° 464.774/SC, da minha Relatoria, in DJ 4/8/2003).
Outras decisões no mesmo sentido: REsp 308.711; REsp 464.774; REsp 539.621; Ag. Reg. no Ag. 502.188; Ag. Reg. no Ag. 521.467; Ag. Reg. no Ag. 507.707; Ag. Reg. no REsp 507.012.
A disposição do Decreto 7617/11 artigo viola um dos mais expressivos e belos princípios da LOAS, magistralmente inscrito no art. 4º, I, que reza que
Art. 4º A assistência social rege-se pelos seguintes princípios:
I - supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica;
Ao incluir o BPC para efeito de composição da renda familiar, altera-se o sentido do dispositivo legal, pois são as exigências de rentabilidade econômica que passam a ter supremacia sobre o atendimento das necessidades sociais, provocando a exclusão de pessoas com deficiência em situação de extrema vulnerabilidade de risco social.
Tão grave quanto, o Decreto 7617/11 também anula outros dois princípios da LOAS, plasmados no art. 4º, III e IV, nos seguintes termos:
III - respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade;
e
IV - igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais;
Assim, o art. 1º do Decreto 7617/11 não iguala os direitos de outros portadores de deficiência na mesma família (muitos dos quais portadores de deficiências múltiplas, agravando a situação da família que se encontra em intensa vulnerabilidade social).
Ao contrário, a consequência de seu teor produz efeitos similares aos de efetiva discriminação, pois se uma pessoa idosa ou com deficiência recebe o BPC, outra pessoa com deficiência na mesma família e condição não receberá.
Não é por outra razão que a Lei 10.741, de 01.10.03 (Estatuto do Idoso) ressaltou a necessidade de se excluir o BPC concedido aos idosos, do calculo da renda familiar, no art. 34, parágrafo único, com a seguinte redação:
Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas.
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.
Dessa forma, por estar por demais explicitada no referido Parágrafo único a exclusão do BPC recebido por idoso, no que tange à sua impossibilidade de fazer parte da renda familiar (embora de explicidade desnecessária em razão de sua redundância, por força do texto da Constituição e da LOAS), o Decreto 7617/11 reproduziu em seu art. 19, parágrafo único, a referida ressalva, conforme se lê em
Art. 19, Parágrafo único. O valor do Benefício de Prestação Continuada concedido a idoso não será computado no cálculo da renda mensal bruta familiar a que se refere o inciso VI do art. 4o, para fins de concessão do Benefício de Prestação Continuada a outro idoso da mesma família.
Todavia, mais uma vez o Decreto 7617/11 cometeu outro equívoco, ao acrescer na parte final (art. 19, Parágrafo único) do texto a expressão “a outro idoso”. Não existe essa ressalva (“a outro idoso”) no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso. Vulgarmente falando, diria que “forçaram a barra” para dar essa interpretação, transplantando para o Decreto 7617/11 algo que a Lei 10.741/2003 não previu. É por demais óbvio que o Parágrafo único em comento deve ser lido da seguinte forma:
Parágrafo único. O benefício já concedido aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.
Ou seja, não será computado para fins de concessão do BPC a outro idoso da mesma família, nem a pessoa com deficiência.
Como consequência da “interpretação”, o valor do BPC concedido a idoso é computado na renda familiar, para fins de avaliação da hipótese de concessão de BPC para pessoa com deficiência.
Fizeram uma “Escolha de Sofia”, entre idosos e pessoas com deficiência, com evidente e grave prejuízo dessas.
Como resultado da finalidade social da lei, dentre outros aspectos, o judiciário tem excluído da renda familiar não apenas o benefício assistencial recebido por idosos, mas também, qualquer benefício previdenciário (aposentadoria) de um salário mínimo por eles recebido, para objetivar a concessão de BPC, para idosos e pessoas com deficiência da mesma família.
Em julgamento de 08/2011, o Tribunal Nacional de Uniformização - TNU deliberou nesse sentido:
IINCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. RENDA MENSAL PER CAPITA FAMILIAR. EXCLUSÃO DE BENEFÍCIO DE VALOR MÍNIMO PERCEBIDO POR MAIOR DE 65 ANOS. ART. 34,PARÁGRAFO ÚNICO, LEI Nº 10.741/2003. APLICAÇÃO ANALÓGICA.
1. A finalidade da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), ao excluir da renda do núcleo familiar o valor do benefício assistencial percebido pelo idoso, foi protegê-lo, destinando essa verba exclusivamente à sua subsistência.
2. Nessa linha de raciocínio, também o benefício previdenciário no valor de um salário mínimo recebido por maior de 65 anos deve será afastado para fins de apuração da renda mensal per capita objetivando a concessão de benefício de prestação continuada.
3. O entendimento de que somente o benefício assistencial não é considerado no cômputo da renda mensal per capita desprestigia o segurado que contribuiu para a Previdência Social e, por isso, faz jus a uma aposentadoria de valor mínimo, na medida em que este tem de compartilhar esse valor com seu grupo familiar.
4. Em respeito aos princípios da igualdade e da razoabilidade, deve ser excluído do cálculo da renda familiar per capita qualquer benefício de valor mínimo recebido por maior de 65 anos, independentemente se assistencial ou previdenciário, aplicando-se, analogicamente, o disposto no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso.
(Processo: Pet 7203 PE 2009/0071096-6, Relator(a): Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Julgamento: 10/08/2011, Órgão Julgador: S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Publicação: DJe 11/10/2011)
EFEITOS EXCLUDENTES DO DECRETO 7617/11
Para melhor avaliar os efeitos do teor do art. 1º, VI, do Decreto 7617/11, eis a situação hipotética de uma família com cinco membros, cuja renda familiar é de R$ 678,00 (um salário mínimo). A renda per capita dessa família será de R$ 136,60, de forma que se um de seus membros for portador de deficiência, terá direito a receber um BPC no valor de R$ 678,00.
Nesse caso, ante o teor do Decreto 7617/11, a renda familiar daquele grupo familiar passa a ser de R$ 1.356,00. Como consequência a renda per capita passa para R$ 271,20, embora a destinação do BPC seja exclusivamente para a pessoa com deficiência, e não aos demais integrantes da família.
Nessas circunstâncias (grupo com renda familiar de R$ 1.356,00, sendo R$ 678,00 provenientes de BPC), na eventualidade de um agrupamento familiar possuir outra pessoa portadora de deficiência, essa não terá direito ao beneficio, o que se consiste em grave violação à Constituição. Uma segunda pessoa com deficiência somente teria direito ao benefício no caso do grupo familiar possuir a partir de nove membros.
A situação torna-se mais grave por conta do que acontece na realidade. É evidente que naquele meio familiar em situação de vulnerabilidade, os recursos do BPC destinados ao beneficiário serão repartidos com outras pessoas com deficiência (se houver), tendo como consequência que ele (beneficiário original) receberá menos que um salário mínimo. A violação constitucional torna-se dupla, pois são duas ou mais pessoas a receberem menos que um salário-mínimo, enfim, menos que o mínimo social previsto na LOAS, em seu art. 1º:
“A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social, não contributiva, que provê os mínimos sociais...”.
A Constituição determinou, no caso das pessoas portadoras de deficiência e idosos inseridos em famílias pobres, de grande vulnerabilidade e risco social, que o mínimo social tem o valor de um salário mínimo (art. 203, V, CF).
Esse “mínimo social”, assegurado pela Constituição e pela LOAS às pessoas com deficiência, equivale ao conceito do “mínimo existencial”, e nem mesmo a clausula da “reserva do possível” pode ser invocada ou justificada com o propósito de impedir ou reduzir a efetivação do direito do cidadão ao seu “mínimo” (mais ainda o da pessoa com deficiência ou deficiências múltiplas, o que torna a situação tão mais grave), em razão de questões econômico-financeiras.
O Legislador, consciente da relevância da matéria, plasmou na LOAS (art. 4º,I) um dos mais significativos princípios, que consolida esse entendimento, se harmonizando com a Constituição, merecendo ser novamente reproduzido:
“Art. 4º A Assistência Social rege-se pelos seguintes princípios:
I – supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica.”
MAIS DECISÕES JUDICIAIS. SÚMULA 30 DA AGU
Muitos poderão invocar a conveniente (e bem fundamentada, diga-se de passagem) doutrina da “Reserva do Possível”, segundo a qual a efetivação dos direitos sociais estaria limitada às possibilidades orçamentárias do Estado (em que pese o teor do art. 4º, I, da LOAS.
Entretanto, recente e magistral decisão sobre a “Reserva do Possível” na implementação de políticas públicas, o STF se pronunciou da impossibilidade da mesma ser invocada.
"A cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição – encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. (...) A noção de ‘mínimo existencial’, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV)." (ARE 639.337-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-8-2011, Segunda Turma, DJE de 15-9-2011.)
Esta decisão, ao nosso ver, deveria ser esculpida em mármore e exposta em todas as praças públicas.
A concretização do direito ao BPC para a pessoa com deficiência, atualmente excluída do beneficio por força dos efeitos do Decreto 7617/11, implica também na efetivação de outra importante proteção, ou seja, na proteção constitucional à Família (art. 203, I), em harmonia com a LOAS (art. 2º, I).
Isso porque as pessoas com deficiência mais graves, que as impossibilitam ao trabalho, particularmente as com deficiências múltiplas, serão amparadas (ao menos em tese) por sua família por toda a vida, tendo em vista a sua total dependência, muitas vezes até mesmo para as coisas mais básicas do dia-a-dia, como comer, tomar banho, vestir-se.
A questão social do tema é tão relevante, que a Advocacia-Geral da União, OGU, editou a Súmula n° 30, dando interpretação diversa e importante para o art. 20, § 2º da LOAS, que define que a pessoa com deficiência, para os termos da Lei, “é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.”
Ante o texto literal da Lei, sempre se afirmou que não bastaria apenas a impossibilidade de exercer a atividade laborativa, mas também para a vida independente. Ambas as condições tinham que estar presentes, para que a pessoa fizesse jus ao benefício.
A AGU entendeu que a incapacidade para o trabalho já seria suficiente para caracterizar a incapacidade para a vida independente, editando a Súmula 30 (abaixo reproduzida), de observância obrigatória pelos Procuradores Federais responsáveis pela defesa do INSS:
“A incapacidade para prover a própria subsistência por meio do trabalho é suficiente para a caracterização da incapacidade para a vida independente, conforme estabelecido no art. 203, V, da Constituição Federal, e art. 20, II, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993.”
Trata-se de reconhecimento de entendimento que melhor atende aos comandos constitucionais pertinentes à dignidade humana, também refletido na Súmula 29 da Turma Nacional de Uniformização- TNU:
“Para os efeitos do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742, de 1993, incapacidade para a vida independente não é só aquela que impede as atividades mais elementares da pessoa, mas também a impossibilita de prover ao próprio sustento”.
A vantagem prática da Súmula da Advocacia-Geral da União, mediante interpretação da finalidade social da lei, foi o fato de liberar os advogados públicos de manejarem recursos relacionados a questão já superada, em detrimento das necessidades fundamentais dos demandantes.
Vale dizer que a Súmula 30 foi revogada em 31.01.11, em razão da recepção pelo Brasil da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008. Além do mais, o disposto na Súmula 30 da AGU está contido na referida Convenção, de maior abrangência.
Sem dúvida, a conduta da Advocacia-Geral da União, na edição da Súmula 30, revelou a disposição de conferir à advocacia pública um caráter institucional que objetiva garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.
AJUSTE PROPOSTOS NO DECRETO 7617/2011
Por essa razão, pensamos que:
1. a Advocacia-Geral da União, por conta de sua competência constitucional de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo (art. 131, CF) pode ser provocada para manifestar-se a respeito do tema, no sentido de orientar a Casa Civil da Presidência da República para ajustar o Decreto 7617/11, excluindo definitivamente a possibilidade de se computar na renda familiar o Benefício de Prestação Continuada concedido a idoso ou pessoa com deficiência, para fins de concessão desse mesmo Benefício a outra pessoa da mesma família, pouco importando se idosa ou pessoa com deficiência;
2. a Casa Civil da Presidência da República, por outro lado, poderá fazer tal adequação no Decreto 7617/11, “ex officio”, eis que em plena conformidade constitucional e legal.
Em linhas gerais, basta a exclusão do Parágrafo único, art. 19, do Decreto 6214/07 (com as alterações do 7617/11) e
A retirada da expressão “e Benefício de Prestação Continuada”, do art. 4º, inciso VI, do Decreto 6214/07 (com as alterações do Decreto 7617/11).
CONCLUSÃO
A adoção dos ajustes propostos compatibilizará o novo Decreto a ser editado, com a Constituição, com a LOAS e com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, corrigindo enorme injustiça com pessoas com deficiência (e suas famílias) que necessitam, efetivamente, da assistência social, assegurando o “exercício dos direitos sociais (...) a segurança, o bem-estar (...) como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (Preâmbulo da Constituição de 1988)
Não é mais possível que em pleno Século XXI, direitos e garantias ainda se constituam em meras obras de arte e poesias, em plena Carta Constitucional.
Brasília, ABRIL/2013
MILTON CÓRDOVA JÚNIOR
Advogado
Mestrando em Estudos Jurídicos Avançados, pela FUNIBER; graduação em DIREITO, pela UDF (2005); especialização em Direito Publico (UCAM-Universidade Cândido Mendes). Extensão em Defesa Nacional pela Escola Superior de Defesa; em Direito Constitucional e Direito Constitucional Tributário. Política Externa para Altos Funcionários da Administração Pública, pelo Ministério das Relações Exteriores. Recebeu Voto de Aplauso do Senado Federal por relevantes contribuições à efetivação da cidadania e dos direitos políticos (acesso in http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2007/09/26/ccj-aprova-voto-de-aplauso-ao-advogado-milton-cordova-junior). Idealizador do fundo de subsídios habitacional denominado FAR - Fundo de Arrendamento Residencial, que sustenta o Programa Minha Casa Minha Vida, implementado por meio da Medida Provisória 1.823/99, de 29.04.1999.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Milton Cordova. Benefício de Prestação Continuada integrando renda familiar: inconstitucionalidade e antijuridicidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 maio 2013, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1508/beneficio-de-prestacao-continuada-integrando-renda-familiar-inconstitucionalidade-e-antijuridicidade. Acesso em: 24 nov 2024.
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