Um acontecimento no mundo dos fatos vem me causando certo estranhamento quanto à forma que vem sendo abordado por uma imprensa de conhecimento claudicante, um tanto sem rumo, sem o poder de ofertar um diagnóstico com um mínimo de precisão aos seus ouvintes.
Como já assentei em artigos outros, a imprensa detém uma responsabilidade que se encontra "in re ipsa" em sua atividade informativa. A notícia, ou pior, o comentário democratizado "de orelhada" pode fomentar entendimentos desviados da realidade fática apresentada levando o receptor da mensagem a erro cognitivo, formando uma percepção equivocada de valor pautada em premissas que não fornecem uma conclusão válida.
A imprensa não deve manifestar-se contra uma lógica fundamentada apenas na paixão que se desvia da realidade fática e nem argumentar sem os fundamentos necessários de um "expert". A liberdade de imprensa é um dos inarredáveis cânones de uma democracia minimamente acreditável, mas como instrumento desta não pode se afastar de seu primado de responsabilidade. A ânsia de informar, de emitir opinião não pode abdicar dos instrumentos que a qualificam. Mais vale uma informação-opinião postergada correta e fundamentada, que uma quase concomitante ao fato "de orelhada" equivocadamente abordada.
Quero falar da celeuma que se criou quanto ao valor que o Clube de Regatas do Flamengo atribuiu aos ingressos da final da Copa do Brasil protagonizados pelas equipes do Flamengo e do Atlético Paranaense no jogo de volta no Maracanã dia 27 de novembro de 2013.
A gestão atual do clube colocou, em parceria com o consórcio que administra o Maracanã, o valor de R$ 250,00 (duzentos de cinquenta reais) como ingresso mais barato, valor que pode ser reduzido pela metade, nos termos da lei da meia entrada. O ingresso mais caro chega a R$ 800,00 (oitocentos reais) com preço cheio e a metade desse valor para meia entrada.
Um clube como qualquer outra instituição, empresa ou não empresa, ente público, entidade do 3º setor, deve ser administrado com responsabilidade para que suas contas ao menos fechem sem prejuízo, sob o risco se alcançar a insolvência ou falência, a depender, ou a imponderável perda de crédito no mercado, em suma, impossibilidade de gestão pela incapacidade de arcar com seus compromissos.
O jogo de futebol é como um show, um espetáculo. Como espetáculo seus organizadores atribuem um preço, um valor, que vai depender de diversos critérios como o interesse do público pelo espetáculo (basilar lei da oferta e da procura), do planejamento de quanto o clube quer ou precisa arrecadar para no mínimo arcar com o seu custo ou se pode aspirar à obtenção de lucro que possa se reverter em proveito para cobrir futuros espetáculos de menor apelo para o público e potenciais geradores de prejuízo.
Se em um teatro encontramos espetáculos que vão de R$ 20,00 (vinte reais), em regra espetáculos de menor apelo, com atores desconhecidos do grande público, encontramos outros ao valor de R$ 500,00 (quinhentos reais), quando o apelo se denota grande, em regra com atores reconhecidos e admirados por seus trabalhos. Quero dizer, que em verdade, quem dará o preço final ao espetáculo é o público muito mais que seus produtores. Os produtores do espetáculo só irão cobrar R$ 500,00 (quinhentos reais) se acreditarem que o valor praticado não representará um fracasso de público e consequentemente de renda.
Um espetáculo privado de futebol como de teatro não pode ser encarado como um produto qualificado pela essencialidade embora um direito social ao Lazer, como é o direito subjetivo fundamental a uma educação de qualidade, a uma saúde digna, a título de exemplo, e isto deve-se a fatores diversos que se passa a sucintamente expor. O Estado que deve propiciar lazer, cultura, saúde, (...), prioritariamente, vale lembrar.
Primeiramente educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, segurança, dentre outros, aí incluídos o lazer, são Direitos Sociais do cidadão conforme asseverado tutelados pela Constituição. Mas o Estado não se incumbiu de prestar com exclusividade atribuindo ao particular autonomia para conjuntamente prestar.
Quando é o particular que presta, quando presta sem ser subvencionado por dinheiro público, tem o Estado um espaço de controle limitado na atividade, mais adstrita aos aspectos concorrenciais de mercado, conforme se explicará a seguir, sendo inequívoco que, em um sistema capitalista, a percepção do lucro é parte de sua própria essência, enquanto ao Estado é facultado trabalhar com prejuízo, que é suportado e repassado para sociedade, sua destinatária final.
Entidades privadas, onde há o dinheiro público injetado, o controle estatal aumenta e deveria ser exemplar, a entidade passa a ter que prestar contas de sua gestão. Assim acontece ou deveria, por exemplo, com entidades do 3º setor que recebem dinheiro público. Lamentavelmente não é isso que se vê, dicotomicamente observa-se o uso de dinheiro público desviado da finalidade para o qual foi dotado sem grande atenção nem da imprensa nem das autoridades públicas de fiscalização e controle. O 3º setor tornou um meio de enriquecimento com o dinheiro público desviado à margem da ordem legal posta que cresce sem ser incomodado.
Entidades privadas que não recebem dinheiro público tem liberdade para explorar sua atividade econômica e perceber lucros independentemente de quaisquer prestações de contas para o Estado de seu formato de gestão, salvo para fins de tributação.
Não se pode tolerar a interferência do Estado nos lucros de uma empresa privada se esta não presta serviços de primeira essencialidade. Para exemplificar, não pode o Estado intervir no valor dos ingressos de um espetáculo protagonizado por Fernanda Montenegro alegando ser excludente de determinadas classes sociais, como não faz. O mesmo raciocínio se aplicou ao "Rock in Rio", aos shows de astros internacionais como Madona ou nacionais com João Gilberto, sempre lotados e com ingressos esgotados, apesar dos altíssimos valores cobrados.
Justiça social é um ideal que não se pode abdicar, ao contrário, necessário persegui-lo, mas sempre calcando-se na razoabilidade do pleito e despindo-se de qualquer espírito de hipocrisia. Certo que há espetáculos alcançáveis pelas classes C e D, e outros, que pela importância e apelo, acabam selecionando a parcela da sociedade com maior poder aquisitivo, estamos inseridos em um sistema capitalista, nunca é demais lembrar.
O mesmo raciocínio se aplica aos alimentos, direitos sociais fundamentais indiscutíveis, existindo alimentos fora da cesta básica como é o caviar, que estão distantes da realidade das classes menos favorecidas, devendo o Estado garantir sim, que a cesta básica e os alimentos considerados essencias e não supérfluos se mantenham em um patamar acessível a todas as classes sociais nos termos do Princípio da Dignidade Humana.
Inconcebível o Estado pretender intervir no preço dos ingressos de uma partida episódica de futebol quando a procura é muito maior que a oferta, quando se trata de uma gestão de uma entidade privada que não deve prestar contas ao Estado de seu planejamento financeiro e quando não se revela qualquer essencialidade que fundamente um processo interventivo Estatal.
Se o Estado não intervém no preço de uma escola que cobra mensalmente de seus alunos R$ 3.000,00 (três mil reais), indubitavelmente um serviço essencial que acaba por permitir o acesso apenas de parcela de uma classe dita A, digo corretamente em um sistema capitalista, não pode querer intervir no valor cobrado em um episódico espetáculo (sem uma essencialidade aferível) que mesmo com os preços praticados terá seus ingressos esgotados. Vale lembrar que, o Estado está obrigado a prestar educação pública de qualidade a todos e lazer, não as entidades essencialmente privadas!
O Estado querer limitar o lucro de uma entidade privada pode revelar-se uma intervenção desarrazoada dentro de um sistema capitalista se não pautada por razões capazes de excepcionar a própria natureza do sistema. Muito antes de se pretender relativizar a margem de lucro de um pontual jogo de futebol o Estado tem a obrigação legal de controlar os lucros desproporcionais de dirigentes de ONGs, ou qualquer entidade que perceba dinheiro público.
E o que se diria dos bancos com seus lucros estratosféricos, muitos que já receberam dinheiro público em momentos de crise, deveriam neste raciocínio sofrer diariamente intervenção em suas práticas abusivas que lesam a sociedade, por exemplo, com a cobrança de juros extorsivos, e não é o que se vê. E os gastos de governantes que utilizam do dinheiro público para fins privados e acabam não investigados ou com procedimentos investigatórios arquivados?
Aqui não se pretende fundamentar um erro com outro erro, mas alertar que os órgãos de controle deveriam focar suas atuações nos termos de seus deveres funcionais ao invés de se aproveitarem de temáticas que possam render holofotes e notoriedade como é a final de uma competição nacional onde há a participação de um clube de massa.
Querer alegar abuso de poder econômico é forçar a barra. A entidade privada pode optar por uma gestão empresarial (empresa formal ou não), que vise o lucro com responsabilidade. Para isso há um completo planejamento de lucro, de austeridade com o fim de se tornar lucrativa e saudável no mercado concorrencial e capaz de saldar seus débitos e realizar os investimentos que entender necessários, sempre respeitando a dignidade da pessoa humana.
Uma partida de futebol, um espetáculo em que a demanda é muito maior que a capacidade do evento não pode o gestor de uma entidade privada alcançar lucros maiores para saldar dívidas pretéritas ou realizar investimentos necessários? Teria que praticar então preços módicos como se poder público fosse? Que capitalismo é esse? Uma decisão judicial que venha neste sentido de impedir que uma entidade privada aufira o lucro que o mercado tem capacidade de ofertar, sim, que será arbitrária e de fundo populista, ofensiva ao Estado mínimo que se deveria buscar a partir da valorização da livre iniciativa e o respeito às regras comezinhas de mercado.
Justiça social, hipocrisia, populismo são termos separados por uma linha limítrofe bem fina e que apenas cada caso concreto será capaz de delimitar até onde a nobreza se desviou de sua finalidade que deveria fundamentá-la.
Não há uma lei expressa que vede um clube de alcançar um lucro maior se há uma demanda além da normalidade para se falar em abuso do poder econômico, o que uma ação ilegal que deveria ser combatida. Nos momentos em que o clube está em baixa que a renda obtida não cobre os custos da partida o poder público corretamente não interfere subvencionando com dinheiro público. Assim deve o clube se planejar para cumprir os compromissos assumidos e investir nas suas atividades meio e fim pagando, ou dignamente ou nos termos impostos pelo mercado, seus profissionais.
É com esse pensamento que não se pode vedar um clube de seus poderes de gestão, que a depender do momento possa baixar os valores de seus espetáculos e praticar preços quase módicos e em outros majorá-los por entender que é possível o lucro maior. Isso faz parte de uma gestão com responsabilidade, inclusive podendo esta responsabilidade ser adjetivada como social, já que pode ser a forma encontrada para que empregos sejam mantidos e novos oportunidades geradas por meio de uma boa administração.
É neste cenário, de uma gestão responsável, que não pode os órgãos de controle do Estado intervir em busca de uma luz mais forte dos holofotes e desconfigurar todo um planejamento empresarial anterior de um ente privado.
O art. 173 da CF diz que "a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação de mercado, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros". A Lei 8884/94, conhecida como Lei Antitruste foi criada tomando como ponto de proteção os princípios consagrados no art. 170 da Lei Maior, que busca tutelar primordialmente a livre concorrência e a defesa dos interesses do consumidor. Busca proteger um ponto de equilíbrio entre a oferta e a demanda, combatendo monopólios e oligopólios, dotando o CADE com funções repressivas e preventivas para o combate.
Nestes termos quando a demanda revela-se muito grande e se mantém grande com os elevados preços praticados em relação a algo que não se revela essencial à dignidade da pessoa humana, não há que se falar em abuso do poder econômico por aumento arbitrário nos lucros, apenas se percebe a liberdade de um mercado que funciona sob uma ótica capitalista natural de oferta e procura. É assim com os imóveis, quando se tem que moradia é um direito fundamental da pessoa humana, quando se sabe que há locais mais valorizados que outros pela maior demanda que apresentam por suas localizações mais privilegiadas, que acabam dentro de uma modelo capitalista excluindo naturalmente as classes menos favorecidas.
Por todo o exposto conclui-se pelo escárnio que se revela a tentativa de intervir do PROCON e do MP (através de um membro seu dotado de independência funcional) em um episódico espetáculo de futebol impedindo o lucro maior de um ente privado quando se tem uma demanda que sobeja a capacidade do espetáculo. O torcedor que quer pagar mais para ajudar o clube estaria impedido?
Hoje o Direito é dinâmico e princípios devem ser a todo tempo sopesados diante dos casos concretos. A proporcionalidade só será revelado após um devido processo e findado este, e não "à priori" antes de se averiguar todas as circunstâncias fáticas.
De uma forma popular finda-se o presente artigo acreditando-se atender ao que se buscou tratar, ainda que despreocupado com o que se poderia revelar como "politicamente correto", dizendo que aos que não puderem comparecer a este espetáculo, da mesma forma que não poderão comparecer aos jogos do Brasil na Copa do Mundo que tem a participação direta do poder público nos altíssimos preço dos ingressos, resta a TV aberta, que se mostra uma forma digna de também acompanhar a partida sem exclusão, na certeza que espetáculos mais baratos não faltarão. O capitalismo não nos permite ter tudo, mas tudo que represente uma ofensa a nossa dignidade é direito nosso pleitear para que o Estado cumpra o seu papel fundamental.
Assim me parece.
Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Leonardo. A Intervenção do Estado no Valor dos Ingressos de uma Partida de Futebol. Compreensão Jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2013, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1662/a-intervencao-do-estado-no-valor-dos-ingressos-de-uma-partida-de-futebol-compreensao-juridica. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: RICARDO NOGUEIRA VIANA
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