Os juízes são o semáforo do poder punitivo do Estado (Zaffaroni). Se eles dão sinal verde para as arbitrariedades e ilegalidades, elas prosseguem, porque os humanos somos maus e arbitrários (veja Philip Zimbardo, O efeito Lúcifer), enquanto e até o limite que nos deixam ser. Se os juízes dão sinal vermelho, elas cessam. Incontáveis investigações e provas obtidas pelos órgãos investigativos já foram julgadas ilegais e inconstitucionais pelos tribunais brasileiros (Operação Satiaghara, Castelo de Areia, Caso de Santo André etc.). No Estado de direito existem formas para a obtenção de provas sobre o crime e a autoria. Forma é garantia, no processo penal (Aury Lopes Júnior). Recentemente, no HC 139581, o STJ (rel. min. Sebastião Reis Júnior) “declarou a ilicitude das provas produzidas por escutas autorizadas ou prorrogadas por prazo superior a 15 dias e determinou que o juízo de primeira instância examine as consequências da nulidade nas demais provas dos autos, para apurar a existência de algum vício por derivação”.
Denúncia anônima e flagrante
Para que um procedimento investigatório ou medidas processuais concretas seja iniciado ou tomadas, devem ser destacados três momentos relevantes:
(a) denúncia anônima;
(b) diligências investigativas posteriores que subministrem elementos probatórios mínimos;
(c) instauração do inquérito policial (ou adoção de alguma medida cautelar).
Não se pode movimentar a máquina judiciária, envolvendo um cidadão em investigação sem a presença de elementos mínimos para justificar possível ação penal. “É necessário que se demonstre a relação, ainda que mínima, entre a conduta supostamente ilícita e o agente investigado – o que não se verificou na espécie -, sob pena de se reconhecer impropriamente a responsabilidade penal objetiva” Min. Laurita Vaz (RHC 27.884-MG).
No caso de denúncia anônima que conduz à prisão em flagrante, sua validade é inquestionável. São diferentes as situações. Uma coisa é a denúncia anônima dar ensejo a uma interceptação telefônica sem ter havido investigação mínima. Nesse caso essa prova é inválida. Outra coisa é o flagrante. Qualquer pessoa do povo pode prender em flagrante. Ou denunciar o fato à polícia, que efetua a prisão. Essa prisão é válida.
Interceptações telefônicas feitas pela PM
Não se tratando de investigação de um crime militar, cometido por militar, não há nenhuma dúvida de que todas as interceptações feitas pela PM são inválidas (provas ilícitas). Há notícia (Folha 18/10/13, p. C8) de que uma central instalada num quartel da PM em Presidente Prudente teria interceptado, com apoio do Ministério Público, milhares de comunicações telefônicas. Trata-se de prova ilícita. Flagrantemente ilícita. O caso está sendo investigado agora pelo CNJ. Que, certamente, chegará a essa conclusão. Não importa quem seja o criminoso ou o suspeito: a lei deve ser seguida sempre ou incorremos em estado de exceção, que suspende as garantias legais e constitucionais, dando amparo ao estado policialesco, que nunca deixou de existir (no Brasil) paralelamente ao estado de direito. O que caracteriza o estado policialesco é o silêncio das leis:“Inter arma silent leges”.
No contexto da guerra contra o crime, praticamente tudo passou a ser permitdo aos estados, seja no plano internacional (veja Vervaele, 2007, p. 2 e ss.), seja no plano interno. As violações típicas do estado policialesco são: a privacidade fica relativizada, as buscas e apreensões prescindem de autorização judicial, as prisões são feitas com base em provas secretas ou ilícitas, a polícia não respeita as ordens judiciais, os julgamentos são feitos sem as garantias legais e constitucionais, o serviço de inteligência fica sem limites, a legislação de emergência passa a reinar sobre a constituição, o princípio da legalidade fica flexibilizado, o Executivo e a polícia ignoram em vários momentos os demais poderes (Legislativo e Judiciário) etc.
Perene emergência
A emergência (perene), como se vê, sempre justifica as arbitrariedades. É algo histórico e ancestral (o Império Romano massacrou os cristãos sob a égide de uma emergência incendiária). Assim também ocorreu com a Constituição de Weimar, na Alemanha, nos 20/30 do século XX, prelúdio do nazismo de Hitler. E nunca faltaram doutrinadores do terror, tal como Carl Schmit (bem estudado por Agamben, 2005), que elaboram os argumentos justificativos da quebra do estado de direito. O papel aceita tudo. Nem tampouco faltam caudilhos (no mundo inteiro, antigo ou atual) para levar adiante o estado policialesco. O fruto envenenado do estado policialesco é o direito penal do inimigo, baseado na periculosidade e na ilegalidade. Inimigo sem direitos. Investigações sem limites. O direito penal do fato cede espaço para a culpabilidade (periculosidade) pelo estilo de vida (Lebensführungsschuld), conforme doutrinava Mezger (citado por Vervaele, 2007, p. 102).
Em nome da segurança afastam-se as garantias, os direitos civis e a própria validade da Constituição. As provas obtidas de forma ilícita obscurecem a luz da Justiça e apaga o brilho do Iluminismo. Assim funcionam os estados de exceção, ou seja, os estados policialescos e autoritários, fundados em legislações de emergências, com a ampliação dos poderes da polícia e das investigações. Iluminismo e Revolução francesa perdem validade, porque “Inter arma silent leges”. Os juízes são o semáforo do poder punitivo (Zaffaroni). Enquanto não chegam as luzes vermelhas deles, os abusos e as arbitrariedades prosseguem.
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